Europeias: Campanha contaminada pelo “pântano” governativo nacional
As eleições de 9 de junho vão ser uma espécie de segunda volta das legislativas num teste às lideranças de AD e PS. Imigração e descida do IRS foram os temas quentes. Cotrim foi o que mais brilhou.
A campanha eleitoral para as europeias terminou com AD e PS a colocarem todas as fichas para passar no teste de 9 de junho, que irá funcionar como espécie de segunda volta das legislativas, que deixou o país mergulhado num “pântano governativo”, sem PSD e CDS, os partidos que suportam o Governo, a conseguirem uma maioria sólida no Parlamento. Os resultados eleitorais serão um claro teste às lideranças dos dois maiores partidos, apontam os especialistas em ciência política e comentadores políticos ao ECO.
Os temas europeus, como o alargamento a leste, a defesa e a guerra na Ucrânia, começaram por dominar, mas rapidamente caíram para segundo plano assim que a caravana partidária saiu à rua. E a campanha acabou por ser contaminada pelas polémicas nacionais como o caso das gémeas, a descida do IRS, que o PS conseguiu aprovar em coligação negativa, ou pelo plano para as migrações, apresentado pelo Executivo. Este último tema, de sensibilidade extrema, veio para a praça pública com um destaque como nunca antes tinha tido. A tal ponto que André Ventura foi acusado por um imigrante de racista.
Também houve surpresas, obstáculos e momentos de confronto que merecem destaque. Finda a campanha, segue-se agora o dia do voto marcado para 9 de junho. No Parlamento Europeu, Portugal tem 21 lugares reservados que estão a ser disputados por 17 forças partidárias, duas delas são coligações.
As notas dos especialistas
Europa primeiro, Portugal a seguir
“A campanha foi muito marcada pelas eleições legislativas, com os partidos a tentar demarcar-se, insistindo nos temas europeus, mas sabendo que não podem fugir a uma leitura mais nacional, de avaliação do desempenho da AD e do PS”, sumariza ao ECO Ricardo Jorge Pinto, comentador político da RTP.
O também jornalista da Lusa salienta que “os resultados eleitorais terão mais impacto para os partidos do que propriamente para os cabeças de lista”, porque “não são figuras de primeira linha”, acrescenta o professor do departamento de estudos políticos Ciência Política da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
“A nacionalização da campanha dá-se, porque estamos a viver um pântano governativo, porque o Governo não tem apoio maioritário na Assembleia da República. Como não é possível uma governação minimamente coerente e com capacidade reformista, vamos vivendo em ambiente pré-eleitoral e tanto pode ser uma segunda volta das legislativas passadas como uma primeira volta para umas eleições legislativas antecipadas”, conclui Pedro Marques Lopes, comentador político da SIC Notícias.
Num momento inicial, “houve uma tentativa de discutir os temas da Europa e a política europeia, a nível estratégico, apesar de ser a um ritmo muito pachorrento”, segundo Luís António Santos, professor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho. Porém, “quando a campanha vai para a estrada, a campanha torna-se mais nacional. Dá-se início ao ciclo de reações entre os candidatos – que não é produtiva –, a justiça ganhou espaço mediático e o Governo entrou na campanha com a apresentação de planos estratégicos”, aponta o politólogo.
Ainda assim, e, “em comparação com as eleições europeias anteriores, esta foi a primeira que esteve muito centrada nos temas europeus. Faço uma avaliação positiva porque foi mais esclarecedora. Quanto aos temas nacionais, é impossível não haver uma contaminação”, indica Paula Espírito Santo, investigadora no Centro de Administração e Políticas Públicas (CAPP) do Instituto de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP).
Marco Lisi, professor do departamento de estudos políticos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, também considera que “nesta campanha falou-se mais das Europeias do que o habitual, sobretudo por causa da guerra na Ucrânia, o alargamento da Europa a leste, das eleições norte-americanas e do julgamento de Trump”.
Os temas quentes
Imigração, IRS, coligações negativas
A imigração foi um dos temas quentes que dominou a campanha, designadamente à boleia do plano para as migrações aprovado pelo Governo e que, entre outras medidas, prevê o fim da manifestação de interesse para um imigrante poder entrar no país. Na prática, os estrangeiros precisam de apresentar previamente um contrato de trabalho ou um outro instrumento que comprove uma qualquer relação laboral para ter visto de residência.
Durante a apresentação do pacote, o primeiro-ministro, Luís Montenegro, repetiu o que já tinha defendido na campanha para as legislativas de que “Portugal não pode ter as portas escancaradas”. O plano mereceu elogios por parte do Chega e duras críticas da esquerda, incluindo do PS.
