Talvez Abril
Todo o dia é ocupado com as notícias da Revolução. A Revolução é modificar o conceito do Mundo, modificar o conceito do Mundo para todos nós.
Sempre imaginei o 25 de Abril visto de uma varanda no segundo andar do Largo do Carmo. Uma casa esquecida, de dia uma residência respeitável, de noite um estabelecimento onde se compravam e vendiam serviços sexuais. A Revolução observada pelos clientes habituais de uma distinta Casa de Passe. A Revolução espreitada pelas senhoras de vida dupla – de dia secretárias no Ministério, de noite funcionárias ao serviço público. Um Regime bem organizado, com escalas de serviço e “belles de jour” para cada dia da semana. Descanso ao Domingo. Nessa varanda anónima está a metáfora de um Portugal que pregava a virtude e praticava o pecado, mas com a decência dos bons costumes e o respeito pela família. A proximidade da PIDE, a vizinhança da GNR, tudo símbolos da respeitabilidade de um Regime com gravata em colarinho branco. O cheiro a alfazema, os lençóis bem esticados, as almofadas com fitas de cor, as colchas de chita com barras de flor e à cabeceira da cama sempre um santo alumiado. Impedidos de voltar à vida normal, imagino os hóspedes da casa presos num tempo sem tempo, enquanto no Largo um Capitão da Guiné ocupava o futuro para a memória dos nossos dias. A farda verde é como o verde da selva – cheira a sangue e a suor, cheira ao metal das munições que não atingem espécies exóticas e tropicais, mas que deixaram a assinatura na fachada do Quartel. Morre-se na selva como o Regime veio morrer ao Carmo.
Alguns soldados bebem galões e comem sandes de queijo. A coluna militar é desordenada e estrategicamente posicionada no caos de uma multidão que veio ver a Revolução. O Capitão dá ordens pelo megafone. O Presidente de Conselho recolhia-se no Quartel do Carmo para evitar o destino dos tempos que acabavam. Talvez nas horas que passou o Presidente do Conselho tenha escutado o concerto que Liszt deu no mesmo lugar em Janeiro ou Fevereiro de 1845 para glória e aclamação da Monarquia. A multidão em Abril de 1974 não está interessada em prelúdios românticos. A multidão vestida com calças à boca-de-sino e sapatos compensados veio ver o fim de um filme com 48 anos. A multidão é o símbolo de um Portugal espantado, surpreendido, movido pela curiosidade de quem quer ver o desastre final entre dois carros num dos cruzamentos da História. O polícia sinaleiro estava de folga e foi à terra guardar o ouro e ver se a mãe ainda estava viva. As guaritas do Quartel são púlpitos para os primeiros discursos da Revolução. Como se a Revolução fosse à beira-mar e os toldos da praia servissem para chamar aqueles que se perderam no mar. Da língua portuguesa vê-se o mar e esta Revolução traz as naus de volta e os aromas de África fechados nos helicópteros transformados em insectos mecânicos. Vem um Mercedes preto, sai um Chaimite debaixo de um fogo de insultos que se transformam em palavras dúcteis como bailarinas que enchem os céus de Lisboa com a notícia de um novo tempo. Três gotas de um vermelho velho e desmaiado não mancham o chão do Carmo.
Sempre imaginei o 25 de Abril visto pelo vidro de uma maternidade. Numa sala branca, vestida com batas brancas móveis, condecorada com utensílios metálicos como armas. O 25 de Abril captado pela retina de uma criatura chegada ao Mundo na hora exacta da Revolução. Filhos da Madrugada ou Filhos da Meia-Noite. A Revolução reunida pelos ponteiros do relógio para todo o sempre a um indivíduo único, exclusivo, particular. Graças à tirania oculta dos desígnios da natureza esta criatura passa a estar associada à História do País, como se os destinos de um País pudessem ser avaliados pelos acidentes de uma vida humana. É como se a chegada de uma nova vida fosse uma declaração política. Do lado de fora da maternidade o novo português era profetizado pela Oposição, celebrado pelas edições de todos os Jornais, ratificado pelo discurso de todos os Políticos. Este olhar de uma única pessoa é o olhar de toda uma Nação, o olhar das multidões que se chocam e entrelaçam, a convulsão de um tempo revolucionário capturado pelo tempo de uma vida. Pode uma Revolução durar para além do tempo de uma vida? Claro que sim. E claro que sim porque a cada vida que passa e que se extingue, passa para outra vida o talismã inicial e primeiro estabelecido no momento da Revolução – a minha história é a tua história certificada pelo pacto das circunstâncias desconhecidas. Quando escrevo em português sou prisioneiro desta palavra escrita que faz parte da minha identidade. Imaginem no retrato de um português de meia-idade o retrato da Revolução. A Revolução eterna e o tempo todo condensado no retrato de um português. Com os olhos libertos de diamantes, um português no retrato de Dorian Gray. Com tantas histórias para contar, a Revolução na circulação dos oceanos em que o Mundo é sempre novo. A talha dourada no tema do tiroliro.
Todo o dia é ocupado com as notícias da Revolução. A Revolução é modificar o conceito do Mundo, modificar o conceito do Mundo para todos nós. Que acabem as nuvens que ensaboam os dias. Que venham os dias para além da montra da loja dos brinquedos. Dias azuis no pedestal para o conforto de Portugal.
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