Índia, as lições de um modelo económico familiar único
Apesar da maior população do Mundo, a Índia tem um atraso económico e empresarial de décadas. Será que os seus grandes Grupos Familiares podem liderar uma geração de riqueza global?
Porquê falar em Grupos Empresariais na Índia e em particular de raiz familiar? É simples. Porque sendo o país mais populoso e a quinta maior economia do Mundo seria natural esperar que tivesse uma pujança exportadora e um desenvolvimento tecnológico de escala mundial em certos setores como tem a China ou mesmo a Rússia …, mas está longe de alguma vez a ter tido e na nossa opinião de a vir a ter na próxima década. Por ser um caso tão particular e mesmo único a nível mundial, ao modelo dos Grupos Empresarias Familiares que conquistaram uma dimensão de nível mundial à custa do enorme mercado doméstico indiano e aos obstáculos da estrutura económica e social que têm inibido o desenvolvimento do País.
Em Portugal não podemos falar da Índia sem a colocar no contexto de séculos de uma riquíssima história comum
Com a chegada de Vasco da Gama a Calcutá em 1498, centenas de comerciantes e aventureiros portugueses parecem durante décadas para a Índia na busca de fortuna, fixando-se nas várias praças das costas sul e sudoeste, em particular Goa. A influência portuguesa ganha poder e raízes. Em“Victory City”, Salman Rushdie inspira-se nas ruínas de Vijayanagar e em fragmentos da mitologia Hindu para nos brindar com um belo romance fábula dos séculos XIV a XVI. A semi-deusa Pampa Kampana e as filhas estabelecem um poderoso reino de amazonas centrado na idílica cidade de Bisnaga e toma por amante Domingos Nunes, um comerciante de cavalos de Goa que a arrebata pela beleza, pelos modos suaves e por uma virilidade incomparável. Para além da fábula de Rushdie que nos deixa bem na fotografia, ainda hoje em Goa se ouve cantar o fado, se venera Santo António e se entende um dialeto português.
Após a independência do Reino Undo em 1948, a Índia tenta reaver pacificamente os três territórios de Goa, Damão e Diu a Portugal. Durante mais de 13 anos Salazar recusa negociar e em 1961 a paciência indiana esgota-se. Um enorme exército invade os territórios levando as forças portuguesas portugueses, dez vezes menos, a partir recusando obedecer às ordens de Salazar de lutar até á morte do último homem. São presos à chegada a Portugal e, mais tarde, libertados.
A Índia hoje: fatores históricos e sociais distintivos e números chave da sua economia
Após a independência e mantendo-se fiel aos princípios da filosofia hindu do Mahatma, a economia indiana passa do regime de propriedade privada sob a ocupação inglesa para a coletivização da propriedade num modelo fortemente soviético que se prolonga até ao fim da guerra fria em 1991.
Ao contrário da China, onde desde 1978 a liderança de Deng Xiaoping foi preparando o Estado para a abertura à iniciativa privada, a Índia é apanhada de surpresa com o fim da URSS e isso explica em boa parte o seu atraso e a sua pobreza, assim como a superior veneração dos princípios do hinduismo que, ao contrário das religiões ocidentais, não estimularam o desenvolvimento da felicidade pelo trabalho, do prazer pela criação de riqueza ou do empreendedorismo. O Estado continua a manter controlo de toda a economia – exceto algumas franjas sob regulação apertada entregues a grandes Grupos Empresariais Familiares tradicionais virados para o mercado doméstico o que leva a que a uma balança de transações fortemente deficitária, um modelo com evidentes semelhanças com Salazar quando foi concentrando o grande capital privado num punhado de mãos de sua confiança.
A economia, não obstante, tem grande dimensão. Com uma população de 1,428 biliões que a coloca no maior país do Mundo, a Índia possui um PIB de 4 038 bi USD que a posiciona como a quinta maior economia mundial. No entanto, a taxa de crescimento entre 6% e 7 % p.a. nos últimos 20 anos mas que tem vindo a cair devido ao crescente gap de competitividade com a média mundial. Neste contexto, o PIB per capita coloca a Índia no limiar da pobreza mundial – com 2,731 USD está na 132ª posição acima do Bangladesh ou do Uzbequistão mas abaixo dxe São Tomé e Príncipe, Sri Lanka ou Nicarágua.
