Primatologia
'Primates of Park Avenue' é uma recolha de dezenas de histórias, um livro divertidíssimo mas assustador. Um livro em que o dinheiro não é o tema central, mas sim os seus efeitos colaterais.
Real ou fictício, perdurará para sempre o célebre diálogo entre Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway. Quando o autor de O Grande Gatsby afirmou, filosofando, “os ricos são diferentes de nós”, Hemingway cortou, cáustico: “sim, têm mais dinheiro”. É de dinheiro – de muito dinheiro – que fala o maravilhoso livro de Wednesday Martin, ‘Primates of Park Avenue: A Memoir’, publicado o ano passado pela Simon & Schuster. O dinheiro não é propriamente o tema central do livro, que aborda, isso sim, os seus efeitos secundários ou colaterais no círculo restrito e altamente competitivo das jovens mães do Upper East Side, a zona mais exclusiva de Manhattan.
A história conta-se em poucas linhas, o que não dispensa a consulta (e saborosa leitura) do original: a autora, que desde tenra idade fora iniciada nos mistérios do mundo animal e humano pela sua mãe (uma senhora do Midwest fascinada pela antropologia e pela sociobiologia), doutorou-se em literatura comparada, trabalhou em diversas organizações internacionais, incluindo a ONU, e casou com um nova-iorquino de gema. Seis meses depois do matrimónio, tiveram um filho.
Como ele ganhava mais do que ela e como ela decidira não enveredar por uma carreira académica e dedicar-se por inteiro ao duro ofício da maternidade a 100%, o casal entendeu que era tempo de sair da Baixa de Manhattan – na altura ainda muito marcada pela memória dos atentados do 11 de Setembro – e comprar uma casa mais acima, na região dos muito, muito ricos.
Das famílias em que os maridos trabalham horas a fio ou ganham milhões (o que não é necessariamente a mesma coisa) e as mulheres se encarregam de criar os filhos, numa competição feroz entre fêmeas, típica da obsessão contemporânea com a parentalidade. Obsessão que, num meio nevrótico como o de Nova Iorque, e num meio mais nevrótico ainda como o das classes altas de Nova Iorque, tem resultados tanto trágicos como risíveis. Mergulhadas num cocktail explosivo de Xanax e bloody marys, as mães do Upper East Side têm cada vez mais filhos. Melhor dizendo, se outrora a moda era ter dois filhos, agora o modelo são três rebentos; as que tinham três, passaram a ter quatro e a fasquia actual, considerada modelar, situa-se nas cinco ou seis crianças. (não por razões religiosas mas como puro sinal de afirmação de status e poder económico).
Esta explosão demográfica, como é evidente, suscitou alarme nos condomínios de nariz empinado e com vista para o Central Park. Em assembleias tumultuosas, as velhas proprietárias, senhoras idosas que vivem na companhia de animais de estimação, propuseram que o elevador principal fosse reservado a adultos e a cães, sendo as crianças relegadas para o elevador de serviço, na porta dos fundos.
Por outro lado, e como é sabido, além dos condomínios iguais aos nossos, digamos assim (os condo), existem os co-opt, em que os novos moradores são “cooptados” pelos vizinhos, os quais têm o direito de veto sobre os candidatos a residentes.
Nixon e Madonna foram vítimas desse sistema, ficando à porta dos prédios onde queriam morar e que ostentam nomes sumptuosos como The Beresford, The San Remo, The Dakota, River House. Há diferenças subtis, só perceptíveis pelos iniciados, entre prédios “antes” ou “depois da guerra”, vigorando em muitos casos regras estritas, rigorosíssimas, como as “Summer rules”, nos termos das quais só são admissíveis obras em casa durante os meses de Verão, quando os vizinhos estão fora, a gozar a fresca dos Hamptons.
A autora de Primates of Park Avenue e o marido passaram tormentas para encontrar casa, mesmo com o auxílio de uma agente imobiliária de elite, Inga, uma antiga modelo dinamarquesa, elegantíssima, versão nova-iorquina de Nuno Gomes, o lendário português REMAX. A dificuldade maior residia no facto de os Martins quererem um apartamento ou casa numa zona muito específica do Upper East Side, a que dava acesso a uma excelente escola pública situada na zona.
Diz-se que Jeremy Corbyn se divorciou da segunda mulher porque esta, contra a vontade do líder trabalhista, matriculou o filho num colégio privado. Ao invés, as mães do Upper East Side, ao saberem que Wednesday Martin e o marido pretendiam inscrever o filho numa escola pública, franziram o sobrolho. Não admira. Todas elas se dedicavam, em concorrência feroz, a arranjar o “melhor” para o seus filhos, desde aulas de música clássica para crianças com dois anos de idade a tutores para meninos de três anos estarem preparados para a dificílima admissão nos mais reputados jardins-de-infância; ou “consultores de jogos” para crianças de quatro anos que não sabiam jogar ou brincar devido à sobrecarga de “aulas de enriquecimento curricular”: lições de mandarim, francês, culinária, treino de voz, golfe e ténis. Isto, note-se, aos quatro anos de idade. Nenhuma das mães reconhecia publicamente que os seus filhos tiveram aulas de preparação para entrar no jardim-de-infância (!), ainda que em privado muitas comentassem em surdina qual era o melhor tutor para o efeito; ou segredassem entre si onde se podia adquirir no mercado negro os serviços de um guia da Disney com passe para deficientes de modo a que as suas crianças pudessem entrar nos parques de diversões sem terem de esperar na fila…
A admissão nos jardins-de-infância é uma jornada épica. As crianças são observadas à lupa em todos os seus movimentos, os pais entrevistados como num exame de mestrado, os directores das escolas de elite são considerados das pessoas mais poderosas de Nova Iorque, pois a eles cabe decidir, sem apelo nem agravo, quem está “dentro” ou “fora” do sistema de castas. Um parvenu tentou forçar a entrada, fazendo um donativo de um milhão de dólares ao colégio. O colégio aceitou a generosa oferta, mas, no final, negou o acesso ao filho do arrivista.
‘Primates of Park Avenue’ é uma recolha de dezenas de histórias como esta, um livro divertidíssimo mas assustador. De permeio, a autora decide descrever Manhattan e os seus habitantes como se fosse uma antropóloga em trabalho de campo. Mapas da ilha, com o Central Park apresentado como “Big Field” (viver nas proximidades do “Big Field” é um sinal de status), acompanhadas de descrições dos hábitos e costumes dos nova-iorquinos como se estes fossem uma tribo exótica. Às tantas, não percebemos se Wednesday Martin está a parodiar Nova Iorque ou a gozar com o jargão da antropologia e das ciências sociais.
O matriarcado implacável é tão intenso que Wednesday e as suas novas amigas não eram sequer conhecidas pelos nomes mas como “a mãe de A” ou “a mãe de B”. No fundo, como se toda a sua existência se resumisse a procriar e a educar os filhos segundo os mais elevados padrões de excelência em tudo, desde a aprendizagem de Mozart ao comportamento em sociedade, passando, obviamente, pelo modo de vestir.
Falando nisso, algo que maravilhou a autora, quando começou a viver no Upper East Side, foram as lojas de roupa para criança. Tudo provinha de Itália e de França, a preços estratosféricos. Mas os melhores pijamas infantis, os mais desejados, eram – são? – os fabricados em Portugal. A isso chama-se “globalização”.
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