As universidades ‘fiadoras’
Como podemos assegurar que os estudantes tenham acesso a casa? As universidades poderiam ser uma espécie de 'fiadoras' dos alunos e assim as rendas poderiam ser mais baixas, sem um prémio de risco.
Apesar das temperaturas altas, estamos a menos de um mês do Natal. Nas lojas, há muito que se nota, até porque a Mariah Carey aparece nos centros comerciais a cantar “All I want for Christmas is you” logo a seguir ao “regresso às aulas”. Nos intervalos publicitários da televisão, também já se vê. Por acaso, não me recordo de já ter assistido este ano aos emblemáticos anúncios natalícios das operadoras de telecomunicações. Se calhar, andam demasiado preocupadas com a entrada da nova concorrente Digi e com a agitação que traz a um mercado que funcionava tão concertado. Estou curiosa com os temas e mensagens que escolherão para 2024.
O ano passado, a campanha da Meo chamava-se “Dá espaço à partilha”. Para quem já não se lembra, o anúncio mostrava-nos cenas diárias entre uma jovem universitária e a sua idosa senhoria e como essa convivência entre gerações era benéfica para as duas. O filme terminava afirmando existirem, em Portugal, 120 mil estudantes universitários à procura de quarto para viver e 500 mil seniores a viver sozinhos e com o lançamento da plataforma partilhacasa.pt. Não sei qual é a fonte destes dados, mas os Censos de 2021 dizem-nos que quase 64% das casas em Portugal estão sublotadas e que há mais de meio milhão delas que tem, pelo menos, três divisões em excesso. Consciente destes números, e aproveitando a rubrica “Se eu mandasse” do programa de rádio Tempestade Perfeita, ordenei, no início do ano lectivo 2022/23, que se multiplicasse o exemplo do programa Aconchego, a parceria entre a Câmara Municipal do Porto e a Federação Académica do Porto para arranjar quartos a jovens universitários em casas de idosos.
Há uns dias, o EDULOG, o think tank para a Educação da Fundação Belmiro de Azevedo, publicou o estudo “Cartografia e dinâmicas socioeconómicas dos estudantes do ensino superior do Grande Porto e da Grande Lisboa”, que se debruçou sobre o perfil socioeconómico dos estudantes do ensino superior do Grande Porto e da Grande Lisboa, a sua distribuição geográfica, os seus padrões de deslocação, as suas condições de vida e os apoios sociais que recebem. Entre os estudantes deslocados, a maioria vive em casa ou quarto arrendado e não em residências universitárias, que não são suficientes. A maioria destes estudantes inquilinos gasta entre 201 € e 400 € com o alojamento, a 51 % deles não são passados recibos e quase metade diz não ter contrato de arrendamento. Apesar de estes resultados terem sido obtidos por questionário, o que exige especial cautela nas extrapolações, não ficamos surpreendidos. É um daqueles casos em que o estudo confirma a nossa percepção feita do que vamos ouvindo.
Esta informalidade tem repercussões nas condições económicas destes alunos, porque há apoios e subsídios a que, sem contrato nem recibos, não têm acesso, além do sentimento de insegurança e de instabilidade, tudo com potenciais reflexos no próprio sucesso académico. É provavelmente por isso que o regime jurídico das instituições de ensino superior estipula que o acesso ao alojamento é uma das modalidades de apoio social indirecto e que compete ao Estado assegurar a existência de um sistema de acção social escolar que favoreça o acesso ao ensino superior e a prática de uma frequência bem-sucedida. O Plano Nacional para o Alojamento no Ensino Superior 2022-2026 prevê passar das 15.073 camas de 2021 para as 26.772, em 2026. É um aumento de 78 %, mas, como há mais de 150 mil estudantes deslocados, a taxa de cobertura permanecerá abaixo dos 20 %. Portanto, continua a ser preciso o sector privado.
Já falei dos programas que promovem o encontro entre universitários e idosos, com vantagens mútuas, mas essa não é, naturalmente, a solução para todos os jovens. Para muitos deles continuará a ser o que já é hoje: arrendar um quarto ou uma casa. Como podemos promover que o façam em melhores condições que as descritas no estudo do EDULOG? Não conheço nenhuma investigação que vise as atitudes dos proprietários face ao arrendamento estudantil. Por isso, é com “achismo” que afirmo que o maior receio destes senhorios é, sobretudo, o de comportamentos que danifiquem a casa e os móveis e perturbem a vizinhança. Justa ou injustamente, os tempos de estudante universitário são associados a alguma borga, não raras vezes sob o efeito do álcool e, portanto, não é tanto o medo de que os estudantes deixem de pagar e se recusem a sair, mas antes o de deixarem um rasto de destruição.
Ora, vejo aqui um outro papel para as universidades, o de serem uma espécie de fiadoras dos seus alunos. Não se trata, obviamente, de as responsabilizar pela negligência e excessos dos discentes; mas pagariam, inicialmente, os prejuízos causados, usando depois os mecanismos que têm – e de que os senhorios não dispõem – para reaver o dinheiro. Ao mesmo tempo, participariam na fase de celebração do contrato, prestando apoio a ambas as partes na definição e clarificação de regras e no estabelecimento de um nível de conservação da casa (através de um sistema de pontos, por exemplo) face ao qual se determinaria a existência de estragos (para evitar abusos, que a ideia é reverter danos, não fazer melhorias).
Com esta segurança proporcionada pelas universidades – que exigiria contrato e recibos –, as rendas seriam mais baixas, porque já não precisariam de incluir o prémio de risco – que pagam os vândalos e os tranquilos – para cobrir a deterioração anormal do imóvel. E desceriam ainda mais se esta segurança fosse o suficiente para trazer mais casas para o mercado do arrendamento a estudantes, o que é mais provável se for combinada com uma fiscalidade que use também o tal nível de conservação da casa para definir patamares de renda e correspondentes tributações autónomas (em vez das actuais regras do programa de arrendamento acessível, que também se aplicam ao caso dos estudantes deslocados).
Fica a sugestão. Não faz anúncios natalícios bonitos, mas, se ajudar a resolver parte do problema do alojamento estudantil, será o que muitas famílias pediram para ter no sapatinho.
Nota: A autora escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.
Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.
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