A estrutura do setor empresarial na Índia e a sua importância económica e social hoje
Não obstante um contexto desfavorável, a Índia desfruta de uma rica história de iniciativa empresarial familiar. As empresas familiares na Índia existem naturalmente há muito tempo e a sua natureza e estrutura tem evoluído lenta e gradualmente ao longo dos séculos nos primórdios da civilização indiana, o comércio e o empréstimo de dinheiro eram feitos em bazares através de lojas (Dukaans), de propriedade de comunidades especializadas do norte da Índia que dominavam a gestão dos mecanismos do dinheiro – taxas de câmbio, inflação… Eram os Seths ou Sahukaars, o que significa “os ricos”
A abertura que o Estado foi gradualmente obrigado a fazer face às necessidades da economia interna ou à degradação das infraestruturas sob sua gestão levou a que a economia esteja hoje nas mãos de famílias empresariais: 90% das empresas na Índia, sejam PMEs ou grandes Grupos Empresariais Familiares, são detidas, controladas e geridas por famílias. Estas continuam a crescer, representando uma grande parte da sociedade indiana, constituindo a espinha dorsal da economia indiana e o grande motor do crescimento económico e social do País
Há um lado social relevante que tem a ver com o imaginário que estas famílias super-ricas exercem na sociedade. Um exemplo. Como para os indianos uma boda é de facto o momento de uma vida e de mostra máxima de opulência, durando vários dias com milhares de convidados, não surpreende que o casamento entre membros de duas das grandes Famílias Empresariais indianas tenha sido o mais caro de que há registo desde sempre em todo o Mundo: 55 milhões de USD, realizado em 2004 no Palácio de Versalhes. Os felizes noivos? Vanisha Mittal e Amit Bhatia, duas das cinco maiores fortunas familiares indianas.
Os Grupos Empresarias Familiares indianos: quem são, o que os caracteriza e que atributos distintivos possuem
Em geral, os maiores grupos indianos identificam-se pelos apelidos das famílias que os controlam, casos da TATA, Ambani, Godrej, Bajaj, Hindujas, Ruias, Mittlas, Thapars, Adanis, Bilras, Jindals ou Mahindras entre muitos outros que são controlados pelas respetivas famílias. Um valor marcante destes Grupos na Índia é o papel do patriarca da família, líder altamente respeitado e incontestado do Grupo, um modelo muito semelhante ao de um Imperador nas eras da antiguidade clássica.
Os Grupos indianos são fortemente marcados pela preservação da sua personalidade distintiva, da tradição do seu ethos e dos seus valores de geração em geração, à volta dos quais existe uma união fortíssima no seio da Família Acionista – entre ramos familiares e entre membros de diferentes gerações. Esta estabilidade é de facto um aspeto distintivo e uma fonte potencial de vantagem competitiva, infelizmente não materializada devido à atrofia gerada pelo enorme foco no mercado doméstico.
Embora os maiores Grupos Empresariais Familiares indianos sempre tenham desafios a enfrentar, eles têm demonstrado de forma sistemática um desempenho superior às empresas públicas, locais cotadas e multinacionais, encontrando sempre formas engenhosas de superar as limitações e, quando a situação é mais grave, sobreviver às dificuldades. O desempenho financeiro das empresas familiares, como o volume e o crescimento das receitas, a rentabilidade, o nível de retorno e a capacidade financeira são normalmente muito fortes e claramente superiores ao desempenho das empresas não familiares, sejam cotadas locais ou multinacionais.
