O BES é irrepetível?
Se há alguém que não quer ver um novo BES, são os gestores e acionistas das principais instituições financeiras portuguesas.
Faz 10 anos que o BES se finou por ordem do Banco de Portugal. Recordar o que aconteceu nos meses que conduziram à resolução decretada na noite de 3 de agosto, como fez o ECO e outros jornais nos últimos dias e semanas, ajuda a evitar que a perda de memória dê azo a que o mesmo volte a acontecer, mas não é determinante.
A história da queda do BES é a da húbris de um homem que fez de uma instituição financeira um instrumento de poder e enriquecimento pessoal, confundindo o seu balanço com o dos negócios da família, até tudo ruir como um castelo de cartas. A exposição às empresas do Grupo Espírito Santo, as linhas de crédito dadas ao BESA sem qualquer controlo e as operações financeiras ruinosas com a Eurofin cavaram um buraco fatal.
Entre a capitalização inicial para a criação do Novobanco (4,9 mil milhões) e o dinheiro já injetado no âmbito do mecanismo de capital contingente (cerca de 3,5 mil milhões), o buraco que foi preciso tapar ascende a 8,4 mil milhões. Uma soma paga com um empréstimo do Estado, mas que cabe aos restantes bancos nacionais saldar, pesando nos resultados. Se há alguém que não quer ver um novo BES, são os gestores e acionistas das principais instituições financeiras portuguesas.
Não foi só a húbris. A relação promíscua com o poder político também ajudou a criar o mindset do “quero, posso e mando”, que costuma andar de braço dado com o desastre. Basta lembrar a relação de Ricardo Salgado com José Sócrates (Operação Marquês) ou as avultadas somas mensais que pagava ao ministro da Economia, Manuel Pinho. Não foi só no BES. A mesma promiscuidade entre política e alta finança abriu caminho a empréstimos ruinosos na Caixa Geral de Depósitos, de que é exemplo o famoso caso de Vale de Lobo, envolvendo Armando Vara, também ex-ministro de Sócrates.
A supervisão também falhou. O ex-governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, pode argumentar de que não dispunha do músculo legal suficiente, mas podia ter feito mais e mais cedo para detetar o descalabro em curso no banco e afrontar Ricardo Salgado. São os regulados que o dizem.
O CEO do BPI, João Pedro Oliveira e Costa afirmou na apresentação das contas semestrais do banco que a supervisão “está mais próxima, mais intrusiva e curva-se menos perante sensações de poder que possam existir”. Diz muito sobre a que existia e existe agora.
Pedro Castro e Almeida, presidente executivo do Santander Portugal, afirmou, em idêntico contexto, que a supervisão está muito mais envolvida na gestão do dia-a-dia dos bancos e acompanha os riscos de forma muito mais rigorosa. Miguel Maya, CEO do Millennium bcp, assevera que a “supervisão mudou muitíssimo” e “é muito mais eficiente atualmente”.
No caso dos grandes bancos, a vigilância já nem está centralizada em Portugal mas no Conselho de Supervisão do BCE, o que dá outras garantias de higiene na relação entre regulador e regulados.
João Pedro Oliveira e Costa é o autor de outra frase paradigmática: “Somos menos banqueiros e mais bancários, isso é bom”. Ricardo Salgado era um banqueiro, o representante da família acionista, que não respondia perante ninguém. O principal parceiro de capital, o francês Crédit Agricole, era um acionista amestrado. Hoje a gestão é mais exigente, profissional, obrigada a prestar contas.
Como sabiamente diz Warren Buffett, é quando a maré baixa que se vê quem estava a nadar sem calções. Outra grande diferença face a 2014 é que, agora, se a maré baixar, todos os bancos estão devidamente vestidos. Os rácios de transformação de crédito em depósitos são saudáveis, os rácios de capital (também por força das exigências regulatórias) são muito mais robustos e há almofadas a serem construídas para fazer face a situações de stress. Os resultados, ajudados pela política monetária, ilustram o bom momento: as cinco maiores instituições lucraram 2,6 mil milhões de euros no primeiro semestre, mais 31% que no ano passado.
Há práticas do setor que suscitam dúvidas, como a alegada partilha de informação comercial com prejuízo para os consumidores, que levou a Autoridade da Concorrência a aplicar, em 2019, uma coima conjunta de 225 milhões de euros, que os bancos contestam em tribunal. Mesmo que percam — esta semana foi conhecido um entendimento desfavorável do Tribunal de Justiça da União Europeia — o impacto não será material.
Quer tudo isto dizer que a repetição de um caso como o do BES é impossível? Ninguém o pode afirmar com segurança, mas no contexto atual, não será por certo devido à húbris de um só homem. Os ciberataques, a entrada das Big Techs no negócio e a instabilidade geopolítica e económica são hoje riscos bem maiores.
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