“Agenda identitária” complica nomeação de Kamala Harris na convenção do Partido Democrata
Com uma carreira marcada pela defesa do direito ao aborto e do fim da pena de morte, a candidatura da atual vice-presidente não reúne consenso entre os democratas. O "número 2” pode fazer a diferença.
Passaram 24 dias entre o debate contra Donald Trump em 27 de junho e o momento em que Joe Biden desistiu da corrida à Casa Branca e, de seguida, declarou o apoio à sua vice-presidente para ser a candidata do Partido Democrata às eleições presidenciais. Mas isso não é suficiente para o nome de Kamala Harris aparecer nos boletins de voto no dia 5 de novembro.
Embora vários democratas – entre os quais alguns apontados como seus possíveis concorrentes – também já tenham declarado apoio à sua nomeação, figuras como Barack Obama mantêm-se em silêncio e há apelos para uma “convenção aberta”. As sondagens desfavoráveis face ao adversário republicano e a defesa de uma “agenda identitária” podem dificultar não só uma eventual eleição de Kamala Harris como Presidente dos EUA, como também a escolha enquanto candidata pelo seu partido.
“No melhor interesse” do país e do partido, Joe Biden acabou por reconhecer, após semanas de pressões internas – desde candidatos ao Congresso e governadores à cúpula do partido (onde se incluem Obama e Pelosi) e até financiadores da campanha –, que não tinha condições para procurar a reeleição, anunciando, ainda neste domingo, o seu “total apoio” à vice-presidente para que seja a candidata do Partido Democrata para enfrentar Donald Trump nas urnas no final deste ano.
Ao apelo do atual Presidente norte-americano à união dos democratas, Kamala Harris respondeu que quer “merecer e conquistar” a nomeação na convenção do partido no próximo mês. “Durante o ano passado, viajei por todo o país, falando com os americanos sobre a escolha clara nesta eleição importante. E é isso que continuarei a fazer nos próximos dias e semanas. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para unir o Partido Democrata – e unir a nossa nação – para derrotar Donald Trump e a sua agenda extremista do Projeto 2025”, afirmou, em comunicado.
Tweet from @KamalaHarris
Em 2020, quando foi anunciada como a candidata democrata a vice-presidente, perspetivava-se que Joe Biden não avançaria para uma recandidatura a um segundo mandato e que Kamala Harris seria a sua sucessora. Só que nem o Presidente nem o partido prepararam o país nesse sentido e, agora, a antiga procuradora e senadora está longe de reunir consenso entre os seus pares, o que, segundo a analista de política internacional Diana Soller, é fruto da sua “tendência muito forte para apoiar processos e causas relacionadas com a agenda identitária”.
A carreira de Kamala Harris, tanto no período em que foi procuradora distrital de São Francisco (2004-2011) e procuradora-geral da Califórnia (2011-2017), como nos anos em que foi senadora deste Estado (2017-2021) e, por fim, vice-presidente dos Estados Unidos (2021-presente), tem sido marcada pela defesa do direito ao aborto e da abolição da pena de morte – assuntos sensíveis para a sociedade norte-americana –, além de medidas polémicas em matéria de imigração – uma pasta difícil que Biden lhe deixou nas mãos durante o atual mandato.
Quanto à política externa, se sempre esteve ao lado de Joe Biden no apoio à Ucrânia na sequência da invasão russa, o conflito no Médio Oriente tem merecido uma postura mais firme de Kamala Harris em comparação com a do Presidente norte-americano, condenando a “catástrofe humanitária” em Gaza provocada pela ofensiva israelita em resposta ao ataque do Hamas. Defende, inclusive, a solução dos dois Estados e, em março, chegou a apelar a um “cessar-fogo imediato” face aos “demasiados inocentes palestinianos mortos”.
As origens da vice-presidente, que completa 60 anos em outubro, também deverão ser outro fator que irá influenciar a sua escolha (ou não) para ser a candidata presidencial dos democratas e, posteriormente, para Presidente. Com um pai jamaicano e uma mãe de origem indiana, Kamala Harris identifica-se como afro-americana, o que significa que, se for confirmada na convenção em agosto como a candidata do partido à Casa Branca, irá tornar-se a primeira mulher negra a ser candidata às presidenciais por um grande partido – sendo que já tinha sido a primeira mulher, a primeira pessoa negra e a primeira asiático-americana a ascender a “número dois” dos Estados Unidos.
