Menos, Marcelo
Marcelo será sempre Marcelo. Os tempos que correm aconselham, no entanto, a que Marcelo seja menos Marcelo e um pouco mais Cavaco.
Os jornalistas estrangeiros em Portugal que marcaram presença num encontro com o Presidente da República no dia 23 foram brindados com uma inesperada análise sociológica e psicológica ao anterior e atual primeiro-ministro. Com tanta pimenta, a conversa espirrou.
“Montenegro é uma pessoa que vem de um país profundo, urbano-rural, com comportamentos rurais”, disse aos jornalistas. Já António Costa “era lento, por ser oriental. Montenegro não é oriental, mas é lento, tem o tempo do país rural, embora urbanizado”.
Embora possa parecer, não há qualquer intenção em insultar qualquer um deles. É apenas Marcelo a exibir os seus dotes de profiler. Montenegro é também “completamente independente, não influenciável e improvisador”, além de “imaginativo”, o que “é estimulante” mas “dá muito trabalho”.
Deu como exemplo a escolha de Sebastião Bugalho para encabeçar a lista da Aliança Democrática, quando todos julgavam que ia ser Rui Moreira.
(Apenas um parenteses para escrever que a escolha de Sebastião Bugalho parece, por ora, ganha, tal a atenção mediática e nas redes sociais que gerou. É jovem, inteligente, tem faro político e uma capacidade de comunicação invulgar. O grande óbice é não ter a experiência política e o conhecimento dos assuntos europeus que o currículo de um cabeça de lista deveria exigir.)
As afirmações de Marcelo Rebelo de Sousa que mais polémica geraram foram outras. Na mesma conversa com os correspondentes estrangeiros, o Presidente da República afirmou que Portugal “assume toda a responsabilidade” pelos erros do passado, referindo-se à escravatura e massacres durante o colonialismo, e deve pagar por eles.
“Temos de pagar os custos. Há ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isto”, disse.
Marcelo diz que não quis criar um ruído que ofuscasse as comemorações do 25 de Abril, mas é difícil não enquadrar as declarações no contexto da cerimónia que organizou ontem no Centro Cultural de Belém (CCB) com os chefes de Estado de antigas colónias. Talvez soubesse até que o Presidente de Angola, João Lourenço, ia pôr o dedo na ferida, afirmando que os “povos africanos” lutaram, “desde o século XV, contra a colonização portuguesa e suas consequências, como a escravatura e a pilhagem das nossas riquezas”, e “pelo fim dos abusos, dos crimes e da violação dos direitos humanos”. João Lourenço e o regime angolano, diga-se, não são propriamente um exemplo.
Todas as nações e povos têm páginas gloriosas e negras na sua história. Andam, muitas vezes, de par a par. O colonialismo teve virtudes, mas também consequências terríveis que o país prefere varrer para debaixo do tapete. Não deve. A consciência do passado é decisiva para a construção de um futuro melhor. Assumir os erros e pedir desculpa não nos faz menores, antes maiores. Ou, como disse Marcelo no CCB, “do passado colonial guardamos todos as memórias e as lições que nos hão de guiar no futuro”.
Portugal não precisa de se reconciliar com as antigas colónias. Os muitos imigrantes que procuram o país, as trocas comerciais, a própria existência da CPLP, atestam-no. Como reparar então? Devolver património? Faz sentido. Indemnizações? Que soma pode pagar os abusos? A melhor reparação talvez seja mesmo a homenagem a quem sofreu, o reconhecimento, o pedido de desculpas, não deixar esquecer.
Onde falhou então Marcelo? Na forma. Lançar a questão num encontro com jornalistas estrangeiros a três dias do 25 de Abril, em vez de ter promovido, bem antes, uma reflexão na sociedade portuguesa.
Marcelo dessacralizou o exercício da Presidência da República, deu-lhe um cunho popular, tornou-a mais próxima dos cidadãos e mais presente. Mas há uma linha que quando atravessada banaliza a função, enfraquece-lhe o poder institucional.
Os comentários sobre o anterior e o atual primeiro-ministro atravessam essa linha, expõem o presidente da República à crítica e fragilizam-no. A maneira como “atirou” para o debate público o tema das reparações também.
A crescente polarização do país, a fragmentação política, a estabilidade segura por um fio e até o contexto internacional exigem outro registo ao Presidente da República, que afirme o seu peso institucional. Um Marcelo Rebelo de Sousa com uma certa dose de Cavaco Silva.
Aos jornalistas disse que Luís Montenegro “acredita que é um erro falar, prefere o silêncio” e que se pode esperar do primeiro-ministro “a gestão do silêncio”. Talvez seja pedir demasiado a Marcelo. Que faça ao menos uma melhor gestão da palavra.
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