O passado da indústria não tem de ser o futuro da indústria
É preciso aumentar as opções disponíveis para a indústria nacional descarbonizar e deixar que cada empresa escolha o tipo de solução técnica que mais faz sentido deve ser a opção seguida.
Descarbonizar é, em grande medida, eletrificar. É assim nos edifícios, é assim nos transportes e é assim na indústria. Tudo o que puder ser eletrificado, se for técnica e economicamente viável, deve sê-lo. Isso não implica que não haja lugar para outras soluções, como os biocombustíveis ou o biometano, mas apenas que estas serão sempre menos eficientes, porque a combustão é um processo ineficiente; e, sobretudo, porque serão sempre soluções não escaláveis, de nicho, não podendo, por essa razão, assumir o papel de vetor energético prioritário de descarbonização.
Olhemos em detalhe para o que está previsto para a descarbonização da indústria, porque a proposta de revisão do Plano Nacional Energia e Clima 2030 (PNEC), que está em consulta pública, prevê uma realidade estranhamente assimétrica: atraímos imenso investimento industrial verde, por causa da eletricidade renovável abundante e barata; porém, pouco ou nada aproveitamos essa eletricidade abundante e barata para tornar mais competitiva a indústria que já hoje temos.
Há uma transformação do perfil industrial do país, que decorre do surgimento de novas indústrias e de novos produtos. Mas a indústria que temos hoje, embora se descarbonize, não se eletrifica. Num contexto em que a eletrificação dos consumos é a grande prioridade, a reduzida eletrificação da nossa indústria é, digamos assim, um resultado algo exótico.
Lendo a proposta de revisão do PNEC, nada vemos sobre bombas de calor ou baterias térmicas para descarbonizar o consumo de calor na indústria e nos seus processos. Onde antes a indústria consumia sobretudo gás natural e não eletricidade, o pressuposto parece ser o de que terá de passar a consumir gases renováveis, em particular biometano, mas sobretudo hidrogénio verde. Não podemos, simplesmente, decretar a prioridade dos gases renováveis como via para descarbonizar todo e qualquer processo industrial, sem atender às suas características técnicas concretas.
É verdade que grande parte do consumo energético na indústria acontece sob a forma de calor. E não é menos verdade que, historicamente, o gás natural tinha vantagens face à eletricidade. Mas, o futuro não tem de repetir a lógica do passado. E, por várias razões.
- Em primeiro lugar, porque a eletricidade, sobretudo, a que é produzida localmente, pela própria indústria, é, e será, crescentemente, mais barata do que os gases renováveis;
- Em segundo lugar, porque a inovação tecnológica disponibiliza soluções cada vez mais económicas para a eletrificação direta, como bombas de calor industriais e, ainda mais, baterias térmicas;
- E, em terceiro lugar, porque a eletrificação de certos consumos térmicos torna possível que a indústria forneça serviços de flexibilidade à rede elétrica, o que permite criar uma fonte de rendimento adicional à indústria, enquanto prestadora de serviços da gestão do sistema elétrico.
Este terceiro ponto é particularmente relevante, porque um sistema elétrico com percentagens elevadas de penetração de produção de eletricidade, feita a partir de fontes de energia renovável (solar e eólica), como aquele que o PNEC prevê, precisa, também, de flexibilidade do lado do consumo.
Ter a indústria a descarbonizar parte do seu consumo de calor recorrendo à eletricidade, seja por via de bombas de calor, seja recorrendo às, crescentemente, promissoras baterias térmicas, para além de aumentar o volume de consumo de eletricidade, o que é necessário para acompanhar o aumento de nova capacidade instalada de produção de eletricidade, também introduz uma dimensão de flexibilidade, que tem um valor elevado para os sistemas elétricos.
Poder concentrar/aumentar o consumo de eletricidade, em períodos de excesso de oferta de eletricidade renovável, e reduzi-lo, quando esta produção renovável é menor(normalmente coincidente com elevados preços da eletricidade transacionada no mercado grossista), facilita a integração da produção de eletricidade, feita a partir de fontes de energia renovável. Esta modulação do consumo tem um enorme valor para o sistema elétrico, e pode representar um elevado potencial de redução de custos e/ou de aumento de rendimento para a indústria.
Insistir que a indústria é, por definição, avessa ao uso da eletricidade teria um resultado duplamente negativo: A descarbonização seria mais lenta do que tem de ser e/ou menos eficiente do que pode ser. Devemos, por isso, colocar a eletrificação no centro das políticas de descarbonização para a indústria nacional, prevendo que os gases renováveis são complementares e não prioritários, muito menos exclusivos, como parece intuir-se da proposta do PNEC que está em discussão pública. Aumentar as opções disponíveis para a indústria nacional descarbonizar, deixar que cada empresa escolha o tipo de solução técnica que mais faz sentido deve ser a opção seguida. Presumir que as opções do passado limitam, forçosamente, as opções do futuro é o oposto do que a indústria necessita. O futuro que o processo de descarbonização aponta não se pode limitar a reviver o passado.
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