Imigração e salários dos políticos, desmistificar populismos

A imigração e os salários dos deputados são dois temas sensíveis que têm sido usados para explorar a demagogia e o populismo. Estes devem ser combatidos com estudos e dados credíveis (independentes).

A imigração e os salários dos deputados são dois temas sensíveis que têm sido usados para explorar a demagogia e o populismo. Estes devem ser combatidos com estudos e dados credíveis (independentes) que fomentem um debate esclarecido e ajudem a termos cidadãos eleitores e agentes económicos cada vez mais bem informados e capazes de tomar melhores decisões. A Faculdade de Economia do Porto (FEP) tem procurado contribuir para esse debate mais informado.

Começo pelo tema da imigração.

Como foi bastante noticiado, o Gabinete de Estudos da FEP publicou um estudo em que se mostra que Portugal precisa de um maior fluxo de imigrantes na próxima década, de forma consistente (138 mil por ano, em média, acima do pico registado em 2022), se quisermos ter a economia a crescer a um ritmo de 3% ao ano, que se estima seja o mínimo necessário para atingirmos a metade de países mais ricos da União Europeia (UE) no espaço de uma década (em 2033).

Estamos a falar de uma imigração controlada, com mecanismos ligados ao crescimento económico, como contrato de trabalho e auscultação das necessidades das empresas (nomeadamente junto de quem as representa), conforme salientado no estudo. São apresentadas várias propostas para o país se preparar para esse maior fluxo, desde logo, o aumento de recursos da AIMA (Agência para a Integração Migrações e Asilo) para lidar com a regularização extraordinária em curso e fazer face a entradas regulares de maior dimensão no futuro, bem como uma melhor integração dessas pessoas na sociedade, nomeadamente por via de cursos de português adaptados – lecionados por pessoas da mesma origem ou próxima que já dominem a nossa língua, como se faz lá fora – e formação profissional quando forem necessários.

Tendo Portugal um nível de vida relativamente baixo face aos demais países da UE (com os quais concorre na atração de imigrantes) e estando na periferia da Europa e fora das principais rotas migratórias europeias, foram ainda apresentadas propostas para aumentar a captação de imigrantes, como acordos com países da CPLP e da América latina, com maior proximidade cultural (o que facilita e acelera a integração), mas também instrumentos para atrair trabalhadores qualificados de outros países da UE.

Mecanismos legais transparentes e expeditos de entrada e permanência no país para alimentar a economia e fazê-la crescer são a melhor forma de acabar com a imigração ilegal e as máfias associadas.

Por isso, discursos anti-imigração populistas e demagógicos, como dizer que o país tem imigrantes a mais ou estão a tirar lugar aos nacionais no mercado de trabalho, devem ser combatidos com dados e estudos credíveis, sendo fundamental apresentá-los de forma pelo menos tão continuada quanto a ocorrência desses discursos e que os media deem também o devido destaque, o que felizmente tem acontecido.

Esses populismos referidos são completamente rebatidos pelo estudo da FEP, ao demonstrar que precisamos de um fluxo maior de imigrantes de forma continuada se quisermos uma economia mais dinâmica (e aproximar-nos do nível de vida dos países mais ricos da UE) e que a sua presença alarga a dimensão do mercado interno, gerando mais oportunidades de investimento e emprego para todos, nacionais e imigrantes. É também a realidade económica imediata que mostra a necessidade de mais imigrantes, pois não há gente suficiente para executar as obras do PRR, como tem sido noticiado.

Nesse sentido, o governo estará a discutir com as confederações patronais um protocolo de cooperação tendo em vista agilizar a regularização de cidadãos estrangeiros com contrato de trabalho, pelo que percebi das notícias que vi a esse respeito.

Se assim for, a medida parece bastante positiva (e urgente, como referido), até porque vai no sentido das conclusões e propostas acima mencionadas do estudo da FEP, mas como se costuma dizer, o ‘diabo está nos detalhes’, pelo que teremos de esperar por mais desenvolvimentos para saber se, no final, haverá um equilíbrio adequado entre agilização e controlo nesta matéria e se todas as peças da ‘engrenagem’ funcionam bem – como a capacidade da rede consular, que emite os vistos de trabalho, e da AIMA.

