Fiscalidade: Não é a ‘cura de todos os males’, mas ajuda

A fiscalidade não é uma ‘cura para todos os males’ da nossa economia, mas é bastante importante enquanto não melhoramos de forma estrutural noutros fatores de produtividade e competitividade.

Neste artigo uso dados da Comissão Europeia para atualizar o posicionamento de Portugal no contexto europeu ao nível dos indicadores de carga fiscal e esforço fiscal até 2023. Concluo que a fiscalidade não é uma ‘cura para todos os males’ da nossa economia, mas é bastante importante enquanto não melhoramos de forma estrutural noutros fatores de produtividade e competitividade. Seria, por isso, desejável baixarmos a fiscalidade – com realce para IRC, onde estamos pior, o que penaliza a atração de investimento – até chegarmos a um esforço fiscal próximo do que tínhamos à entrada do milénio, quando o nosso nível de vida estava relativamente perto da metade de países mais ricos, onde devemos ter a ambição de entrar num horizonte aceitável, como uma década, através de políticas consonantes.

A figura 1 mostra que a nossa carga fiscal de 35,7% do PIB em 2023, embora se tenha situado abaixo da UE (39,1%) e na segunda metade da tabela (16ª posição em 27 países), era das mais altas entre os países abaixo da mediana (inclusive) de nível de vida. De facto, entre os 14 países com menor nível de vida nesse ano (incluindo a Chéquia, na 14ª posição correspondente à mediana); ou seja, entre os 14 países mais pobres, que queremos superar de forma sustentada a prazo, apenas quatro tinham um rácio de carga fiscal superior a Portugal (Grécia, Croácia, Espanha e Eslovénia), colocando-nos na 5ª posição nesse grupo. Os restantes 9 países, com valores de carga fiscal assinalados na figura 1, tinham assim uma vantagem sobre Portugal nesse indicador.

Figura 1. Carga fiscal (% do PIB) nos países da União Europeia, ordenados pelo nível de vida (PIB per capita em paridade de poderes de compra, UE=100) em 2023

Fonte: AMECO (com base nas previsões de outono da Comissão Europeia, de nov-24) e cálculos próprios. Notas: PPC = paridade de poderes de compra; pc = per capita (nível de vida relativo); UE = União Europeia; a fundo cinza está indicado o ranking de Portugal na UE (a contar de cima); os países estão ordenados pelo nível de vida (do maior para o menor); a carga fiscal exclui as contribuições sociais imputadas aos empregadores; além da UE, apenas são apresentados os valores de carga fiscal a partir da mediana de nível de vida (Chéquia e à sua direita, incluindo Portugal).

No entanto, a carga fiscal tem limitações óbvias como medida da competitividade fiscal. Em particular, porque elevadas taxas de imposto levam a perda de receita fiscal por fugas expressivas, tanto legais (elisão fiscal e planeamento fiscal) como ilegais (fraude e evasão fiscal) – isto explica a forma de ‘U’ invertido da conhecida curva de Laffer, ilustrando que, a partir de um determinado nível de taxa de imposto, a receita cobrada deixa de subir e começa a descer porque as fugas disparam. Essas fugas também erodem a base do imposto, mas relativamente menos do que a receita, baixando assim a carga fiscal global no PIB. Esse efeito será tanto maior quanto maior o número de impostos com fugas em conjugação com a intensidade das mesmas. Penso que o efeito será relevante em Portugal. Tal é evidente no nosso IRC, onde temos a 2ª maior taxa efetiva da UE, como mostrei numa crónica anterior, mas estamos perto da mediana no rácio da receita no PIB entre os 21 países com dados do Eurostat – a mudança de sede de grandes empresas nacionais para países com menor tributação é um exemplo relevante (legal) de fuga na receita de IRC. O mesmo acontecerá, em menor medida, noutros impostos, mas tal exigiria uma análise mais detalhada.

