Grupos familiares na China, a angústia da sucessão
O perfil demográfico e uma onda crescente de reformados está a criar de repente enormes desafios de sucessão para a qual as empresas familiares chinesas não estão preparadas.
O boom económico da China nas últimas quatro décadas fez com que o empreendedorismo privado florescesse e levando à emergência de dezenas de milhões de empresas familiares que contribuíram decisivamente para a ascensão do País ao seu estatuto de uma das maiores potências comerciais e indústrias do Mundo. Agora, muitas dessas empresas enfrentam um desafio comum, que não esperavam e para o qual, imersas na intensidade da atividade do dia a dia, não se souberam preparar: passar a liderança para a segunda geração da família.
O tecido empresarial familiar chinês e a importância da sucessão
As empresas privadas proliferaram na China desde a década de 1980, quando o país intensificou os esforços para reformar sua economia e se lançar no mercado global. Muitas empresas nasceram ou evoluíram para entidades de renome mundial, cotadas em bolsa e com fundadores jovens:
- A BYD, o maior fabricante mundial de veículos elétricos;
- A Temu, a maior plataforma de e-commerce mundial que se prevê ultrapasse a LVMH em valor em breve;
- O fabricante de equipamentos pesados Sany Group;
- Ou fabricante de eletrodomésticos Midea Group,
No entanto, a larga maioria das grandes e médias empresas chinesas, sem falar nas pequenas e micros, continuam a ser familiares atuando em nichos de mercado, principalmente na manufatura e no comércio da sua produção. E à medida que os fundadores de empresas da primeira geração se aproximam da idade da reforma, decidir se transmitem ou não as suas empresas aos filhos e como navegar na transição tornou-se de repente uma tarefa vital.
De acordo com um relatório da Federação de Indústria e Comércio da China, mais de 80% do bilião de empresas privadas chinesas são de propriedade familiar, com cerca de 29% ainda dedicadas à manufatura tradicional. De 2017 a 2022, estima-se que cerca de três quartos das empresas familiares chinesas estão em processo de transição de liderança – o que marca a maior onda de sucessão empresarial da história chinesa e, porventura, da história mundial.
As mudanças de gestão que a sucessão traz têm grandes implicações sobre a economia da China, já que as empresas privadas representam mais de 90% de todas as operações comerciais na China e grande parte são como vimos empresas familiares. A passagem para a geração seguinte tem de ser um êxito.
A enorme onda de sucessão também ocorre num momento de mudança do ambiente de negócios interno no País. Ao longo da última década, a indústria de manufatura chinesa enfrentou choques sucessivos devido às transições tecnológicas, ao impacto das tensões China-EUA, à pandemia e ao aumento global das tensões geopolíticas. Desafios como a desaceleração da economia doméstica, a crise no setor da construção, o aumento dos custos de mão de obra e as preocupações com o excesso de capacidade face ao arrefecimento da procura e bloqueios externos às exportações chinesas agravam as dificuldades para a nova geração que sucederá aos Fundadores. Geração esta seguramente angustiada porque estes desafios são ainda mais complicados quando se está a agarrar a responsabilidade de gerir a empresa dos Pais sem muitas vezes ter tido a melhor preparação para o fazer.
A nova geração
Huang Xiyi, de 28 anos, é uma “herdeira de fábrica” (designação vulgar na China para a segunda geração das famílias empresariais tradicionais) que está a assumir o negócio dos seus pais. Após os estudos em Boston, ela voltou para sua cidade natal de Foshan, província de Guangdong, e começou a trabalhar no negócio de fabrico de máquinas de sua família. Num artigo on line na China que se tornou viral, Huang descreveu as ua luta para aprender a tomar conta do negócio. A jornada foi “muito amarga e solitária”, escreveu ela.
O artigo de Huang atraiu milhares de jovens na mesma situação que compartilharam histórias semelhantes sobre as dificuldades de aprender a assumir a liderança da empresa da família.
“Antes, era competição entre os empreendedores de primeira geração“, escreveu Huang. “No futuro, será entre os herdeiros da segunda geração“. Uma competição bem mais complicada porque a urgência na tomada das rédeas dos negócios torna esta segunda geração menos preparada. De facto, ao contrário de seus pais, que foram construindo os seus negócios do zero, os “herdeiros de fábrica” estão menos familiarizados com as operações – e, expostos a educações sofisticadas como Huang, geralmente menos entusiasmados com as indústrias tradicionais.
