Paris Piccadilly
Entre Londres e Paris “vai um salto de um anão, vai um rei que ninguém quis, vai um tiro de um canhão e o trono é do charlatão”. Ou talvez não.
A Inglaterra é a anti-França. A França é a contra-Inglaterra. Politicamente as duas nações não podiam ser mais diferentes. Tão diferentes que juntas quase que perfazem uma certa ideia da Europa que se dispersa em múltiplas direcções. Nestes dois países existe um entendimento contrário e complementar do que significa a política na Europa e a Europa na política. Depois das eleições quase simultâneas, a natureza das culturas políticas predominantes em cada país encerra muito do passado e explica muito do que poderá ser o futuro. A política não é um episódio isolado concretizado pelos oportunistas de serviço. A política é um contínuo complexo marcado pelo caos a partir do qual os políticos sérios conseguem extrair um segmento de ordem. A Europa aproxima-se de um período de caos desprovida de políticos sérios. Não é uma fatalidade. É apenas a natureza da política.
Em França o Rassemblement National não é um acidente. Não são as palavras de ordem nem as manifestações nem a indignação nem a Front Populaire que anulam um movimento político que é estrutural à cultura política francesa. Em 200 anos a França conhece três monarquias, dois impérios, cinco repúblicas. A cultura política francesa vem da Revolução, vem da formação de uma esquerda radical, vem da consolidação de uma direita radical, vem da invenção de um centrismo conciliador, bonapartista, autoritário. Sem o centrismo conciliador, a política em França é o confronto permanente entre uma direita radical e uma esquerda radical. Conservadores e socialistas têm dominado o centro até que colapso político destes partidos levou ao colapso do centro. Macron é a face visível desse centrismo republicano e moderado em ruinas.
A política em França é um exercício em que a presença de um “inimigo” é fundamental, pois sem inimigo não existe política. Apenas e talvez administração pública. O populismo do Rassemblement National é o modo legalista de participação no sistema democrático transformado em guerra civil simbólica. Esta é a França que emerge visível destas eleições. A França da “revolução nacional” e do “orgulho nacionalista”; a França do “racionalismo iluminado” e do “tradicionalismo moderno”; a França de Vichy face a face com a França da Resistência; a França da descolonização da Argélia e a França anti-modernização e anti-globalização. O que ecoa nas ruas das cidades de França é a revolta de uma França esquecida que se sente atraída pela ideia de um país para os franceses. O que repugna a França é a ideia de um país para todos e que não pertence a ninguém. A França depois das eleições é a pátria de uma Europa dilacerada por uma crise de identidade.
Em Inglaterra, Conservadores e Trabalhistas partilham uma cultura política liberal que permite que os ciclos políticos alternem sem a subversão de uma guerra política simbólica. Em França, a palavra liberal é um apêndice sem lugar ou circunstância. Ser liberal em França é certamente uma traição a qualquer ideologia política pois implica uma prática de moderação face ao inimigo político. Em França um liberal é uma espécie rara, um fenómeno estranho que deve ser convertido ou eliminado.
A Inglaterra mantém-se uma monarquia desde sempre. Em 110 anos, os Conservadores governaram durante uns extraordinários 76 anos. Neste cenário, quando a França e a Europa se encontram em dificuldades com a ascensão da direita radical, a Inglaterra assume a opção da esquerda moderada para definição dos destinos do país. Sem dramas ou qualquer sentimento de um colapso do regime, termina um ciclo político e abre-se novo ciclo político. O fenómeno natural de uma democracia a funcionar.
O que é interessante neste colapso Conservador é o facto das contradições internas no interior do partido o terem levado à mais absoluta incapacidade política. O Conservadorismo britânico é um fenómeno de equilíbrio permanente – de um lado o “pónei do mercado”, do outro lado o “pónei da tradição”. O conflito dos dois póneis é uma espécie de exercício circense em que o factor democrático distribui a riqueza produzida em ambiente de estabilidade social. Mas em política não existem equilíbrios permanentes, pois é da natureza dos equilíbrios serem precários e exigirem renovação. De certo modo, uma certa ideia de Conservadorismo terá desaparecido nestas eleições.
O Conservadorismo “cívico” está a ser colocado em causa pela contaminação das ideias que vêm da Europa e da América. Dentro deste Conservadorismo está a surgir uma variante britânica da direita radical baseada em três princípios políticos – os grandes “globalistas do mercado livre”, os apologistas de um “welfarismo nacional”, os orgulhosos “tradicionalistas ético-culturais”. Manter estas tribos num mesmo partido oscila entre o irreal e a fantasia. A fantasia do Brexit e a realidade da quase extinção política. Não há moral nesta história, apenas incerteza.
Resumindo. Entre Londres e Paris “vai um salto de um anão, vai um rei que ninguém quis, vai um tiro de um canhão e o trono é do charlatão”. Ou talvez não.
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