Japão, um império de empresas familiares acomodadas
Dominada por um modelo de empresas familiares refém de padrões culturais ancestrais e vetustos, a economia japonesa perdeu capacidade de inovação e atrasou-se três décadas face ao Ocidente.
A importância das empresas familiares no Japão não tem provavelmente comparação com nenhuma outra economia mundial
No Japão, como no resto do mundo, a empresa familiar detida por um fundador ou pela sua família e gerida pelo mesmo fundador ou seus sucessores assume-se como o modelo empresarial de base da economia. A ubiquidade deste modelo assenta, como sabemos, na união acionista, na partilha de uma visão comum de longo prazo, numa liderança forte reconhecida internamente, na gestão eficaz de conflitos de interesses e na conceção e implementação de um percurso estratégico consistente.
O modelo tem naturalmente grandes defensores e Toshio Goto, professor da Escola de Pós-Graduação em Negócios da Universidade de Economia do Japão especializado em empresas de grande longevidade, é um deles. “Os gestores de empresas familiares reconhecem não apenas os acionistas, mas também diversos stakeholders, como funcionários, clientes e comunidades locais”, diz ele. “O Japão tem mais de 33.000 empresas centenárias e destas mais de 1.300 têm mais de 300 anos de idade. E mais de 90% de todas as empresas centenárias japonesas são empresas familiares”. A reforçar a importância das empresas familiares na economia japonesa, a maior parte das grandes corporações japonesas são, segundo a definição anterior, empresas familiares: Toyota, Mitsui, Sony, Mitsubishi, Sumitomo, Nissan, ou Hitachi são apenas alguns exemplos.
Tal como a própria cultura nacional, o contexto das empresas familiares no Japão destaca-se de qualquer outro – seja pela antiguidade, pelos padrões culturais, pelas regras de governação e conduta ou pelo modelo de adoção de herdeiros de que falaremos à frente. Mas este contexto está a ser colocado sob pressão a vários níveis: casos de corrupção que eram inéditos ou quase, modelos de sucessão nepotistas, sistemas de governação endogâmicos ou uma profunda falta de inovação são exemplos de críticas comuns de analistas japoneses que defendem uma reforma profunda do contexto.
Será que o surto recente de casos de corrupção são sinal de que o modelo de governo tradicional das empresas familiares japonesas está a perder fulgor?
Eclodiram recentemente vários escândalos envolvendo empresas familiares conhecidas como as agressões sexuais por parte do fundador da antiga agência de talentos Johnny & Associates, os pedidos de seguro fraudulentos por parte da antiga Bigmotor Co, um revendedor de carros usado, ou os problemas de saúde causados pelos suplementos da Kobayashi Pharmaceutical Co., contendo mofo de arroz vermelho benikoji, que levaram a uma revisão do sistema de desregulamentação do governo e ao fim de seis gerações de gestão liderada pela família.
Estes casos não se viam há alguns anos, o que tem levado os analistas locais a questionar se as empresas familiares japonesas já não são imunes a ameaças de corrupção e se há, afinal, uma falência gradual do modelo de governo clássico das empresas familiares.
Será que o modelo de sucessão de liderança nas empresas familiares japonesas ainda é robusto?
Tal como no Ocidente, a sucessão de liderança assume-se como o processo mais importante e delicado para uma empresa familiar. Pretende-se um líder indiscutível e capaz escolhido após um processo cuidadosamente conduzido. Se não houver um sucessor em condições, no Ocidente contrata-se um gestor externo – mas no Japão recorre-se à a ancestral cultura de adoção de herdeiros e hoje muitas empresas japonesas permanecem na linha familiar por causa da conveniência e prevalência da adoção de adultos.