Embora tenham nascido para herdar os negócios, muitos deles teriam optado por não assumir essa responsabilidade, diz Xu Zewei, secretário-geral do Comitê de Jovens Empresários da Federação de Indústria e Comércio de Toda a China. Mas a sua consciência e o amor à família não o permitiram. “À medida que a primeira geração de empresários da era da reforma e da abertura vê aproximar-se a hora de deixar o cargo, as empresas enfrentam uma transição, com alguns membros da segunda geração sem vontade de assumir o leme“, disse Ding Xuedong, vice-presidente do Conselho Nacional do Fundo de Segurança Social. Este é um fator por trás da redução do investimento privado que vai inevitavelmente pesar sobre a própria recuperação económica chinesa, disse Ding. De facto, apenas 51% das empresas familiares conseguiram transferir o poder para a segunda geração, 27% para a terceira geração e 16% para a quarta geração ou mais além.
Consciente e preocupado com esta situação, o Governo Central emitiu em Julho deste ano diretrizes para apoiar o crescimento da indústria privada onde se incluem medidas para orientar os jovens empresários e facilitar os planos de sucessão. Fontes governamentais afirmam não ter dúvida que a garantia de uma transição mais suave para os empresários de segunda geração é crucial para sustentar o tecido empresarial familiar modernizando-o.
A nova geração destaca-se dos seus pais em muitos aspetos, nomeadamente uma visão e relações pessoais globais resultados da educação no estrangeiro e a familiaridade com as redes sociais e as novas tecnologias. Estes futuros líderes estão mais inclinados a adotar soluções digitais para a transformação das suas fábricas, investir na construção de marcas e em inovação e na implementação de soluções modernas de governança e gestão corporativa. Trata-se, em todos os aspetos, de uma geração com uma nova cultura de liderança e com vontade de estender o legado para novos níveis de desempenho e valorização.
Fan Xinyu, professor assistente de economia na Cheung Kong Graduate School of Business, disse que tem confiança nos proprietários de fábricas de segunda geração da China. “Dêem-lhes três a cinco anos, e haverá um crescimento notável”, disse Fan. Mas … terá o setor empresarial familiar condição para esperar esses três a cinco anos?
O trajeto para a sucessão através do esforço de modernização das empresas
Ao longo dos últimos anos, a preparação para a sucessão tem levado muitos herdeiros ao envolvimento na gestão das suas empresas através de novas iniciativas, alavancando a sua experiência internacional e competências linguísticas para entrar no comércio eletrónico e na internacionalização ou para liderar a transformação digital nas empresas. Mas os seus esforços não tiveram muitas vezes as implicações desejadas sobre o desempenho do negócio, pelo contrário.
Zhao Yifan, de 31 anos, estudou no Reino Unido desde o ensino secundário e teve o seu primeiro emprego numa agência imobiliária em Londres. O seu pai, Zhao Niangao, fundador do Zhejiang Linya Group, levou anos a tentar persuadir o filho a regressar à China e a assumir os negócios da família. Iniciado a partir de um negócio de tapetes de grama em 1988, o pai de Zhao construiu um conglomerado de médio porte com negócios que vão desde desenvolvimento imobiliário e materiais de construção até serviços de transporte internacional. A empresa emprega milhares de pessoas. Em 2015, Zhao decidiu voltar para casa para ajudar seu pai e passou meses na fábrica a aprender todos os tipos de trabalhos básicos. Desde 2016, passou a liderar o novo negócio de exportação por plataforma on line da Linya via Tmall e Amazon concerbido e montado por si.
Mas Zhao subestimou os riscos associados à logística de exportação e às tensões comerciais China-EUA. A guerra comercial custou à empresa milhões de yuans em prejuízos, forçando-o a interromper algumas das novas iniciativas comerciais. Só em 2021, quando o governo dos EUA forneceu subsídios substanciais para combater a pandemia, Zhao agarrou a oportunidade de relançar a iniciativa – e teve um sucesso tremendo. O aumento de encomendas dos EUA impulsionou as vendas externas da Linya para um recorde de US$ 41 milhões naquele ano.
O caso de Zhao é paradigmático no seu timing. A pandemia levou muitos herdeiros de fábricas que estavam a estudar no exterior a regressar á China, onde investiram em negócios emergentes como plataformas de exportação on line,
Vários “herdeiros de fábricas” dizem acreditar que as exportações para mercados desenvolvidos nos EUA e na Europa continuam sendo cruciais para o desenvolvimento e rentabilidade dos negócios, são de forma incontornável a nova fronteira – mas isso que isso está a ser difícil conseguir face à instabilidade nas cadeias de aprovisionamento, cada vez mais complexas. Por outro lado, abraçar estes novos modelos de negócio é a forma mais eficaz para os jovens herdeiros assumirem o controlo do negócio. “Quando você volta para a fábrica, a prioridade é ter os trabalhadores da fábrica a ensinar como se fazem as coisas – e nós somos sempre o elo mais fraco, menos experiente”, disse Huang. “Mas se você transformar a empresa uma fábrica digital, ela transforma-se em nós e somos nós a comandar porque dominamos o novo modelo, não tenho de dominar os detalhes da produção”.
