O sinistro Governo de Trump

O serviço leal à cartilha do Presidente-eleito é o critério, muito mais que a experiência ou competência para os cargos. Uma coisa é querer romper com o sistema, outra é enfraquecê-lo para o domar.

Há um punhado de pastas que são centrais no Governo americano e Trump já escolheu quem vai ocupar quase todas. Com um dominador comum: o serviço leal à cartilha do Presidente-eleito é o critério, muito mais que a experiência ou competência para os cargos. Uma coisa é querer romper com o sistema, outra é enfraquecê-lo para o domar.

Marc Rubio, senador republicano pela Florida e concorrente de Trump nas primárias, pode vir a ser um bom secretary of state, uma espécie de ministro dos Negócios Estrangeiros musculado, que nos EUA é o membro mais importante do Governo a seguir ao vice-presidente. É também o cargo mais relevante para o resto do mundo.

Considerado um “falcão” na política externa, Rubio vê a China como a grande ameaça ao país. É o “maior e mais avançado adversário que a América já enfrentou” e os EUA não podem ser “complacentes”, defende. A política externa em relação ao país de Xi Jinping endureceu com Joe Biden – as relações chegaram a ser interrompidas pelo caso do balão atmosférico chinês (alegadamente espião) que sobrevoou os EUA –, mas com a nova administração é de esperar um escalar da tensão, desde logo com o prometido aumento brutal das taxas aduaneiras.

Com Rubio, Benjamin Netanyahu ficará respaldado para continuar a ofensiva contra o Hamas na Faixa de Gaza e o Hezbollah no Líbano, tornando improvável qualquer cessar fogo.

Aquele que será o diplomata mais influente do mundo (já foi mais, antes da ascensão da China) defende um fim rápido da guerra entra a Rússia e a Ucrânia: uma distração face ao que realmente importa aos EUA, a região da Ásia-Pacífico. O que poderá passar por fechar a torneira de apoios a Kiev. Rubio votou contra o pacote de 6 mil milhões que incluía ajuda militar para a Ucrânia e já avisou que pôr fim ao conflito exigirá “escolhas difíceis”: ceder território à Rússia e prescindir da adesão à NATO poderão fazer parte do plano.

Um desfecho que significará uma vitória para Putin e, logo, uma ameaça para o resto da Europa.

As outras escolhas do Presidente-eleito são bem mais questionáveis. Pete Hegseth, apresentador da Fox News, foi anunciado para a Defesa, apesar de o único currículo para o cargo é ter sido militar. Um pormenor, já que o que realmente conta para Trump é o facto de Hegseth ser um crítico feroz do ‘wokismo’ nas forças armadas e um adepto indefetível do America First. A escolha para liderar a mais poderosa força militar do planeta está a provocar alarme no Pentágono, segundo o Financial Times.

Polémica é também a escolha de Matt Gaetz para Procurador Geral. Além de não ter experiência prévia como procurador, está sob investigação pelo Comité de Ética da Câmara dos Representantes por alegado assédio sexual e uso de drogas e já foi investigado pelo Departamento de Justiça por alegados crimes sexuais, embora não tenha chegado a ser acusado. Talvez por isso, Gaetz é um crítico feroz do atual sistema e defende uma alteração radical, admitindo a extinção de várias agências federais, incluindo o FBI. Apesar de se tratar de uma nomeação política, o Departamento de Justiça é suposto atuar de forma independente do Governo. Com Gaetz, esse muro poderá cair.

A opção mais aviltante é provavelmente a de Robert Kennedy Jr. para a pasta da Saúde. O antigo membro do Partido Democrata, que se juntou a Trump, é contra as vacinas e chegou a afirmar que a da covid-19 era a “mais mortal de sempre”. Ajudou a propagar várias teorias conspirativas e sem base científica, como os tiroteios em massa serem provocados pela toma de Prozac ou o wi-fi provocar cancro. A Food and Drug Administration, que aprova novas terapias, ou o Center for Disease Control and Protection, responsável pela saúde pública, ficarão sob a alçada de alguém que despreza a ciência.

A escolha que mais tinta tem feito correr, já pré-anunciada por Trump durante a campanha, é a de Elon Musk, que com Vivek Ramaswamy, que foi adversário de Trump nas primárias, ficará à frente do Department of Government Eficiency ou DOGE, o mesmo acrónimo que dá nome à criptomoeda que o maior acionista e CEO da Tesla andou a promover. Defensor de um “governo pequeno”, Musk pretende reduzir o número de agências federais de mais de 400 para 99, cortar no número de funcionários e atacar a “fraude” e o “desperdício”.

Musk diz-se um “moderado”, mas há quem o veja como um libertário. A relação das suas empresas com o Estado faz soar os alarmes sobre a existência de conflitos de interesse, que a legislação supostamente proíbe. Embora leve o nome de Department, não será uma estrutura federal, cuja criação tem de ser aprovada pelo Congresso. A influência de Musk vai, no entanto, muito além da eficiência administrativa. Esteve na chamada telefónica com Zelensky e na quinta-feira reuniu com o embaixador iraniano nas Nações Unidas,num esforço para aliviar a tensão com o país do Médio Oriente.

Falta ainda saber quem ocupará a influente cadeira de secretário do Tesouro, mas o alinhamento que já se conhece evidencia que Trump levará avante a sua agenda mais radical, desde o primeiro dia em que se sentar na Casa Branca, levando para o Governo quem a possa seguir cegamente. Com a vida facilitada pelo facto de o “seu” Partido Republicano ter conseguido a maioria do Senado e mantido o controlo da Câmara dos Representantes, ainda que por margem curta.

Os nomes escolhidos deveriam ainda passar pelo escrutínio do Senado, que é suposto investigar o passado dos nomeados, avaliar a sua adequação aos cargos e realizar audições públicas. Trump quer, no entanto, que o líder do Senado, John Tune, declare uma suspensão temporária dos trabalhos para que os novos membros do Governo não tenham de se sujeitar à aprovação. Uma prática já usada por outros presidentes, mas não para cargos de topo.

Se esse for o caminho, será a primeira machadada nos checks and balances que seguram a democracia americana. Os senadores republicanos já garantiram, no entanto, que farão uso da regra filibuster (obstrução), que obriga a que a legislação seja aprovada por 60 dos 100 membros da câmara, forçando um compromisso com alguns democratas. Será o principal travão a Trump.

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