Principais desafios dos Grupos Empresariais Familiares indianos
- Lentidão na evolução de modelos de gestão e tecnologias mais avançadas
Na era acelerada das tecnologias disruptivas e da digitalização, as empresas familiares já não podem continuar a operar com as velhas tradições e metodologias ultrapassadas do passado. Há claramente nestes grandes Grupos Familiares indianos uma necessidade de evolução de mentalidades corporativas que se mantiveram muito agarradas aos modelos dos anos 70 e 80 do século passado, não obstante a passagem de uma ou duas gerações pela liderança. Já as metodologias operacionais no seio dos negócios sofreram uma evolução importante que foi aliás decisiva para a sua própria sobrevivência e preservação dos níveis de desempenho destes Grupos. Estas evoluções tiveram algum efeito na dinâmica familiar e também na própria liderança dos negócios, mas ainda não o suficiente.
- Redução da autonomia e do poder dos Acionistas na gestão financeira
Com o aumento da escala destes Grupos, as Famílias Acionistas começaram a ter dificuldades na gestão de fluxos de caixa operacionais e as necessidades de financiamento para fazer face ao seu processo de crescimento habitual. Como resultado, os Acionistas têm perdido gradualmente a autonomia de gestão financeira dos seus Grupos em prol das maiores instituições financeiras.
- Preservar a harmonia da governança familiar
A governança familiar é talvez um dos maiores desafios. Está a tornar-se cada vez mais difícil assegurar uma governação familiar adequada – a falta de comunicação entre os membros da família, o excesso de controlo por parte do patriarca (o tal “Imperador”), a ausência de políticas familiares escritas e/ou acordadas começam em muitos casos a criar problemas que prejudicam o próprio negócio a longo prazo e dificultam o desenvolvimento de carreira dos membros da família e dos colaboradores mais séniores. Ao mesmo tempo, familiar precisa de encontrar um bom equilíbrio entre a alocação de fundos a operações e a distribuição de dividendos. Em muitos Grupos indianos balancear a propriedade, a transparência de gestão e a profissionalização na gestão de fundos têm-se tornado cada vez mais difícil de conseguir.
- Falta de preparação de processos de sucessão: o caso da família Tata
Muitas empresas familiares foram constituídas no final da década de 1980 e início da década de 1990, quando foram introduzidas reformas económicas. Até à data, a maioria dos fundadores de empresas e eles próprios estão à beira da reforma, sem uma sucessão planeada, seja dentro ou fora da família. Sabemos que estes processos demoram anos e o que acontece é haver pressão para uma solução que não foi preparada, obrigado o líder do Grupo a tratar do assunto à pressa. O caso da Família Tata é paradigmático e vale a pena apresentar em detalhe por ser tão típico do modelo indiano.
Desde há décadas que o nome Tato se confunde com a própria Ìndia estimulando com o seu sucesso centenas de empresários indianos que seguiram este modelo clássico de Grupo Empresarial Familiar nas últimas gerações. Ratan Tata, o mais conhecido e carismático líder empresarial indiano, resulta de uns excelentes processos de sucessão – mas quando chegou a sua vez fez tudo o que não devia ter feito. O Grupo foi fundado no final do seculo XIX por um dos maiores empresários da sua geração, Jamsetji Tata. Prepara muito bem a sucessão para o seu filho Ratanji Tata e este por sua vez para o neto do Fundador, Ratan Tata. Ratan estuda em Cornell nos anos 50 e desenvolve uma carreira de décadas no Grupo até assumir a sua Presidência em 1991, sucedendo ao Pai num processo de sucessão exemplar. Lança o Grupo numa cavalgada de aquisições internacionais e novas áreas de negócio – e em 21 anos multiplicou as receitas por 50 e os resultados por 40. No entanto, Ratan Tata esteve para se casar quatro vezes, mas cancelou sempre no último minuto. Sem filhos e com o modelo patriarcal tata, a sucessão seria sempre complicada. Em 2022 começa uma novela – Ratan nomeia o seu irmão e depois um CEO externo, ambos acabaram despedidos desvalorizando o Grupo. A família Mistry agarra a oportunidade, passa a ser a maior acionista do Grupo e uma nova matriarca assume o poder absoluto – a jovem Cyrus Mistry, aguerrida, mas com pouca experiência. Dura pouco no lugar – Ratan cria e assume o lugar de PCA em 2013 e transfere-o para um profissional externo, Natarajan Chandrasekaran, que ainda ocupa o lugar. Um folhetim ao melhor estilo de Bollywood..
