A grande crise invisível

O investimento na saúde mental de uma sociedade é de retorno social e económico evidente e a sua aposta é responsabilidade evidente das instituições políticas e de saúde.

Março 2020, tinha eu então 15 anos e o país e as escolas fechavam portas. Estava no 2º período do meu 10º ano, tinha acabado de começar o ensino secundário. Pensemos no Guilherme que tinha 14 anos, estava no 8º ano e preparava-se para os seus primeiros exames nacionais. Imaginemos o João que tinha 10 anos e já estava pronto para entrar no 2º ciclo, para ganhar novos hábitos, talvez até ir estudar para mais longe de casa. E agora a Ana que tinha 7 anos feitos e estava no 1º ano a aprender as primeiras letras do alfabeto.

São quatro exemplos, concretos ou imaginários, que espelham a vida de milhares de crianças, adolescentes e jovens por este país fora. O impacto do fecho das escolas na vida académica destas pessoas tem dado e vai continuar a dar muitos estudos e artigos fundamentais para percebermos o custo daquelas decisões, que sem grande pensamento foram sendo tomadas. A minha geração sofreu com isso em fases fulcrais, atrasou o nosso desenvolvimento escolar, mas também emocional e impactará para sempre as nossas vidas.

Este impacto não foi igual para todos os jovens. Aqueles que como eu puderam ter aulas diárias não foram tão impactados como aqueles que não tinham aulas, não tinham computadores ou viram os rendimentos das famílias muito reduzidos. Mais uma vez, as condições socioeconómicas pesaram bastante e é diferente passar o confinamento num T0 de Lisboa ou numa moradia de Cascais. Mas houve algo que nos equalizou e é justamente por isso que escrevo hoje.

O peso do isolamento social nas questões da saúde mental é inegável e talvez nesta área os impactos tenham sido mais transversais economicamente, mas não creio que o tenham sido etariamente. Sofrer as consequências de um confinamento em fases vitais para a afirmação da personalidade ou para estabilização emocional foi um duro golpe na saúde mental da minha geração.

A investigadora Lara Guedes de Pinho conclui que quase 23% dos estudantes universitários portugueses referem estar diagnosticados com uma doença mental, sendo metade destes diagnosticados após a pandemia. O estudo mostrou ainda que 38,9% dos estudantes sofrem de sintomas depressivos e 39,2% de sintomas de ansiedade. Um outro inquérito, de 2023, realizado pela Federação Académica de Lisboa, indicou que 23% dos estudantes consideraram desistir dos seus estudos, com 62% referindo questões de saúde mental como uma das principais razões.

As razões são várias, a pandemia é só uma delas. O stress, a pressão dos pares, da família e do futuro, a competitividade, preocupação e distância à família, dificuldades financeiras podem ser impulsionadores desta problemática. As consequências também são claras e muito preocupantes, podendo no universo estudantil levar ao abandono escolar e de sonhos. Neste sentido, medidas como o cheque-psicólogo são profundamente positivas.

No entanto, desenganem-se aqueles que acham que este é um problema só dos mais jovens ou só dos estudantes. Dados agregados pelo ‘Relatório do Custo do Stresse e dos Problemas de Saúde Psicológica no Trabalho, em Portugal’, da Ordem dos Psicólogos Portugueses, o qual aconselho verdadeiramente a leitura, relatam que 53% dos millenials (nascidos entre 1981 e 1996) entrevistados afirmaram já ter faltado ao trabalho por situações de burnout, 96% diz que o burnout afeta o seu dia-a-dia e 57% confessa sentir exaustão mental diariamente ou múltiplas vezes durante a semana.

Em 2014, A EU-OSHA reportava que o custo total dos problemas de saúde psicológica na Europa correspondia a 240 mil milhões de euros por ano, onde se inclui os custos do absentismo e do presentismo (ainda mais caro que o primeiro). Para Portugal, a OPP estimou, em 2022, uma perda de produtividade de 5,3 mil milhões de euros, representando um aumento de 65% face a 2020. Esta perda de produtividade representa mais de 2% do PIB português e é maior do que a contribuição da Autoeuropa para o produto.

Ademais, é evidente que o problema vai para além da dimensão económica, trata-se de uma questão de saúde pública. Dados agregados pelo mesmo relatório da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) relatam que o stress laboral aumenta a probabilidade de ter um ataque cardíaco em 35% e em 17% o risco de morrer com um problema cardíaco. É profundamente assustador que uma problemática com esta dimensão se mantenha como uma mera nota de rodapé na discussão pública e na discussão da prevenção em matérias de saúde.

No meio deste turbilhão, a Ordem dos Psicólogos Portugueses mantém-se das únicas vozes lúcidas, capazes e constantemente presente nesta discussão. A equipa do atual bastonário Francisco Miranda Rodrigues tem contribuído para a discussão através de sessões públicas de debates, através da divulgação de dados como os que usei para sustentar este texto ou da presença, ainda que manifestamente deficitária face a outras ordens, na comunicação social.

O caminho ainda é longo. A saúde mental é parte do nosso bem-estar e temos de a encarar como a saúde física, com a mesma importância. Estar em letras pequeninas já não chega e o debate tem de ser mais amplo e presente na nossa sociedade. Devemos ouvir os especialistas, olhar fortemente para a prevenção e ajudar quem da sociedade precisa.

Por detrás de todos os números estão pessoas, estão vidas como a nossa. A saúde mental não pode mais ser um tabu, uma não questão ou motivo de vergonha. Há vidas arruinadas, atrasadas e quem já passou por situações destas conhece o poço sem fundo de que se fala. O investimento na saúde mental de uma sociedade é de retorno social e económico evidente e a sua aposta é responsabilidade evidente das instituições políticas e de saúde. Esta é uma das maiores crises que as sociedades ocidentais estão a viver e não podemos continuar a assobiar para o lado.

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