Face ao protecionismo dos EUA e à ameaça russa, a Defesa da UE deve passar pelo Reino Unido

  • Joana Abrantes Gomes
  • 6 Junho 2024

À procura de desenvolver a indústria de Defesa e, assim, dinamizar a economia europeia, Bruxelas vê com bons olhos o alargamento da cooperação com o Reino Unido.

Mais de três décadas depois do lançamento do mercado único, os equipamentos militares são os únicos bens que continuam sob a esfera exclusiva dos Estados-membros da União Europeia (UE). Porém, a invasão russa da Ucrânia tornou inadiável o debate sobre uma Política Comum de Defesa, para a qual é imperativo agilizar a produção e comercialização destes produtos intra-UE. Face aos diferentes interesses próprios entre os 27 nesta matéria e às políticas protecionistas dos EUA e da China, a chave pode estar num novo acordo com o Reino Unido.

Não é possível fazer uma Política Comum de Defesa sem ter o Reino Unido como um parceiro privilegiado“, defende Ana Santos Pinto, ex-secretária de Estado da Defesa Nacional, em declarações ao ECO. Segundo a investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa (IPRI-UNL), quer Bruxelas, quer o antigo membro do bloco comunitário já perceberam que alargar a cooperação entre ambos à área da Defesa será “inevitável” e “mutuamente benéfico”. Mas porquê?

Quando apresentou, em março, a Estratégia Industrial Europeia de Defesa, acompanhada de uma proposta para um Programa Europeu para a Indústria da Defesa, a Comissão Europeia deu o primeiro passo para a construção de uma Política Comum de Segurança e Defesa. O objetivo não é adquirir armamento para a UE, mas antes incentivar e facilitar os contratos de compra conjunta de equipamento militar entre os Estados-membros não só a países terceiros, como também dentro do bloco, pois é a única forma de o Executivo comunitário retirar da esfera exclusiva dos 27 a componente da Defesa sem precisar de mexer nos Tratados – em que se depararia com a resistência de vários líderes europeus.

Assim, se, até aqui, os instrumentos existentes no âmbito da política de Defesa da UE têm financiado apenas o lado prático de missões civis e operações militares (através do Mecanismo Europeu de Apoio à Paz) e a componente de investigação e desenvolvimento, em universidades ou em parceria destas com as Forças Armadas, de protótipos de equipamentos ou software para uso civil e militar (através do FED – Fundo Europeu de Defesa), o que esta nova estratégia vem fazer é colocar o ónus do financiamento europeu na produção e comercialização de produtos militares, aplicando-lhes os mecanismos de livre circulação do mercado único que já existem para outros bens e serviços.

São cinco, seis Estados europeus que estão entre os 100 maiores do mundo [em termos de indústria de Defesa]. Os restantes não têm escala, até agora, para beneficiar no retorno às suas economias na mesma dimensão. Ou seja, vão ser essencialmente compradores e não produtores e vendedores. E, para isto ser verdadeiramente comum e haver um benefício alargado, vai ser necessário criar mecanismos de equilíbrio e de equidade de participação de todos os Estados-membros

Ana Santos Pinto

Ex-secretária de Estado da Defesa Nacional e investigadora no IPRI-NOVA

A intenção da Comissão Europeia começou a ser visível ainda antes da apresentação da estratégia industrial, quando, em janeiro de 2021, criou a Direção-Geral da Indústria da Defesa e do Espaço, colocando-a sob a tutela do comissário do mercado único. A isso acresce a sugestão de Ursula von der Leyen – que concorre a um segundo mandato em Bruxelas – para criar uma pasta dedicada à Defesa no Executivo comunitário, de forma a robustecer ainda mais as competências deste nesta área.

Isto representará uma “deslocação das matérias de Defesa e até do próprio processo de decisão do Conselho para a Comissão”, considera Liliana Reis, deputada do PSD que é vice-presidente da comissão parlamentar de Defesa Nacional. Mas, para a antiga professora universitária de Relações Internacionais, é “revelador de algo mais profundo”, que é a regra da unanimidade, contemplada nos Tratados para esta área, poder ser posta em causa em detrimento da regra da maioria qualificada.

Com o entendimento de que a indústria de Defesa é uma das áreas em que a UE pode alavancar a reindustrialização da sua economia, tanto na componente estritamente militar como na componente dupla (ou seja, civil e militar), a aposta da França, outrora reticente em colocar os equipamentos militares no mercado comum, tem sido neste sentido. Aliás, é também a isto que se refere Emmanuel Macron quando fala na “autonomia estratégica” da União, para fazer frente às políticas protecionistas dos Estados Unidos e da China e à ameaça da Rússia.

Mas, para esta reindustrialização ter retorno na economia europeia, Ana Santos Pinto chama a atenção para o cumprimento de “dois critérios”: por um lado, os produtos de Defesa “têm de ser produzidos pelas indústrias dos países da UE” e, por outro, têm de resultar de projetos “conjuntos” entre Estados-membros. “É a única maneira de o financiamento comunitário comum ter uma capacidade de regresso às economias” dos 27, como acontece nos EUA, em vez de “beneficiar e alimentar outras economias”, justifica a investigadora do IPRI-UNL.