Quando não há filho para herdar a empresa, ele não está interessado ou o filho é considerado inadequado para assumir a liderança, a família adota um funcionário digno de assumir a liderança. Grandes corporações familiares bem-sucedidas, como a Suzuki têm utilizado essa estratégia. O atual CEO da Suzuki, Osamu Suzuki, é o quarto filho adotivo a chefiar a empresa. Suzuki superou o seu próprio herdeiro biológico e nomeou Hirotaka Ono como seu sucessor, porque sentiu que seu filho biológico era menos capaz. A empresa familiar mais antiga do mundo, a Nishiyama Onsen Keiunkan, foi transmitida através do nome de família por 1.300 anos. Se o herdeiro masculino adotado não tiver sucesso, ele pode ser preterido e deserdado da família, embora seja muito raro. Se isso acontecer, outro sucessor pode ser adotado, já que o primeiro perdeu a sua herança.
Mas e as empresas familiares, onde as decisões são muitas vezes tomadas de forma próxima da sucessão hereditária ? O nepotismo é uma realidade frequente?
A Kobayashi Pharmaceutical é um exemplo disso. Kazumasa Kobayashi, um membro da família fundadora, renunciou ao cargo de presidente para assumir a responsabilidade pelo desastre de benikoji – mas depois tornou-se conselheiro especial com um salário confortável. O filho mais velho de Kazumasa, Akihiro, foi nomeado presidente, mas renunciou ao cargo pouco depois, permanecendo no conselho de administração. O que pensar de uma empresa que trata os executivos com tal agressividade, sejam ou não culpados por um acidente como este ?
“Foi penoso para a empresa ter obrigado Kazumasa, um membro da família fundador da empresa e que tinha excelentes competências de gestão, a renunciar ao cargo de presidente“, diz Katsuyuki Kamei, professor da Universidade de Kansai e especialista em gestão de riscos corporativos. “Mesmo que a empresa estivesse afogada em críticas do exterior, seria difícil uma punição mais dura. Mas esta atitude, esta cultura faz parte do modelo familiar tradicional japonês e mostra as suas limitações, este resultado só aconteceria numa empresa não familiar se houvesse culpa provada do presidente no que se passou”.
Os gestores de empresas familiares tendem a ocupar os seus cargos durante muito tempo, e é provável que surja o problema do dogmatismo, o que significa que a empresa se desenvolve de acordo com a vontade do gestor ou com um entendimento tácito entre os membros da família. Questionado sobre os prós e contras da gestão familiar, Satoshi Yamane, o novo presidente da empresa farmacêutica, disse numa conferência de imprensa: “Na melhor das hipóteses, a sua solidariedade é uma força, mas quando ocorre um problema há o risco de ficarem um passo atrás na resposta a esse problema”.
E qual é de facto o papel da família acionista – está preparada para assumir as suas responsabilidades na valorização do negócio, apoiando o líder escolhido?
Apesar do forte poder institucional do líder, a família continua a ter um poder próprio relevante. “A família nunca deixou de ser uma entidade significativa”, disse Yamane, expressando a dificuldade de separação da gestão familiar. Neste contexto, algumas empresas com operações globais estão a evoluir o seu modelo de governance na direção de um maior controle familiar para facilitar o controlo da liderança executiva e a tomada de decisões de gestão arrojadas que equilibrem adequadamente os interesses da empresa e os interesses dos seus acionistas.
Na Seven & i Holdings Co., que se concentra em reformas depois da alienação completa do seu negócio original de supermercados, observadores diz-se que o vice-presidente Junro Ito, que vem da família fundadora, deverá ser promovido ao cargo máximo em breve. Na Suntory Holdings Ltd., onde o desafio é reforçar o “core business” de bebidas, um ex-membro da família fundadora tomará seguramente o lugar do presidente Takeshi Niinami. A Pan Pacific International Holdings Corp., que opera a rede de discount Don Quijote, chamou a atenção quando anunciou que o filho do fundador, que tinha 22 anos quando entrou na empresa há poucos meses, seria nomeado em breve como Administrador Executivo.
