Presidente Perdido

O Presidente está transformado num estado de alma. O Presidente tem de ser analisado de todos os lados e percorrido em todas as direcções.

Quando se escuta o Presidente da República surge a dúvida sobre a sua personalidade política – Será o Presidente uma ficção no mundo real da política? Será o Presidente uma realidade no mundo ficcional da política? Por vezes, o Presidente parece descolar da realidade e entrar num universo pessoal em que a política é uma narrativa criada pela sua imaginação. Outras vezes, o Presidente parece uma personagem ficcional na dura realidade da política.

Este efeito bipolar entre o político imaginado e o político realizado é uma fonte de incompreensão e um contributo para a instabilidade. Como pode um Presidente instável ser a referência de estabilidade de uma fase da política portuguesa marcada pela instabilidade? Quando o actual Primeiro-Ministro é referido como um “rural”, quando o anterior Primeiro-Ministro é explicado como um “oriental”, quando a Procuradora Geral da República é simplesmente “maquiavélica”, quando Portugal tem de assumir a responsabilidade dos “crimes da escravatura” e pagar as respectivas “reparações”, e tudo em conversa informal com jornalistas estrangeiros, o que devem os portugueses pensar? Pensam que o Presidente oscila entre o delírio e a alucinação, entre o cinismo e o coração político partido.

Muitos falam na dicotomia entre o “Presidente” e o “Comentador”, mas julgo que esta separação serve mais à inconveniência do Presidente do que à sanidade da República. O Presidente fez a carreira académica e o percurso político com a imagem colada de uma personalidade com “dois cérebros” capaz de dar duas aulas ao mesmo tempo e ditar duas colunas de opinião simultaneamente. Neste momento da sua experiência política algo parece estar a falhar na máquina do tempo. Sim, na máquina do tempo político.

O Presidente está longe do naturalista que observa a vida da nação e é capaz de identificar a espécie invasora e o exemplar genuíno para o bem-estar da comunidade nacional. As observações do Presidente a cada curva de um qualquer jardim proibido são a imagem do futuro em versões de um passado vivido, imaginado, cultivado, na impossibilidade de um silêncio que o Presidente não sabe transformar em discurso vivo. O silêncio impossível e a palavra fútil e a incontinência verbal são a marca de um Presidente cansado, politicamente isolado, que vive esta fase final da sua Presidência na profunda solidão do Palácio de Belém.

Imagino o Palácio de Belém como uma sucessão de salas temáticas. Salas que o Presidente percorre nas suas deambulações solitárias. Cada sala está decorada ao estilo de uma década. A sala dos anos 60. A sala dos anos 70. A sala dos anos 80. E as imagens dessas décadas deslizam como uma seta do tempo perante o olhar do Presidente até à última sala em que a realidade do Palácio se sobrepõe às incidências do mundo real. Quando quer falar da realidade do Portugal contemporâneo, o Presidente hesita entre a ficção da sala e a realidade da rua. O Palácio de Belém é uma espécie de lugar da solidão política presidencial, o “refúgio do tempo” em que o Presidente pode sentar-se na contemplação do passado enquanto Portugal passa apressado num autocarro cheio e atrasado para o encontro com o futuro. O Presidente que já foi o grande predador da política portuguesa está hoje transformado numa nuvem imprevisível que se refugia politicamente num lugar escondido. Um lugar escondido bem à vista de Portugal.

Chamar o Primeiro-Ministro de “rural” é uma marca de superioridade social. O cosmopolita Presidente não compreende os silêncios e a reserva de um camponês tímido na grande cidade. Há qualquer coisa que nos remete para a “Queda de um Anjo” ou “A Cidade e as Serras”, mas fica a imagem do português provinciano e desconfiado com os estranhos hábitos da capital e que se refugia no silêncio para não ser enganado pelos artifícios da política e da cidade. Para o Presidente, raspe-se o verniz de um português e encontraremos o camponês preocupado com as couves na horta.

Chamar o anterior Primeiro-Ministro de “oriental” e “lento” é construir um “perfil racial” mais apropriado aos tempos coloniais. É o paternalismo associado à “missão civilizadora” do Império que o Presidente viu e viveu por dentro com o detalhe político de uma família orientada pelos valores do Estado Novo. Designar a Procuradora Geral da República como “maquiavélica” é sublinhar a condição de uma actividade política associada a um órgão de soberania que não deve ter uma acção politicamente orientada. A separação de poderes fica na letra morta da Constituição. Designar os “crimes da escravatura” e a necessidade de “reparações” é um discurso que propõe um “referendo sobre o passado”, um discurso que opera uma simplificação irresponsável sobre um assunto complexo de séculos. Nas suas declarações, o Presidente foi colonial e woke com a naturalidade de uma dialéctica kitsch.

O Presidente está transformado num estado de alma. O Presidente tem de ser analisado de todos os lados e percorrido em todas as direcções.

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