Estas características podem ser pontos a seu favor numa aproximação ao eleitorado afro-americano, tradicionalmente mais próximo do Partido Democrata, mas que, segundo algumas sondagens, está a tender para os republicanos. Não obstante, junto das comunidades negras, latinas e asiáticas, as taxas de aprovação de Kamala Harris são melhores do que as de Biden, de acordo com um inquérito de finais de maio realizado pelo Politico e o Morning Consult.
Joe Biden, que foi o primeiro a apoiar a candidatura de Kamala Harris, não podia fazer de outra maneira, porque foi ele próprio que a escolheu no seu ticket para ser vice-presidente. O problema é que Kamala Harris não, é de todo — mesmo para Biden — a figura mais desejável, precisamente por causa do seu radicalismo.<br />
Mas, por outro lado, tendo em conta a extrema polarização da sociedade norte-americana, uma candidata à Presidência dos EUA com ascendência asiática e africana pode ter o efeito inverso junto da generalidade do eleitorado e, em último caso, penalizar o Partido Democrata nas urnas. Acresce que, segundo a plataforma agregadora de sondagens FiveThirtyEight, a taxa de aprovação da californiana enquanto vice de Biden era, a 17 de julho, inferior a 40%, e a de desaprovação era cerca de 50%. E, frente a frente com Donald Trump, o ex-presidente vencia Kamala Harris (51% versus 48%) na última sondagem da estação televisiva norte-americana CBS News.
Diana Soller considera que Joe Biden não tinha outra opção senão apoiar a vice-presidente que escolheu para as eleições de novembro. “O problema é que Kamala Harris não é, de todo – mesmo para Biden –, a figura mais desejável, precisamente por causa do seu radicalismo”, afirma a investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa (IPRI-Nova), em declarações ao ECO.
Várias figuras do Partido Democrata têm declarado o seu apoio a Harris nas horas que se seguiram ao anúncio da desistência de Biden, entre as quais se destacam a ex-presidente da Câmara dos Representantes Nancy Pelosi, bem como o atual Secretário dos Transportes, Pete Buttigieg, e os governadores da Califórnia, Gavin Newsom, da Pensilvânia, Josh Shapiro, e do Michigan, Gretchen Whitmer, visto que eram apontados como possíveis candidatos. Mas, ressalva Diana Soller, “o apoio deles, no fundo, significa uma desistência, mais do que um apoio”.
Já o silêncio de Barack Obama, que até agora se limitou a elogiar o mandato do seu antigo número dois, pode indiciar que surjam outros candidatos para fazer frente a Kamala Harris. A mulher do ex-presidente, Michelle Obama, seria uma hipótese em cima da mesa, mas, no início deste ano, o seu gabinete disse que ela não iria concorrer. Certo é que, segundo as sondagens atuais, seria a única pessoa com probabilidade de derrotar Donald Trump.
Tweet from @BarackObama
Para Diana Soller, existem agora dois cenários possíveis: ou, pouco a pouco, irá assistir-se à declaração de apoio de várias figuras democratas a Kamala Harris “até que seja mais ou menos unânime” e o seu nome seja consagrado na convenção de agosto; ou, por outro lado, inicia-se uma “corrida contrarrelógio para encontrar outro candidato, com apoios significativos, que se vá opor a Kamala Harris e que possa vencer estas novas semi-primárias – isto é, conseguir convencer os delegados que votaram em Biden a votarem em qualquer uma das pessoas que se proponham como candidatas”.
De qualquer maneira, a investigadora do IPRI-Nova não tem dúvidas de que os republicanos partem para as eleições de novembro “com uma vantagem muito grande”, quer a candidata do Partido Democrata seja Kamala Harris, Michelle Obama ou alguém com o perfil de Michelle Obama, visto que o adversário de Donald Trump terá menos de quatro meses de campanha.
