No melhor pano cai a nódoa

Considerada a mais prestigiada família italiana, os Agnelli acabam de se envolver numa complicada disputa judicial que mancha a sua reputação e serve de lição a qualquer Grupo Empresarial Familiar.

A batalha Agnelli: o escândalo que a Família já não conseguiu abafar

Na passada sexta-feira, 20 de Setembro, o tribunal de Turim apreendeu dinheiro e bens no valor de quase 75 milhões de euros aos herdeiros da dinastia industrial mais poderosa de Itália por alegada fraude fiscal, abrindo um novo capítulo numa disputa sucessória que criou uma profunda cisão no seio da família Agnelli.

O mandado de apreensão cobre contas bancárias, ações e propriedades de John Elkann e dos seus irmãos Lapo e Ginevra Elkann em resultado dum relatório de 90 páginas apresentado por promotores judiciais Turim alegando que os irmãos tentaram esconder os seus bens do sistema fiscal italiano. Os ativos de um notário suíço e de Gianluca Ferrero, presidente da Juventus, também foram apreendidos.

A Dicembre, holding familiar controlada pelos irmãos Elkann, está avaliada em 35,5 mil milhões de euros. Embora a apreensão seja pequena ferida no contexto da sua fortuna global, é uma vergonha para John Elkann, 48, preparado como sucessor pelo seu avô materno, Gianni Agnelli, que transformou a Fiat na maior empresa automobilística da Itália. É um rude golpe para a reputação de todos, mas sobretudo de John Elkann, pela mancha no nome de família e porque um gestor de um grande grupo empresarial não pode ver a sua reputação posta em causa desta forma.

Mas para compreender o impacto do que se está a passar temos de viajar pelo passado da família Agnelli e em particular do seu Fundador Giovanni Agnelli e sobretudo do seu neto Gianni, símbolo perfeito do conceito “Old Money” característico de famílias europeias como Wallenberg, Hermés, Quandt, Bosch, Grimaldi ou os próprios Espírito Santo antes da queda.

O Fundador Giovanni Agnelli: Os primeiros passos na construção de um império único

Nascido em 1866 na encantadora aldeia piemontesa de Villar Perosa, Giovanni Agnelli Pai vem de uma linhagem rica de latifundiários. Formado como oficial na Academia Militar de Modena, Giovanni parecia destinado a uma vida fardada, até ser vencido pelo fascínio da inovação do final do século XIX. Mudou o seu rumo de vida e desviou o seu caminho, caindo sob o feitiço do automóvel e em 1899, com um grupo de associados, inaugurou a FIAT, Fabbrica Italiana di Automobili di Torino.

Muitos episódios marcam a ascensão de Agnelli mas há um em particular que tem lugar em 1920. A fábrica da Fiat pulsa com vitalidade quando um mensageiro de voz rouca se atravessa à frente de Agnelli trazendo uma nota secreta do “Duce” Benito Mussolini. Recuando para a segurança tranquila de seu escritório, Agnelli estuda meticulosamente a carta. Trata-se dum pedido de aliança que o “Duce” lança aos Agnelli e que vai funcionar como um trampolim para uma espiral imparável de poder e influência política. Foi o prólogo de uma saga que veria o nascimento do famigerado grupo Bilderberg, com a família no centro e aprofundando ainda mais a sua intrincada teia de poder e domínio.

Uma aceleração de Fausto para o vórtice do poder italiano

Um fervoroso aficionado por corridas, Agnelli recebeu inúmeros elogios e a sua fortuna deu um passo significativo com a eclosão da guerra – primeiro contra a Líbia em 1911 e, mais tarde, a Primeira Guerra Mundial, fornecendo um arsenal de veículos pesados, metralhadoras, motores de aeronaves e ambulâncias.

De um início humilde de apenas 50 funcionários, a Fiat cresceu para uma força de trabalho de mais de 10.000 em 1915, o que obrigou à construção da famosa fábrica Lingotto em Turim, única no mundo pela pista de testes de automóveis no telhado, e da fábrica Mirafiori.

