Enquanto se resolve o Orçamento, começa o julgamento de um fantasma.

Depois da decisão sobre o Orçamento, a política regressa à normalidade. Uma normalidade onde a instabilidade das mentes que mentem ainda se agita. O país tira um peso de cima e adia a realidade para depois. O PS que vota contra a consciência, mas que ganha tempo para a refundação. Um Congresso do PSD triunfante que celebra a criação de um império em seis meses. Toda uma oposição apática na sua impotência e que se desdobra entre delírios e declarações. Na verdade ninguém tem coragem para eleições. Por esgotamento, por cansaço, por cobardia, por conveniência, pela indiferença dos portugueses. No fundo, tudo é completamente indiferente uma vez que em Portugal não existe nem se propõe qualquer modelo político.

O único verdadeiro modelo que existe na política portuguesa consiste numa contínua adaptação às circunstâncias. Se variam as circunstâncias deve variar o modelo. Mas este princípio estruturante da política nacional é uma extensão do “politique d’abord”, uma espécie de “empirismo organizador” que tanto agradava ao ditador Salazar como encanta a República democrática. A democracia portuguesa acredita estruturalmente neste princípio da ciência política. E é então com a absoluta firmeza das convicções que a República não encontra qualquer problema em ceder em tudo o que é conveniente. Em Belém volta-se a respirar. Portugal é governado pela doutrina das conveniências.

Agora o país enfrenta a discussão bizantina de um Orçamento que já se sabe como termina. Na Globalidade, teremos vários tratados sobre a coerência dos valores e a flexibilidade dos oportunistas. Na Especialidade, teremos todo um compêndio de propostas, alterações, emendas, toda uma discussão política codificada no labirinto da contabilidade pública para a estabilidade da nação. O debate sobre o Orçamento fecha-se na Generalidade e abre-se na Especialidade. E a geografia do Parlamento espelha um arquipélago de ideias falsas que, todas somadas compõem a verdade política do país. Portugal faz-se destes grandes momentos políticos onde a verdade real do país se escreve na mentira real de um debate político.

Nesta fase da vida democrática não se percebe se o Orçamento é o final de um velho ciclo ou a abertura de um novo ciclo. O PS está na oposição, o PSD no poder. Mas o que sobra do que fica não se distingue com evidência do que se propõe e do que está para vir. É tudo na base de uma continuidade descontínua, pois um país dependente como Portugal tem de pensar muito bem os grandes saltos em frente e adoptar o realismo sarcástico de quem não vai politicamente a lado nenhum. Um pouco menos de socialismo neste ponto, um pouco mais de liberalismo neste outro ponto; um pouco mais de Estado nalgumas políticas, um pouco mais de Mercado em políticas alternativas, tudo convergindo num equilíbrio precário em que o socialismo compensa o liberalismo e o Estado compensa o Mercado.

Neste país de gestos políticos compensados, os cérebros políticos estão ocupados por muros simbólicos que são museus da permanência e da invariância. Parece haver alguma lógica quando se diz que a verdade política é sempre a história de um sonho que morreu. O país percorre há décadas uma linha de fronteira sem nunca se decidir qual o lado a que pertence politicamente. O processo político do Orçamento percorre com meridiana clareza a linha imaginária de uma fronteira entre a ficção e a realidade. Os políticos em Portugal não pretendem abandonar essa linha do país pobre e do país frágil. Há uma certa estabilidade nesta visão da política, uma estabilidade com momentos de tragédia e outros momentos de comédia. Neste momento político enredado no fétiche do Orçamento, o país atravessa um episódio de comédia ou uma fase de tragédia?

Tudo contabilizado, há promessas de um novo PS mais à esquerda e de um PSD saudoso dos momentos auspiciosos de um Super-Cavaco. Se o PS descai para a esquerda o PSD torna-se dono e senhor do centro político. Se o PSD escorrega para o centro forma-se um vazio entre o centro-direita e a direita declarada. Portugal sabe que o Chega não vai a lado nenhum pois já está onde irá ficar e quem sabe se não voa ainda mais para a direita ainda mais radical. Neste triângulo politicamente adúltero, o país fica para o fim se ainda houver tempo. Duvido que haja tempo.

Enquanto se resolve o Orçamento, começa o julgamento de um fantasma. O banqueiro R.S é chamado a comparecer em tribunal a um Domingo em sala não especificada. A sala é no sótão. R.S é levado num tour pelas salas do tribunal até o banqueiro ficar extremamente cansado e humilhado perante funcionários e outros culpados. Desprovido de memória, o banqueiro é incapaz de confessar a sua culpa e por conseguinte a sua humanidade. A memória de R.S também é a memória de um tempo na vida do Regime. A falta de memória do banqueiro é a amnésia de um país incapaz de se confrontar com o seu passado. Na rua, os gritos dos lesados. No tribunal, as testemunhas entre o riso e o esquecimento.

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