Ministério da Segurança do Estado

Será que os portugueses podem estar tranquilos relativamente aos seus direitos, liberdades e garantias? A lógica parece ser a de que todos somos culpados de algum delito, basta para isso procurar bem.

Vamos falar de escutas telefónicas. Portugal é um país que oscila entre a “alma de porteira”, o distraído “informador”, o sórdido “voyeurismo”. As escutas telefónicas são uma presença sem rosto na vida política portuguesa. E uma presença sem rosto remete-nos para a face negra de um regime que respeita os direitos individuais, desde que estes sejam objecto de devassa pública. Escuta-se por suspeita, escuta-se por economia de meios, escuta-se porque é fácil escutar. Todas as escutas são feitas em nome do “superior interesse da República” e no âmbito da arbitrariedade de quem tem poder para escutar.

Neste sentido, temos em Portugal uma espécie de Ministério da Segurança do Estado que zela pela moral da nação. Logo, a questão das escutas não é apenas um problema jurídico, formal, constitucional – as escutas telefónicas são, sobretudo, um problema de ausência de cultura democrática e do exercício fáctico de um poder político. Todas as escutas telefónicas que intersectam a vida política portuguesa são intervenções políticas calibradas com agendas também elas políticas, mas inscritas no exercício do poder judicial. E logo surgem as teorias da conspiração, em que, para além do estado democrático legitimamente constituído, existe uma espécie de “deep state” nas profundezas do labirinto da República que de facto define os caminhos da República. Portugal é, assim, um país e duas Repúblicas.

Quando a Justiça marca os tempos e o timing da democracia, quando a Justiça mantém processos kafkianos que duram décadas, quando a Justiça administra a carreira dos políticos de acordo com critérios obscuros, o que devem os portugueses sentir e pensar? Podem pensar que o país é um país de corruptos que prosperam com fundos públicos para felicidade pessoal e miséria nacional. Este é o discurso populista. Mas os portugueses também podem sentir que pertencem ao grupo anónimo daqueles que completam o universo de observação possível e potencial. Este é o sentimento dos oprimidos. Numa democracia não pode existir a distinção entre vigilantes e vigiados. Numa democracia não pode existir o sentimento de insegurança difuso em que cada um pode ser escutado e investigado por motivos que escapam aos limites da regra da lei. Parece que existem em Portugal 17.000 escutas telefónicas activas, número que se torna exponencial considerando o universo de contactos individuais de cada cidadão. E a pergunta tem de ser obrigatoriamente feita – E quantas são as escutas que escapam ao radar das estatísticas oficiais? Portugal é um país com paredes de vidro escondidas no interior de cada telefone.

Subitamente, ocorre-se a situação da antiga República Democrática Alemã (RDA). E o exemplo é propositado para introduzir o elemento de subversão e de escala para melhor entendimento da situação portuguesa. A STASI tinha 97.000 funcionários para vigiar um país de 17 milhões de habitantes. Para além dos funcionários, a STASI tinha cerca de 173.000 informadores anónimos a viver entre a população. Para se ter uma ideia da escala, a Alemanha do Terceiro Reich tinha um agente da Gestapo por cada 2.000 cidadãos. E a União Soviética de Estaline tinha um agente do KGB por cada 5.830 cidadãos. Na RDA existia um agente ou informador por cada 63 cidadãos. Se forem incluídos a exuberante categoria de informadores em part-time, a ratio seria de um informador por cada 6,5 cidadãos. Neste paraíso dos trabalhadores, as escutas telefónicas eram generalizadas e cada porteira era um informador ao serviço do Estado. O cenário é sórdido e a liberdade é uma palavra na Constituição sem equivalência na realidade.

A dimensão do Estado português que vigia e escuta os portugueses é desconhecida oficialmente. Mas perante os exemplos históricos e as práticas políticas no Portugal contemporâneo, será que os portugueses podem estar tranquilos relativamente aos seus direitos, liberdades e garantias? A lógica parece ser a de que todos somos culpados de algum delito, basta para isso procurar bem, nem que para tal se mantenha sob escuta um Ministro da República durante 4 anos.

Falta apenas o clássico da reforma da Justiça. Recorro às palavras de um conhecido sociólogo português – “A revolução portuguesa de Abril poupou os pides. Agiu assim porque os seus principais autores foram deles cúmplices durante décadas. E porque de nada serviria culpar e julgar pides sem fazer outro tanto a coronéis, generais, juízes, professores de Direito e outras espécies. Os militares não seriam capazes de o fazer, pois eram eles os guardas pretorianos do regime e autores do seu derrube; os responsáveis pela guerra colonial e pela descolonização; os autores da revolução e os autores da contra-revolução”. Passaram 50 anos e os portugueses têm direito a um país onde as escutas telefónicas devem deixar de ser um factor de controlo e de condicionamento políticos. “Ouve tudo isto e diz-me depois se o sonho não vale mais do que a vida”.

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