- Falta de capacidade de preservar a união acionista – com consequências imprevisíveis
Como mostra a história de Ratan Tata, o modelo de governo centralizado gera muitas tensões e vários Grupos Empresariais Familiares foram-se separando para obter paz interna e um melhor controlo de gestão. Desde a década de 1970, este movimento de cisão foi muito rápido e abrangeu Grupos como Tata, Modis, Walchands, Singhanias, Mafatlals, Shrirams, Thapars, Sarabhais, Goenkas e Ambanis – todos passaram por separações.
Alguns tiveram sucesso e tornaram-se maiores e melhores, mas outros falharam e colapsaram totalmente
Em direção ao futuro: uma profunda alteração da morfologia tradicional dos Grupos Empresariais familiares indianos à luz das melhores práticas ocidentais…
A maioria dos Grupos Empresariais Familiares indianos nasceu após a independência em 1948 ou durante as reformas económicas das décadas de 1980 e 1990 – são Grupos ainda jovens. No entanto, estão a mudar a forma como são controlados, geridos e governados.
Há uma preocupação real por parte dos Acionistas destes Grupos com a criação e proteção de riqueza, status social, reputação familiar e boa vontade. Para garantir isso, as fasquias de autodisciplina e a qualidade da governação societária são colocadas a um nível alto conduzindo os negócios a bases sólidas e a um bom modelo de supervisão.
Há uma consciência crescente da importância que um Protocolo de Família, um Conselho de Família e a estrutura de governança desempenham para manter a Família Acionista coesa e alinhada e cada um dos seus membros adequadamente envolvidos
As empresas familiares estão agora a aceitar prontamente gestores profissionais não familiares a bordo assim como suporte profissional externo em temas antes considerados sensíveis demais para abrir a pessoas de fora – estratégia, governança familiar ou sucessão por exemplo. Vários Grupos Empresariais familiares estão a desenvolver modelos onde a Comissão Executiva é constituída por equipes profissionais para o negócio no dia-a-dia sob a orientação e estratégias de um Conselho de Administração composto por Acionistas e Independentes Seniores. Resultado: uma melhor governação, uma boa imagem empresarial e melhores resultados.
A próxima geração está agora bem-educada, exposta a práticas globais. Juntamente com os talentos internos disponíveis, são treinados para a gestão profissional do negócio, o que estabelece bases virtuosas para a preservação do legado e o do fortalecimento do negócio do Grupo.
De acordo com vários analistas indianos, as Famílias Empresariais do País têm uma enorme conexão emocional com o negócio – com a sua solidez, com a sua reputação. Preservando este compromisso e paixão pelo negócio, espera-se que a próxima geração aporte maior dedicação e energia à gestão. Face às perspetivas de crescimento e valorização do negócio sob a próxima geração e a concretização do sonho de globalizar muitos destes negócios – Tata fê-lo com a compra da Jaguar Land Rover, uma jogada que deixou a Índia incrédula, mas orgulhosa – de acordo com os mesmos analistas locais os membros mais seniores destas Grandes Famílias Empresariais sentem-se hoje satisfeitos, felizes e confiantes no futuro.
…mas será que todo este otimismo é realista ou mais uma capa de revista cor de rosa para o paupérrimo povo indiano ?
Mas vai ser um desafio rápido, vencido nesta próxima geração? Dificilmente. E mesmo que o sucesso destes grandes Grupos Empresarias Familiares seja estrondoso e este terceiro Governo de Modi seja tremendamente audacioso e progressista, qual será o impacto efetivo sobre a maior e uma das mais pobres populações mundiais? Tudo correndo pelo melhor, a Índia vai demorar gerações a despertar como a China o fez.
Até lá, que se vão comprando umas marcas estrangeiras de carros de luxo, que se continuem a bater recordes nas bodas mais caras do Mundo e a acolher um casal indiano com uma fortuna superior a 700 M € no Número 10 de Downing Street, quem sabe as capas das revistas cor de rosa indianas atenuem o sofrimento das doenças, da fome e dos lamaçais do dia a dia do indiano médio.
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