Por isso a prioridade destes jovens herdeiros para os próximos anos é claramente acelerar o crescimento dos negócios através da adoção de novas tecnologias, da expansão para novas indústrias ou mercados e da atração de mais talento. Poderiam ser as prioridades de qualquer líder industrial nos EUA ou na Europa.
A preparação da sucessão terminou: É tempo de transferir a liderança
A sucessão nas empresas familiares da China enfrenta vários desafios, incluindo a falta de experiências de referência (“benchmarks”) devido ao curto período de desenvolvimento da história empresarial do País. A antiga política de filho único também deixa muitos empresários com opções limitadas para preservar a sua empresa no seio da família.
Falámos muito sobre o modelo e a atitude dos “herdeiros de fábrica” alinhados com os Pais, mas não são o caso comum – a maioria das empresas familiares na China não tem um plano detalhado para a sucessão da liderança.
Tomemos o topo da pirâmide apenas – entre os 100 maiores grupos empresariais familiares chineses, apenas 31% preveem que os membros da família herdem a liderança do negócio enquanto 54% preveem uma liderança profissional extra-familiar com executivos internos e 15% uma liderança profissional como executivos externos. Empresas líderes como Midea e Lenovo passaram o bastão para executivos internos. Liu Chuanzhi, fundador da Lenovo, estabeleceu uma regra para impedir que filhos de altos executivos entrem na empresa, independentemente de quão excecionais eles possam ser.
Mas para a grande maioria das empresas familiares chinesas, o ensejo é naturalmente passar o negócio para os descendentes, o que tem o benefício complementar de evitar ter de investir num processo de aperfeiçoamento e modernização do modelo de governança corporativa, acionista e societária.
Com a expansão dos negócios e a melhoria da governança corporativa, especialmente após a abertura de capital, a contratação de gestores profissionais pode tornar-se uma opção mais fácil e mesmo, em muitos casos, mais atrativa. Vários herdeiros de segunda geração pretendem liderar a sua empresa por meio de uma oferta pública inicial, o que lhes permitirá ter um contexto de sucessão mais aberto e competitivo (entre a terceira geração e gestores não familiares) assim que a empresa familiar fizer a transição para uma entidade cotada. “A nossa geração enfrenta desafios diferentes em comparação com nossos antecessores”, disse Huang. “Ser teimosamente tradicional ou desenvolver-se isoladamente sem aceitar novas ideias dificultam a continuidade de um negócio, mesmo que essas ideias passem por uma liderança não familiar”.
Conclusão: Um problema com uma escala que só a atitude chinesa pode resolver
Fruto de uma abertura económica recente, a maior parte dos grupos familiares chineses está ainda nas mãos dos Fundadores. Exceto no caso das grandes empresas, onde a exposição ao mercado de capitais leva a uma sucessão por gestores profissionais não familiares, a esmagadora maioria dos empresários tem uma consciência e um desejo claros de passar a liderança à segunda geração numa migração de massa brutal: de 2017 a 2022, estima-se que cerca de três quartos das empresas familiares chinesas estão em processo de transição de liderança – o que marca a maior onda de sucessão empresarial da história chinesa e, porventura, da história mundial.
Estes jovens herdeiros passaram por uma preparação académica de topo e querem voltar à China cumprindo o desejo dos pais com uma visão de modernização do negócio e sabendo da oportunidade de carreira e enriquecimento que podem ter.. Mas o tempo é escasso para um processo de preparação onde aprendam o negócio e o possam transformar com sucesso – esta sucessão apressada tem colocado negócios em risco e minado o entusiasmo dos herdeiros. O Governo Central está atento e procura ajudar mas o desafio pode ser demasiado grande para que se coniga ultrapassar com êxito.
Acresce que estas empresas são de mão de obra intensiva e com processos produtivos que pouco evoluiram, com cada vez menor competitividade internacional face ao crescente custo da mão de obra chinesa. Por isso não surpreende que muitas famílias possam vir a deitar a toalha ao chão e optem por perder a sua independência através da venda a empresas não familiares maiores, a fusões ou no pior caso a ter de fechar as portas.
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