Vista do Rossio, Lisboa está transformada num centro comercial a céu aberto onde se vende de tudo. Lisboa é uma superfície sem gente de gente que ficou sem Lisboa.

Como se o turismo fosse só economia. Metade do crescimento económico de Portugal vem do turismo. O PIB cresce à razão de 13% com as receitas da indústria do turismo. O Governo aposta no turismo como quem aposta nas viagens espaciais. Portugal, nação abençoada por Deus e feliz por natureza. O segredo mais bem guardado da Europa, o paraíso à beira-mar plantado, as paisagens celestiais no país perfeito. Certamente que sim, com certeza que não, tudo depende do ponto de vista tirado na diagonal de uma cidade atravessada por um rio. Lisboa é o epicentro desta revolução. Vista do Rossio de guitarras à janela, Lisboa está transformada num centro comercial a céu aberto onde se vende de tudo – pastéis de belém, paisagens magnéticas para frigoríficos distantes, fachadas novas que escondem escombros velhos a rebentar com memórias.

Na Baixa vende-se a memória em discursos de plástico e percursos em tuk-tuk asiático. O que não se vê na cidade são portugueses, porque a cidade não está feita para os portugueses. Lisboa é uma superfície sem gente de gente que ficou sem Lisboa. Na Baixa vende-se tudo menos aquilo que a cidade perdeu. As sereias de Lisboa voam em torno da estátua de Camões como se o que teria sido ontem voltasse a ser amanhã.

O turismo está a transformar a cidade num activo económico marcado pela monetarização da identidade portuguesa. E aqui entra a dimensão política do turismo. O turismo implica uma operação política em que uma versão da identidade é vendida como uma forma de mercadoria que produz um acréscimo de riqueza. Só que a identidade é um bem comum que define o carácter de um povo. O que está em causa nestas observações políticas é uma dimensão do turismo que ninguém pensa ou reflecte. Não existe neste discurso vestígio de referências populistas nem a nostalgia de um passado idealizado nem “guerras culturais” entre saudosistas, situacionistas e progressistas. O que se pretende é sublinhar o facto cristalino de que a identidade de um povo também é condicionada pelo lugar onde vive – nós fazemos o lugar para depois o lugar nos fazer a nós. Esta é uma relação humana que está na base de uma dimensão cultural que se projecta numa realidade política.

A versão contemporânea do turismo industrial canibaliza a identidade em função da variável lucro. Mas o lucro económico é obtido à custa de uma uniformização artificial de uma identidade alterada para consumo de massas. Esta normalização implica uma súbita mudança relativamente à qual os portugueses não se reconhecem porque reconhecem nessa mudança dois factores essenciais – a mudança torna-se uma ameaça à identidade; a mudança reflecte-se numa exclusão social e económica relativamente a um património comum.

Este argumento explica as pistolas de água contra os turistas em Barcelona. Este argumento explica os funerais dos “bairros” de Atenas. Este argumento explica o quê em Lisboa? O exílio para os subúrbios, a pobreza dos que servem à mesa, a indiferença das elites, o silêncio triste de quem é apenas um figurante no seu país?

O turismo nesta faceta mais política representa a privatização de uma riqueza que pertence à comunidade. E neste sentido o turismo representa também uma limitação à liberdade de agir e de ser. Politicamente a crítica ao turismo que agora se torna tão vocal não deve ser interpretada como um reflexo reaccionário nem como um gesto xenófobo nem como uma evidência provinciana salazarista. A crítica política ao turismo industrial é o equivalente natural de uma ligação e afecto a algo que nos é familiar. O nosso país é nosso lugar no mundo pois é desse país que partimos para o mundo. Este é o princípio do cosmopolitismo. Se a identidade vem da emoção, o cosmopolitismo vem da razão.

Os navios de cruzeiro sobem e descem o rio. A taxa turística é devidamente cobrada como se fosse uma portagem para o paraíso. As gruas devoram as entranhas da cidade até às nuvens. Nos olhos dos turistas não se encontra a nítida presença das nossas aventuras. Lisboa não se põe à janela de corpo iluminado, mas mostra uma partícula do universo aos animais de caça perdidos nas ruas pombalinas. Lisboa escorrega na luz das estrelas na companhia dos fantasmas que aprendeu a passear. O Tejo ao fundo é um lago azul e as montanhas na margem sul são os pequenos Alpes da grande Europa. Entre as duas margens circulam barcos elétricos pequenos. O sol imenso é uma realidade externa e os portugueses para cá e para lá continuam a pensar que um dia serão felizes.

* O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

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