Na figura 2 apresento o indicador de esforço fiscal face à UE nos estados-membros. Este indicador relativiza o rácio de carga fiscal pelo nível de vida relativo (aferido pelo PIB per capita em paridade de poderes de compra, PPC, em percentagem da UE) enquanto medida da capacidade contributiva dos países. Ou seja, um mesmo rácio de carga fiscal é mais facilmente suportado pelos contribuintes (cidadãos e empresas) de um país rico do que pelos contribuintes de um país pobre.

Tendo em conta o modo de cálculo, um país com menor PIB oficial por fugas relevantes na base fiscal (devido a uma tributação excessiva) sobe no esforço fiscal face a países com poucas fugas, corrigindo esse problema do indicador de carga fiscal, que se afigura pertinente em Portugal. O esforço fiscal sobe ainda para países que, tal como Portugal, têm uma reduzida produtividade relativa (a nossa foi 7ª pior por hora trabalhada em 2023, em 68,5% da UE em PPC) e um défice de competitividade em geral, aspetos que se refletem num menor nível de vida relativo (no denominador do esforço). Nesse caso, um indicador de esforço elevado enfatiza a necessidade de mais competitividade fiscal para atrair investimento, dando mais tempo e condições para que a competitividade melhore noutras áreas de uma forma estrutural.

Após estas explicações, não é de admirar que a Grécia (com a 10ª maior carga fiscal da UE nesse ano e o 3º nível de vida mais baixo, que reflete a pior produtividade horária) tenha o maior nível de esforço fiscal (146,5% da UE) e a Irlanda o mais baixo (26,6% da UE), a refletir a menor carga fiscal da UE e o 2º nível de vida mais elevado (associada ao valor mais alto de produtividade horária, em 196,2% da UE). A Dinamarca, o país com maior rácio de carga fiscal (44,0% do PIB), tem 7º esforço fiscal mais baixo (88,7% da UE) porque o seu nível de vida é o 4º maior nesse ano (ver figuras 1 e 2), associado à 4º maior produtividade horária da UE (131,7% da UE). Isto significa que países com elevada produtividade e nível de vida podem ter cargas fiscais altas sem que isso se traduza num esforço elevado, como é o caso da Dinamarca, ou então preferir uma carga fiscal menor e aliviar ainda mais a taxa de esforço, como sucede na Irlanda.

No caso de Portugal, o nosso 7º maior esforço fiscal em 2023 (113,6% da UE) decorre da conjugação da 16ª carga fiscal com o 19º nível de vida da UE (9º pior) – e a 7ª pior produtividade horária, como referido anteriormente –, dados que são apresentados na figura 3.

Figura 2. Esforço fiscal (UE=100) dos estados-membros em 2023

Fonte: igual à figura 1. Nota: o esforço fiscal traduz a carga fiscal (em % do PIB) relativizada pelo nível de vida (aferido pelo PIB per capita em paridade de poderes de compra, UE=100) enquanto medida da capacidade contributiva dos países.

O principal objetivo da figura 3 é mostrar como o esforço fiscal de Portugal se foi agravando desde o início do milénio e porquê. Divido esta análise em dois períodos distintos, em função da evolução da carga fiscal.

Entre 1999 e 2009, o nosso esforço fiscal piorou apenas ligeiramente – mas continuando abaixo da UE –, com a pequena redução da carga fiscal (de 30,9% para 29,8% do PIB), embora acompanhada de perda de posições (passando da 3º menor para a 7ª mais baixa), a ser contrariada por algum retrocesso no nível de vida relativo. De notar que esta primeira década do milénio ficou marcada pela entrada da China na OMC, concorrendo com várias das nossas indústrias tradicionais, que demoraram tempo a ajustar-se.