O relatório do antigo primeiro-ministro italiano Enrico Letta sobre o futuro do mercado interno da UE, apresentado em abril, dá argumentos para esta solução. No entender da também investigadora do Instituto da Defesa Nacional (IDN), a proposta de Letta confere “a base de suporte de conhecimento técnico”, defendendo que “colocar os produtos de Defesa no mercado único é a boa maneira de o bloco comunitário criar critérios de aquisição e de comercialização conjuntos e, ao mesmo tempo, criar formas de financiamento desta indústria” – o que também estará em discussão na próxima legislatura.

Fragmentação do PE e interesses dos 27 podem dificultar “luz verde”

Fazer aprovar o programa de 1,5 mil milhões de euros proposto pela Comissão Europeia, no entanto, poderá não ser assim tão fácil. Desde logo pela maior fragmentação dos grupos políticos no Parlamento Europeu que deverá resultar das eleições europeias, se se confirmarem as sondagens que antecipam um crescimento da extrema-direita e uma menor votação nos partidos que formam a “grande coligação”.

Por outro lado, é preciso ter em conta a “geometria variável” da União Europeia, segundo a qual, como refere Liliana Reis ao ECO, os 27 Estados-membros não têm todos as mesmas necessidades, nem a mesma perceção de ameaça e nem a mesma capacidade de produção industrial no setor da Defesa.

Ana Santos Pinto realça a diferença de escala entre os cinco países da UE que têm empresas de armamento entre as 100 maiores do mundo e as restantes duas dezenas de Estados cuja indústria de Defesa não tem a mesma dimensão, não podendo, por isso, beneficiar de um retorno económico tão grande neste setor.

De acordo com os mais recentes dados do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI, na sigla em inglês), relativos a 2022, a italiana Leonardo é a maior empresa de armamento na UE – mas, a nível mundial, está em 13.º lugar –, seguida da transeuropeia Airbus e depois pelas francesas Thales, Dassault e Naval Group. Do ponto de vista das despesas militares, o SIPRI destaca a Polónia com um aumento dos gastos de 75% face a 2022, para quase 30 mil milhões de euros.

Com a indústria de Defesa do bloco comunitário concentrada em Itália, França, Alemanha, Suécia e Espanha, os restantes países “vão ser essencialmente compradores e não produtores e vendedores”, assinala Ana Santos Pinto. Por isso, defende que, para a política de Defesa ser “verdadeiramente comum” e existir um “benefício alargado”, será necessário criar “mecanismos de equilíbrio e de equidade de participação de todos os Estados-membros”.

A título de exemplo, a antiga secretária de Estado sugere mecanismos como a “discriminação positiva de Estados com nanoempresas” – como é o caso de Portugal, em que cerca de 90,6% do tecido empresarial da Defesa é composto por pequenas e médias empresas – ou a “majoração a projetos que tenham um número mais alargado de Estados com diferentes desenvolvimentos do ponto de vista da indústria“.

É precisamente aqui que pode entrar o Reino Unido. “Quando o Reino Unido saiu da União Europeia nós não perdemos apenas um Estado-membro; nós perdemos um membro permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas e perdemos um Estado com capacidade nuclear, pelo que ficámos apenas com a França“, lembra a deputada Liliana Reis, sublinhando a importância dos britânicos em matéria de Defesa para além da sua indústria e das suas capacidades militares.

Para os britânicos, o interesse em alargar a cooperação com a UE à área da Defesa é a possibilidade de conseguirem um “acesso privilegiado” à compra conjunta de equipamentos militares no mercado único europeu. “Porque sabem que não conseguem competir com os Estados Unidos, onde se encontram as cinco maiores empresas do mundo neste setor”, nota Ana Santos Pinto, alertando, no entanto, para as consequências que este acordo pode ter nas relações transatlânticas.

Ao mesmo tempo, o Reino Unido era também o elo de ligação da UE aos EUA. “Londres era quem tinha o telefone direto de Washington para a UE. A sua saída do bloco também tornou a visão da Europa mais continental, com o domínio da Alemanha e da França“, acrescenta Liliana Reis, que, nesta lógica, vê também a Noruega e a Islândia como parceiros da UE no âmbito de uma comunidade mais alargada de Defesa.

O Estado mais importante neste momento é o Reino Unido. É crucial, para além da sua indústria, para além da sua capacidade de Defesa, é sobretudo por causa do elemento. Quando o Reino Unido saiu da União Europeia nós não perdemos apenas um Estado-membro, nós perdemos um membro permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas e perdemos um Estado com capacidade nuclear, pelo que ficámos apenas com a França.

Liliana Reis

Deputada do PSD e vice-presidente da comissão parlamentar de Defesa Nacional

Concretizando-se esta transferência para a esfera comunitária de competências na Defesa, a investigadora Ana Santos Pinto antevê que pode levar a uma revisão das ameaças e dos riscos definidos na Bússola Estratégica. Tendo em conta que foi aprovada cerca de um mês depois do início da invasão russa da Ucrânia e hoje as circunstâncias são diferentes, os Estados-membros precisam de “ajustar as prioridades” e “verificar se não há lacunas por preencher”.

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