“A imigração acabou por ser um tema muito falado. Inicialmente era bandeira da extrema-direita, mas com a aprovação de um pacote legislativo a dias das eleições acabou por ganhar grande destaque”, considera Pedro Marques Lopes.
A aprovação do projeto do PS para a descida do IRS, em coligação negativa e abstenção do Chega, foi outros dos temas a marcar a agenda mediática e política. “É uma questão que já se previa que poderia acontecer e que vem confirmar a fragilidade do Governo”, destaca Marco Lisi.
Para Ricardo Jorge Pinto, “esta união entre PS e Chega será avaliada pelos eleitores”. “O PS podia não ter apresentado um projeto próprio, uma vez que a proposta da AD para a redução do IRS era parecida e chegar a um acordo com a AD. Mas, em vez disso, preferiu unir-se ao Chega. Isto pode prejudicar o PS, sobretudo depois de o anterior primeiro-ministro de António Costa ter defendido que agora estava na hora de aliviar a carga fiscal da classe média”, constata o comentador da RTP.
Mas esta coligação negativa também pode “prejudicar o Chega”. “Os eleitores do partido de André Ventura podem não gostar destas alianças com o PS e poderão mudar de sentido de voto agora nas europeias”, sublinha Marco Lisi. Aliás, “as últimas sondagens indicam que estão a aumentar o número de indecisos, ou seja, os eleitores estão a repensar o seu sentido de voto”, reforça Ricardo Jorge Pinto.
Quem mais brilhou…
João Cotrim de Figueiredo
Para quase todos os especialistas em Ciência Política e comentadores políticos, consultados pelo ECO, o cabeça de lista da IL, João Cotrim de Figueiredo, foi o candidato que mais se destacou pela positiva. “Cotrim de Figueiredo, em contraponto com o atual líder, tem, de facto, uma presença serena mas muito assertiva. Rui Rocha não está no mesmo patamar e não é surpresa. Já conhecíamos o candidato. É uma figura que está bastante confortável naquele papel, ao contrário de, por exemplo, Tânger-Corrêa”, segundo Luís António Santos.
“Todos fizeram um bom contributo no que toca ao esclarecimento das suas mensagens políticas. Do ponto de vista da projeção, o cabeça de lista da Iniciativa Liberal acaba por ficar melhor posicionado. Já tinha mostrado que tem competências de comunicação, diálogo e conhecimento de assuntos europeus”, diz Paula Espírito Santo.
Ricardo Jorge Pinto também elege Cotrim de Figueiredo assim. Não obstante, Pedro Marques Lopes reconhecer que o cabeça de lista da IL teve o melhor desempenho na campanha, o comentador conclui que “os primeiros candidatos dos dois maiores partidos, Sebastião Bugalho, da AD, e Marta Temida, do PS, tiveram maior protagonismo”.
…e quem ficou na sombra
António Tânger-Corrêa
Quanto ao candidato com pior desempenho, as opiniões dividem-se mais. Contudo, a maioria dos politólogos e comentadores ouvidos pelo ECO dão a pior nota ao cabeça de lista do Chega, António Tânger Corrêa.
“Os partidos sem representação parlamentar acabam sempre por ficar à sombra. Mas, entre os principais candidatos, Tânger Corrêa acaba por ter dificuldade em identificar-se com os temas europeus. É ambíguo nas respostas. Tem certamente outras competências, mas no campo da mensagem creio que tem mais dificuldades a impor a sua presença, até porque o próprio líder [André Ventura] acaba por granjear mais apoio”, segundo Paula Espírito Santo.
As polémicas declarações do candidato do Chega “obrigaram André Ventura a assumir as rédeas da campanha”, lembra Ricardo Jorge Pinto. Assim, Tânger Corrêa recolheu-se para a posição de discípulo submisso e seguiu na caravana num carro diferente do do líder partidário. Desde a alegada existência de uma Nova Ordem Mundial, a mando de uma elite obscura, até à insinuação de que os judeus que trabalhavam nas Torres Gémeas terão sido avisados do ataque da Al-Qaeda a 11 de setembro de 2001, passando pela teoria racista da grande substituição populacional à existência de um plano secreto para a recuperação da economia nacional com ajuda de norte-americanos, que Ventura desconhecia, foram vários os episódios caricatos do candidato do Chega.
“Tânger Corrêa mostrou-se muito pouco preparado para os debates, com posições, ideias muito desfasadas da realidade. Ou seja, ficou muito aquém das expectativas do Chega e obrigou Ventura a salvar a campanha, mas não sei se será suficiente para evitar uma penalização nas urnas”, alerta Ricardo Jorge Pinto. De salientar, que, neste momento, o Chega não tem assento no Parlamento Europeu.