Esse exemplo confirma que uma baixa da carga fiscal global é uma condição necessária, mas não suficiente para a melhoria do nível de vida relativo. Isto porque não apenas os outros países podem estar a reduzir a carga fiscal e porventura em componentes mais decisivas para o investimento e crescimento económico, mas também porque a elevação da produtividade relativa – crucial para o progresso do nível de vida relativo – depende de mais fatores, como os que determinam a especialização da economia em setores intensivos em conhecimento e tecnologia, em particular a educação, a inovação e a capacidade de transformar conhecimento em valor económico, aspetos determinantes em que estávamos muito atrasados na década de 2000. Se na educação e na inovação estamos hoje bem melhor, em termos absolutos e relativos, na capacidade de transformar conhecimento em valor económico temos ainda muito para progredir, como mostram os sucessivos relatórios de inovação da Comissão Europeia.

Figura 3. Evolução da carga fiscal, do nível de vida e do esforço fiscal de Portugal no contexto da UE

Fonte: igual às figuras 1 e 2. Ver notas das figuras anteriores.

A partir de 2009 observamos um agravamento do nosso esforço fiscal para um dos mais altos da UE, devido sobretudo à subida da carga fiscal, muito acentuada na segunda década do milénio (em particular no subperíodo do programa de ajustamento da troika), mas o movimento prosseguiu entre 2019 e 2023. Ao mesmo tempo, o nível de vida baixou de 82,5% da UE em 2009 para 77,3% em 2019, passando de 18º para a 19º posição, que se manteve em 2023, apesar de alguma convergência (para 80,2% da UE).

Num balanço desde o início do milénio, em 1999 tínhamos a 3º carga fiscal mais baixa da UE e estávamos perto do grupo de países mais ricos da UE (na atual configuração), na 15ª posição, enquanto em 2023, com a 16ª carga fiscal mais alta em 27 países (mas a 5ª mais alta nos 14 países com o nível de vida mais baixo), estávamos na 19ª posição em nível de vida. Em termos de esforço fiscal, passamos de 18º para 7º.

Em 2024 e 2025 espera-se um recuo do rácio de carga fiscal (as previsões da Comissão apontam nesse sentido, mas são ainda pouco fiáveis, diferindo em nível das do Orçamento de Estado de 2025, OE 25), mas duvido que baixe de forma relevante a nossa taxa de esforço e melhore de forma decisiva a nossa atratividade fiscal. Infelizmente, julgo que será ainda pouco em termos globais e sobretudo na componente crucial do IRC – a que mais releva para o investimento e crescimento económico, como mostram os estudos académicos nessa área. Uma baixa de 1 ponto percentual das taxas de IRC no OE 25 é muito escassa para alterar o nosso posicionamento, sendo até mais prioritário eliminar a derrama estadual, que afasta investimento estruturante como mostrei numa crónica anterior.

Em suma, o nosso elevado esforço fiscal enfatiza a necessidade de mais competitividade fiscal para atrair investimento, dando mais tempo e condições para que a competitividade melhore noutras áreas de uma forma estrutural – a esse nível, se estamos melhor em indicadores fundamentais como educação (mas sobretudo nas gerações mais novas, faltando uma requalificação das anteriores) e inovação, é crucial que usemos o conhecimento para transformar a economia e gerar mais valor, requerendo, nomeadamente, uma maior proximidade entre Academia e empresas, entre outras dimensões estruturais que elevem o nosso perfil de especialização.

Por outro lado, uma redução relevante e sustentável da carga fiscal (dentro das regras orçamentais da UE), salvaguardando o investimento nacional necessário, pressupõe uma reforma do Estado (que baixe a despesa corrente de forma estrutural, através de uma melhoria da sua eficiência), o que se fala há décadas e nunca foi alcançado, pelo que há muito para fazer nesse domínio. Em termos de referência, baixar o esforço fiscal para o nível relativo de 1999 (ou menos), na ordem de 90% da UE (e 18ª posição) – face aos 114% e 7ª posição em 2023 –, poderá ser uma meta interessante a ter em conta, pois certamente ficaremos mais perto de alcançar o clube países mais ricos.

  • Diretor da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, Professor Catedrático e sócio fundador do OBEGEF

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