A circunstância do Governo é o estudo de caso de um realismo político sonso. Em minoria absoluta, o Governo transforma-se para além do imaginável.

A cada Orçamento o país não se transforma. Sobrestima-se a despesa, subestima-se a receita. E feitas as contas Portugal continua a ser um país de baixos salários e de altos impostos. Os portugueses trabalham seis meses para o Estado e devem ficar agradecidos. Todos os Orçamentos são politicamente de segunda categoria, mas dentro da segunda categoria são sempre de primeira classe. A leitura política de um Orçamento parece a prosa poética intensa que confronta os traumas históricos do atraso e dissipa as fragilidades existenciais de um país à procura de um futuro.

O Orçamento não tem socialismo que chegue para os socialistas, nem Mercado que satisfaça liberais, nem Estado suficiente para os estatista, nem assistencialismo que tranquilize os sociais-democratas, nem radicalismo que entusiasme o arco-íris radical, nem é um Orçamento para o Povo, nem é um Orçamento para os Ricos. No entanto, na confusão de todas as posições políticas no espectro partidário português o Orçamento tem todas estas qualidades e todos estes defeitos. O vício da política portuguesa é considerar sempre o Orçamento como sendo do partido do Governo, logo só pode servir a clientela do partido do Governo. Eis uma visão sectária onde sobra desonestidade intelectual e falta um entendimento global e concreto do país. Todos os partidos sonham em fazer um Orçamento para o seu partido. Até os partidos que estão sempre em minoria absoluta, mas que são os verdadeiros representantes do país perfeito.

O caso do PS fica como o exemplo superlativo de que a democracia é o melhor regime, mas que só a democracia do PS é a mais verdadeira e pura democracia desenhada para Portugal. No Orçamento, o PS anda sempre em processo de correcção em curso, estabelecendo linhas vermelhas que afinal são linhas verdes desenhadas por políticos daltónicos. E políticos daltónicos porque o PS não sabe se é de esquerda ou de centro-esquerda, pois na sua impreparação o Secretário-Geral não acredita que um partido de esquerda possa ter políticas de direita, tal como desconhece que um partido de direita pode fazer reformas de esquerda. A incultura política e arrogância de um PS que se apresenta como social e politicamente hegemónico não têm correspondência na realidade do país. O PS é vítima do preconceito de que só a esquerda tem consciência social e sabe governar para o país. Para o Secretário-Geral do PS a direita é o poder fático, as grandes fortunas, a propriedade, a família, a religião e um radicalismo reaccionário que só o PS pode controlar e vencer. Perdido no seu labirinto, o PS tanto pode viabilizar como chumbar o Orçamento. Por agora, vai estudar para tomar uma posição em consciência e no fim rebentar o Parlamento com uma abstenção violenta.

O caso do Chega fica como o exemplo paradoxal de um partido que odeia o sistema mas não suporta ficar fora dos arranjos do sistema. Primeiro, anseia por uma maioria de direita para purgar Portugal do socialismo. Depois, afirma a sua identidade radical recusando qualquer entendimento com as forças de direita que não alinham pelas posições do Chega. E quais são as posições do Chega? São todas as que forem necessárias no momento mais conveniente. Aliás, as posições políticas do Chega sobre o Orçamento e afins perfazem um volume de páginas que supera, quer na riqueza do enredo, quer na complexidade das personagens, o programa político do partido. O Chega não é bem um partido, será mais uma “claque de futebol” que segue o megafone do líder. E o megafone do líder não distingue a verdade da mentira nem a coerência do oportunismo. Para o Chega o propósito é a queda da República. Para o Chega o objectivo é o caos da confusão interna e externa, pois só de uma profunda confusão um partido que se comporta, tanto como um “coro no altar”, tanto como um “gangue na bancada”, poderá aspirar a governar Portugal. Na retórica do Chega é visível a mediocridade política susceptível de adaptar a linguagem universal da mística e da mentira. Um dia seremos todos Chega. Entretanto, ofendido na impotência dos seus 50 deputados de soma nula e que têm na voz de Ventura a voz de todos nós, o Chega promete chumbar o Orçamento com a violência de uma Revolução. A não ser que viabilizem o Orçamento com a violência de um golpe de Estado que pretende derrubar o regime por dentro. Sobra o patriotismo do Chega na contemplação de uma vitória que afinal tem o brilho de uma derrota.

A circunstância do Governo é o estudo de caso de um realismo político sonso. Em minoria absoluta, na posse da inteligência rural que guia os portugueses desconfiados, com a timidez silenciosa de quem passa sempre nos intervalos, o Governo transforma-se para além do imaginável. Mas domina a imaginação política do Orçamento. Não vale a pena antecipar hipóteses fúteis. Quem tem coragem para umas eleições antecipadas?

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