A(s) surpresa(s)
“Penso que o momento mais inesperado foi o Presidente da República se ter intrometido na campanha ao aprovar a revogação das manifestações de interesse, proposta pelo Governo. Aconteceu tudo em 24 horas e logo sobre um tema que marcou a campanha, a imigração. Sabemos que o Presidente é hiperativo mas sendo a última semana das eleições, poderia ter optado por promulgar o diploma no final da campanha”, conclui Luís António Santos.
Já Paula Espírito Santo considera que a surpresa poderá mesmo ser João Cotrim de Figueiredo. “Olhando para as sondagens, poderá conseguir ter um resultado muito positivo nas eleições”, estima a politóloga.
Para Ricardo Jorge Pinto, “a varridela que o PS fez nas listas” foi uma das maiores surpresas. “Pedro Nuno Santos quer colocar a sua impressão digital para o bem e para o mal”, acrescentou. “Os partidos mais pequenos, nomeadamente a CDU, surpreenderam pela combatividade”, indica. “Sabendo que está em queda, o comunista e cabeça de lista da CDU, João Oliveira, conseguiu passar a sua mensagem, apesar das críticas por causa da posição dúbia em relação à guerra na Ucrânia”, segundo o comentador político.
O alvo
Sebastião Bugalho “foi o candidato que sofreu mais ataques pessoais pela sua juventude, falta de experiência e pela transição entre lugar de comentador e cabeça de lista da AD”, de acordo com Pedro Marques Lopes.
“Não é muito normal um comentador estar a dar notas aos líderes partidários, durante a campanha para as legislativas, de 10 de março, e a seguir é convidado pelo presidente do PSD e primeiro-ministro, Luís Montenegro, para liderar a lista da AD para as europeias”, analisa o comentador político.
Ricardo Jorge Pinto vai no mesmo sentido: “Sebastião Bugalho foi muito criticado por ter passado de jornalista a candidato”.
Para além disso, houve um momento de maior tensão com a entrada na campanha de Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia. O discurso da também candidata do Partido Popular Europeu foi interrompido, na quinta-feira passada, no Porto, por dezenas de manifestantes, que pediram uma “Palestina livre” dos bombardeamentos de Israel. Em reação, von der Leyen atirou: “Se vocês estivessem em Moscovo, estavam agora na prisão”. De facto, alguns manifestantes acabaram detidos pela polícia.
O confronto
O episódio em que o líder do Chega, André Ventura, foi confrontado por imigrante que o acusou de “racista” foi, para os peritos ouvidos pelo ECO, o “confronto” da campanha.
Durante uma ação na Póvoa de Varzim, um imigrante do Bangladesh acusou André Ventura de incitar ao racismo. Após o líder do Chega afirmar que só pedia que os migrantes, “como todos os outros”, cumprissem a lei, membros da comitiva apelaram aos jornalistas: “Parem de lhe dar palco! Ainda existem portugueses neste país”, tendo havido mesmo uma mulher que afirmou: “Se estás mal, volta para o teu país”.
“A minha filha” de um ano “nasceu cá e mandei-a embora por haver muita resistência aos imigrantes”, afirmou o migrante entre lágrimas, em frente ao líder do Chega que não pareceu comover-se com o relato, atirando apenas: “Tem de cumprir as regras, você e todos”.
Mais tarde, Ventura disparou contra os jornalistas, acusando-os de serem “verdadeiros disseminadores de notícias falsas”. “E foram, sobretudo, o inimigo do povo – que é aquele que tenta manipular o povo em prol de uma ideia política”, afirmou, insistindo que o migrante que o acusou de racismo foi “plantado” por adversários políticos. Questionado sobre a quem dirige diretamente a acusação, o presidente do Chega respondeu: “Todos os que estão contra nós”.
O elemento caricato
O ADN publicou um vídeo insólito em que a sua cabeça de lista, Joana Amaral Dias, protagoniza uma cena inspirada no filme Kill Bill, de Quentin Tarantino. O líder do partido, Bruno Fialho, veste a papel de padrinho, responsável por uma nova ordem mundial que manda na Europa que a candidata do ADN, qual Uma Thurman, quer destruir.
“Conseguirmos a redução da população, a sexualização precoce das crianças e agora a guerra é melhor que a paz. Só falta um objetivo: impedir que aquela mulher [Joana Amaral Dias] entre no Parlamento Europeu. Acabem com ela, vão!”, proclama Bruno Fialho enquanto acaricia uma ovelha de peluche. É aí que entra Amaral Dias à Kill Bill para destruir Ursula von der Leyen, Sebastião Bugalho e André Ventura.
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