Da confirmação em Chicago às eleições de novembro
Ainda faltam quatro semanas para o início da convenção nacional do Partido Democrata, que se realiza entre 19 e 22 de agosto em Chicago, onde cerca de 4.700 delegados e 750 “superdelegados” (que incluem funcionários eleitos, líderes partidários e os ex-presidentes Barack Obama, Bill Clinton e Jimmy Carter) irão decidir os nomes que vão enfrentar Donald Trump e J. D. Vance em novembro – embora esteja em cima da mesa a possibilidade de realizar uma votação “virtual” para nomear o candidato no início do próximo mês.
A desistência de Joe Biden deixa livres os 3.896 delegados por si conquistados durante as eleições primárias, podendo estes apoiar outros candidatos. Porém, ainda não se sabe se o partido vai unir-se em torno de Kamala Harris até lá ou se a convenção será aberta a vários candidatos.
De acordo com as regras Comité Nacional Democrata (DNC, na sigla em inglês), os delegados que se comprometeram com o vencedor das eleições primárias não têm qualquer obrigação de apoiar o sucessor por si escolhido – neste caso, Kamala Harris – no caso de se retirar da corrida, ainda que essa declaração de apoio seja passível de os influenciar.
Cada candidato precisa de pelo menos 300 assinaturas de delegados, mas não mais de 600, sendo que cada delegado só pode assinar a petição de um candidato. Além disso, um candidato não pode apresentar mais de 50 delegados de um determinado Estado, para garantir que todos os candidatos sujeitos à nomeação dos democratas obtenham o apoio de uma ampla faixa do país.
Na convenção do partido, antes da primeira ronda de votação, cada candidato certificado tem 20 minutos para fazer um discurso de nomeação. Se nenhum candidato obtiver a maioria dos votos nessa primeira votação, os “superdelegados” juntam-se à votação para a segunda volta – e a votação continua até que a maioria dos delegados elegíveis tenha votado num candidato específico. Esse candidato torna-se oficialmente o nomeado “após a conclusão do seu discurso de aceitação”, segundo as regras do DNC.
Já a escolha do candidato a vice-presidente ocorre numa votação separada durante a convenção, com a única diferença de que os “superdelegados” podem votar na primeira ronda.
No cenário atual, tendo em conta que Kamala Harris “não representa a fação maioritária do Partido Democrata”, a escolha do/a seu/sua vice-presidente – a confirmar-se a sua nomeação – “terá que ser alguém que as pessoas identifiquem, no fundo, com a ideologia ou a forma de estar presidencial de Joe Biden”, de forma a “contentar uma parte do eleitorado que está bastante descontente com a [sua] candidatura”, aponta Diana Soller ao ECO. A investigadora chama a atenção, também, para a necessidade de o “número 2” escolhido por Kamala Harris dever ser alguém com força nos swing states.
Ainda no domingo, os dirigentes estaduais do Partido Democrata declararam o seu apoio a Kamala Harris para suceder a Biden na candidatura à Casa Branca, além de que as estimativas realizadas pela televisão norte-americana CNN apontam para que a atual vice-presidente tenha já conseguido o apoio de mais de 500 delegados democratas. Para vencer a nomeação na convenção de agosto, precisa da aprovação de pelo menos 1.976 destes delegados na primeira ronda.
Outra questão que tem sido levantada na sequência da desistência de Biden diz respeito ao financiamento da campanha democrata. A candidatura de Kamala Harris pode herdar cerca de 91 milhões de dólares da campanha de Biden, a que se juntam cerca de 240 milhões angariados pelo Partido Democrata caso seja confirmada como candidata à Presidência.
Entretanto, um porta-voz da campanha presidencial de Biden disse que, desde que o Presidente se afastou da corrida e declarou o seu apoio à vice-presidente, “americanos comuns deram 49,6 milhões de dólares (cerca de 45,5 milhões de euros) em donativos de base à sua campanha”. A plataforma de angariação de fundos ActBlue indica mesmo que domingo “foi o dia de maior angariação de fundos do ciclo eleitoral de 2024”.
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