A mais espectacular manifestação política do delírio orçamental é a fixação no excedente. O excedente é discutido como se fosse posse de um ou de outro partido.

O Orçamento é uma descida aos infernos. O Parlamento ocupa horas infindas a discutir uma décima em cada milhão e um milhão em cada décima. Perante a ínfima literacia económica da grande massa de deputados, o Orçamento na especialidade é visto como uma multiplicação de orçamentos aplicados a cada caso e a cada causa. Para ser pomposo e arrogante convém lembrar que um Orçamento deve ser a concretização técnica de uma visão política. Quando não há visão política, o Orçamento na especialidade dispara em todas as direcções da demagogia, do oportunismo, do eleitoralismo, do mero delírio económico. A especialidade em Orçamento é o país em leilão, pois cada força política pretende licitar uma parcela especial da nação para benefício futuro. O que na verdade se discute no Orçamento é a divisão da herança, as partilhas de um património político exagerado. O Orçamento é uma espécie de garantia a prazo de um crédito político eleitoral.

Na ausência de uma maioria politicamente coerente, o Orçamento não é a máquina económica que permite posicionar Portugal na economia do Mundo. O país assiste a um desvario de posições de Portugal no Mundo, tudo ao ritmo de um pronunciamento político por minuto. Um Orçamento que enfrenta 2161 propostas de alteração arrisca-se a ser uma obra política colectiva em que todos são responsáveis e em que ninguém é responsável. É como jogar bowling nos Anéis de Saturno.

Existe uma técnica trotskista em que a agenda política orçamental é arrasada com proposta, contra-propostas, alterações, adendas, incorporações, que no final resultam num verdadeiro caos político. Quem ganha com o caos é quem promove o caos. Os portugueses não ganham nada a não ser a saturação de um processo político infindável e pouco sério. As micro-medidas são a concretização política de um boicote activo à farsa orçamental.

Há no entanto um pormenor importante e novo neste debate sobre o Orçamento. É que pela primeira vez em democracia existem três grandes blocos políticos que permitem uma arquitectura de votos completamente imprevisível. Imprevisibilidade que aumenta com o panorama fracturado das forças politicamente fracturantes. Neste sentido, a possibilidade de votações cruzadas e descruzadas contém o enredo inteiro de todas as fantasias políticas. O debate sobre o Orçamento na especialidade traz à superfície a noção de que a história visível é criada pelos poderosos e que a história invisível contém as verdades reais de um país e de uma época.

O que é estranho no debate político do Orçamento é que estes três blocos mais a pulverização das micro-forças políticas podem ser ordenados em dois grandes grupos políticos opostos e variáveis. De um lado temos a ideia de que as coisas se desmoronam, a ideia de que a política foi tomada pela desordem, a visão pessimista de que a virtude é única e indivisível e é sempre a nossa virtude. No outro lado temos a ideia de que tudo tem um significado, a ideia de que a política é uma face da paranóia em que existe sempre um plano, a visão optimista de que podemos sempre conhecer a nossa virtude através do conhecimento do plano. Estes dois grupos representam um confronto entre uma visão política democrática e secular e uma visão política totalitária e sagrada. Na especialidade o Orçamento oscila permanentemente entre os dois grupos e os dois grupos variam sistematicamente a cada proposta em debate. Neste contexto político, o que significa um Orçamento desvirtuado?

Tudo contabilizado, o país assiste à maior manifestação de revanchismo parlamentar de que há memória. Não se está a discutir um Orçamento saído de um Programa de Governo. A discussão engloba toda uma multidão de Orçamentos virtuais saídos de outros tantos Programas de Governo. O Parlamento é a Casa dos Espelhos onde cada Orçamento é uma discussão impossível, uma solução improvável, um consenso impensável. O Parlamento está hoje em sessão permanente para apurar qual o Programa de Governo que vai governar Portugal. Queremos um Orçamento virtuoso ou queremos a virtude de um Orçamento participativo?

A mais espectacular manifestação política do delírio orçamental é a fixação no excedente. O excedente é discutido como se fosse posse de um ou de outro partido. E quem se julga dono do excedente sente-se também o dono político do seu destino. Ninguém parece pensar que o excedente representa as finanças da nação e o sacrifício dos portugueses. O reflexo secular da política portuguesa vem à superfície como um animal feroz – todo o excedente se fez para gastar. Eis a regra de ouro das finanças nacionais – gastar quando se tem e gastar quando não se tem. Não é para isso que serve a dívida pública? Há um lado melancólico nesta conclusão e nada resta de um traço luminoso no futuro de Portugal.

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