Foi durante esta fase de desenvolvimento que o caminho de Agnelli se cruzou com o de Benito Mussolini em 1914. Agnelli apoiou financeiramente as ambições políticas de Mussolini e como retribuição ao favor, quando as acusações de especulação bélica obscureceram a Fiat e outras corporações, Mussolini varreu-as convenientemente para debaixo do tapete.

O império Agnelli cresce na década de 1920. Compra o La Stampa, um dos principais jornais da Itália e investe em tratores, ferrovias, navios e aviões. Fundou um banco para facilitar aos clientes a compra de seus carros em crédito.

Em 1923 é nomeado senador vitalício e com a sua subsequente adesão ao partido fascista de Mussolini em 1932 torna-se o principal fornecedor do governo e das forças armadas. Mas este período de ouro foi interrompido com a queda de Mussolini, levando Agnelli a perder suas posses em 1945 e falecer no final daquele ano.

A transição do fundador para o seu neto Giovanni “Gianni” Agnelli

Giovanni e e o seu irmão Umberto Agnelli — netos do já mencionado Giovanni Agnelli — viram-se sobrecarregados com um legado complicado porque eram considerados jovens demais para comandar o Grupo.

Vittorio Valetta assumiu o comando mas o seu o mandato trouxe mais do que meras mudanças corporativas, nomeadamente a materialização do Grupo Bildeberg que passa a funcionar regularmente desde essa altura – ajudando a criar as alianças de grandes famílias europeias e norte-americanas que reforçaram o poder global dos Agnelli.

Agora, com a reconstrução da Itália do pós-guerra, os Agnellis reforçam o seu controlo sobre a economia. A FIAT avança a todo o vapor, as aquisições estratégicas levam a que a sua influência represente cerca de 3% do PIB italiano na década de 1980 e a embarcam numa globalização além das fronteiras de Itália.

É nesta altura que Giovanni “Gianni” Agnelli assume os comandos do Grupo. Licenciado em Direito e um brilhante negociador, com a carinhosa e reverente alcunha de “Il Avocato”, Gianni era um personagem “larger than life” que levou o império e o prestígio da família a níveis nunca antes alcançados. Consolidou a FIAT como um dos maiores grupos automóveis do Mundo e, pelo caminho, tornou-se um ícone global de carisma e elegância sem paralelo nos anos 60 a 90.

Durante este período, os audaciosos investimentos e aquisições estratégicas da família na indústria automóvel pintaram um quadro vívido de poder e ambição. Adquirem a Ferrari, a Lancia e em 1986 a Alfa Romeo. Este movimento estratégico sustentou a sua ambição de formar uma espécie de dinastia automóvel italiana, integrando a paixão italiana pelo design e desempenho presente na Alfa Romeo com o império em expansão da FIAT.

Nesta altura, os fabricantes asiáticos tornam-se mais agressivos, mas os Agnelli nunca recuaram perante um desafio e armaram-se para esta disputa global. Demonstraram ter o poder perspicaz de inovação, resiliência e adaptabilidade italianas e sustiveram a incursão.

Ao mesmo tempo, Gianni Agnelli torna-se um modelo social e tem claro prazer nisso. Agnelli era considerado como tendo um estilo, um carisma e uma presença únicas. O seu sentido de de moda era visto como impecável e ligeiramente excêntrico, tendo exercido uma influência relevante sobre a moda masculina italiana e internacional – é famosa por exemplo a sua preferência por usar o relógio sobre o punho da camisa, só para sobressair.

A era pós Gianni Agnelli e o poder da Família nos dias de hoje

Antes de falecer, Gianni Agnelli prepara o seu neto John Elkann para o suceder e ambos contratam Sergio Marchionne, um dos maiores gestores da sua geração, para o comando da FIAT. Marchionne relança a FIAT retirando-a de uma situação financeira desafiante e integra-a com a gigante americana Chrysler, uma jogada duvidosa nos primeiros tempos, mas que se veio a revelar magistral. Marchionne vem a falecer em 2018 e a história da FIAT prossegue sob a liderança de John Elkann, ecoando a saga de ambição, poder e resiliência da família Agnelli.