No entanto, a cultura empresarial familiar japonesa, que parece mais permeável a arbitrariedades, é propensa a distorções na gestão. A Fujitec Co., uma importante empresa de elevadores, tornou-se um alvo preferencial para ativistas que a acusam de falhar na governança devido à influência da família fundadora. Em 2023, a família acabou por ser afastada da gestão e um fundo de investimento assumiu o controlo total. O mesmo fundo adquiriu uma participação substancial na Kobayashi Pharmaceutical e a batalha nos bastidores vai provavelmente intensificar-se no período que antecede a reunião de acionistas da empresa, marcada para março de 2025.
Face a estes casos e por outras palavras, o maior desafio na gestão familiar é como evitar que a governança corporativa se torne eficaz na promoção da ética e dos valores empresariais sem ser demasiado rígida. E é essencial criar um sistema que incorpore opiniões externas à equipa de gestão e oportunidades para os gerentes receberem opiniões dos funcionários e de especialistas externos. O papel e a responsabilidade dos diretores externos, os guardiões da gestão, passa a ser determinante.
O Japão perdeu três décadas… será que tem condições endógenas para as recuperar com uma cultura empresarial tão particular face aos EUA ou à própria China?
Como são vistas as empresas familiares japonesas no mercado de valores? Na crise dos mercados de 2018, apenas um fundo mútuo no Japão obteve retornos positivos, o Tokio Marine Japan Owners Equity Open da Tokio Marine Asset Management focado em empresas familiares. “Enquanto as empresas familiares ajustam o investimento físico, mantendo o capital humano, outras empresas tendem a cortar pessoal, mas mantêm os investimentos“, disse um funcionário responsável. “A curto prazo, é mais fácil para as empresas não familiares assegurarem lucros, mas, numa perspetiva de longo prazo, a abordagem das empresas familiares faz mais sentido”, disse. Com empresas familiares focadas em relacionamentos e redes, pode dizer-se que as conexões que cultivaram serão um atributo valioso a utilizar no caso de um choque externo.
E o crescimento? No Japão, um estudo constatou que um dos padrões de governança corporativa com bom desempenho são “empresas familiares que adotaram herdeiros”. De acordo com este estudo, o retorno sobre os ativos das empresas familiares geridas por herdeiros adotados no Japão é maior do que o de outras empresas familiares e empresas que não são familiares. Como os adotados são selecionados dentro e fora da empresa ao longo do tempo, há pouco risco de serem contratados para cargos para os quais não estejam altamente qualificados. Além disso, um adotado assimila as mesmas perspetivas que um potencial herdeiro de sangue da família fundadora. Mais uma vez, isso se deve ao sistema sob o qual as vantagens da governança corporativa baseada no alinhamento entre propriedade e gestão são rapidamente realizadas.
No Japão, os termos “gacha-mãe” e “empresa gacha” estão em voga há vários anos. A imagem de uma máquina de venda automática de gachapon que distribui aleatoriamente brinquedos em cápsulas sugere que os jovens não têm outra alternativa senão aceitar os pais ou os empregadores que são distribuídos aleatoriamente pelo destino. Isto deve-se provavelmente ao facto de muitos jovens sentirem que a sociedade se tornou enraizada e estratificada. As organizações estão propensas ao colapso se os seus recursos humanos se tornarem ossificados e as pessoas talentosas partirem.
Nas últimas três décadas, surgiram gigantes da tecnologia dos EUA conhecidos coletivamente como GAFA (Google, Apple, Facebook e Amazon) e chineses coletivamente conhecidos como BAT (Baidu, Alibaba e Tencent), abrindo mercados para serviços que antes não existiam. Mesmo em empresas familiares, os fundadores eram empreendedores que assumiam riscos e assumiam novos desafios com a capacidade de desenvolver novas áreas de negócio
Nada disso aconteceu no Japão, que perdeu três décadas. Em vez de escolher entre liderança hereditária e não hereditária, o Japão tem de estimular empresários inovadores que criem novas fontes de riqueza e líderes empresariais que introduzam inovação e crescimento nas grandes empresas japonesas. Um desafio que levará muitos anos, mas para o qual não parece existir alternativa.
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