À medida que a década de 2020 se desenrola, a Família mantém um grau impressionante de poder e influência, especialmente dentro da indústria automóvel. A sua riqueza, de acordo com estimativas recentes, é superior a 12 biliões de Euros.

Nos últimos 15 anos, Elkann tem sido fundamental para orquestrar o renascimento do império Agnelli, liderando movimentos estratégicos e transformações que melhoraram significativamente o cenário de negócios da família.

Nesse contexto, o alcance da família Agnelli passou a estender-se muito para além das fronteiras da indústria automóvel : a Stellantis, a Juventus Football Club ou a Christian Louboutin são exemplos do alcance dos seus tentáculos, que chegaram à indústria de media através de uma participação substancial no conglomerado italiano GEDI.

Em suma, a família Agnelli, com o seu formidável império empresarial e presença omnipresente nas conversas políticas e económicas, apresenta-se muitas vezes como uma relevante força de poder económico, político e social que influencia profundamente o caminho da Itália para o futuro… para o bem ou para o mal.

E o que pode esperar a Família, e uma Itália que os venera, face à batalha sucessória que agora se abre entre mãe e filhos ?

Voltemos ao que se passou esta semana com a apreensão de bens aos três Elkann pelo Tribunal de Turim.

A origem vem de uma disputa mais ampla de herança que se arrasta desde a morte de Gianni Agnelli em 2003 entre Margherita Agnelli, filha de Gianni, e os seus filhos.

Em 2004, Marella Caracciolo, viúva de Gianni Agnelli, legou o controle da holding Dicembre aos três Elkanns, seus netos. Quando Marella morreu, 15 anos depois, Margherita intensificou a batalha para derrubar o legado, argumentando que, embora o acordo tivesse sido assinado segundo a lei suíça, Caracciolo tinha sido residente em Itália, o que significa que o acordo suíço era inválido.

Em Março, ao tentar confirmar a residência de Caracciolo, os investigadores apreenderam computadores e documentos de várias casas e escritórios. Descobriram que algumas versões do testamento de Caracciolo eram falsas, que um escritório na Suíça havia pago as contas de Caracciolo para fazer parecer que ela tinha residência suíça e que Ferrero tinha escrito um memorando a descrever como reforçar o argumento de residência suíça de Caracciolo.

Além disso, os investigadores descobriram que € 42,8 milhões não foram pagos em impostos sobre uma anuidade vitalícia que Caracciolo recebeu de 2015 a 2019 e sobre ativos financeiros detidos por dois trusts sediados nas Bahamas. Outros 32 milhões de euros não tinham sido pagos sobre ativos herdados no valor de 800 milhões de euros, incluindo jóias, obras de arte, imóveis e participações em fundos de investimento no Luxemburgo.

Esta investigação vem colocar em causa o argumento central dos advogados dos Elkann, centrados no facto de que os impostos não eram devidos em Itália porque Caracciolo tinha sido residente na Suíça no final da sua vida – aparentemente uma burla séria.

O fim de “Os Kennedy de Itália”?

Os Kennedy de Itália. Assim sempre se conheceu a família Agnelli ao longo das suas últimas três gerações. Hoje, um recurso jurídico bem sucedido dos Elkann pode ajudar a limpar a mancha. Mas até lá somos testemunhas das dúvidas que passaram a pairar sobre a seriedade e reputação de uma das grandes Famílias europeias. Não sem ter presente que afinal tudo começou com um pacto entre o Fundador e um dos mais brutais ditadores da História … como se o passado voltasse para assombrar e castigar o presente.

E o que se retira como lição principal que nos toque a todos? É simples. Sem um legado de valores sérios e sólidos que passe de geração em geração, a reputação de qualquer Grupo Empresarial Familiar pode ficar irremediavelmente afetada.

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