O segundo exemplo de populismo que aqui trago é o episódio que ocorreu no Parlamento a propósito da eliminação do corte de 5% dos salários dos cargos políticos que vigorava desde 2014, introduzida no Orçamento de Estado desse ano no contexto de austeridade que se vivia. Não se trata, objetivamente, de um aumento dos salários dos cargos políticos, ao contrário do que afirmou a terceira maior força política, o partido Chega. Vejamos então nas declarações de André Ventura, líder do Chega, quais os argumentos demagógicos de base para rejeitar a reposição de 5% dos salários dos políticos.

  • A medida não deveria ser tomada, mesmo que fosse apenas aplicada para o futuro, enquanto o salário médio e a pensão média forem baixos

André Ventura admitiu que a iniciativa seria “mais sensata” se fosse aplicada apenas aos futuros legisladores, mas “honestamente, nem assim votaríamos a favor, porque num país onde o salário médio é do valor que todos sabem, e a pensão média é de pouco mais de 500 euros, não podemos propor aumentar nem repor os nossos salários”, afirmou.

Em primeiro lugar, a demagogia expressa-se na subjetividade do que é um salário ou pensão baixa, pois no limite pode-se considerar que são sempre baixos mesmo que subam em termos reais (acima da inflação), como tem acontecido nos anos mais recentes, o que significaria que o Chega nunca estaria disponível a repor o corte de vencimento dos cargos políticos ou sequer a admitir atualizações.

Acontece que, nos anos anteriores, houve atualizações dos salários de deputados, como se pode ver na tabela, e os representantes do Chega nunca se manifestaram assim, revelando total incoerência. Em particular, o Chega tem representação parlamentar desde 2019 (Ventura era então deputado único), ano em que a atualização foi de 5,3%, acima da reposição de 5% em 2025. Não me lembro de Ventura ter tomado esta posição na altura enquanto deputado único, mas peço que me corrijam se estiver enganado.

  • A eliminação do corte de 5% só deverá ocorrer após acabarem as outras medidas da troika em vigor

Desafio o Presidente da República a levar ao Tribunal Constitucional [TC] o fundamento destas medidas de aumentar os salários dos políticos, mas não acabar com as outras medidas da ‘troika` que ainda estão em vigor. Se não o fizer, com muita probabilidade o grupo parlamentar do Chega fá-lo-á no TC“.

A seguir mostro a inconsistência das duas posições, rebatendo a demagogia e populismo inerentes.

Uma das medidas ‘do tempo da troika’ ainda em vigor, porventura a principal remanescente em matéria fiscal, é a taxa adicional de solidariedade no IRS, aplicável aos rendimentos mais altos, sendo que a medida até foi agravada em 2016 – já depois da saída com sucesso do programa de ajustamento –, na altura da ‘geringonça’ de esquerda. De facto, a versão atual da medida, que se mantém desde 2016, é um adicional à taxa marginal de imposto de 2,5 pontos percentuais entre 80 e 250 mil euros de rendimento coletável anual e 5 p.p. acima desse valor, quando na versão inicial de 2011 era só de 2,5 p.p. após 153,3 mil euros.

Portanto, Ventura e o Chega parecem implicitamente querer eliminar esta tributação adicional dos que ganham mais – que até foi agravada pelo Parlamento –, agravando a diferença de rendimento líquido (após deduzir o IRS) face a o salário médio e as pensões, que consideram baixos, o que é uma incoerência. É apenas mais uma de muitas, demonstrando que o Chega não é uma alternativa credível de governo.

Por outro lado, não sou jurista, mas penso que o Presidente da República e o Tribunal de Contas têm mais o que fazer do que analisar propostas de apreciação de constitucionalidade que não fazem sentido, como parece ser o caso. Se o Parlamento manteve medidas do tempo da troika (ou até agravou, no caso referido da taxa adicional de solidariedade) e eliminou a maioria, no âmbito das suas competências, o fim do corte de 5% dos salários dos políticos é apenas mais um desses casos. Tornar a medida dependente de outras, como quer o Chega, abriria um precedente perigoso de limitação de competências do Parlamento.

Passemos agora à questão do dinheiro que os deputados do Chega supostamente não queriam receber.

  • O destino a dar ao dinheiro ‘infame’: da rejeição impossível aos fins beneméritos

Segundo Ventura, “todos os deputados do Chega assinaram um documento no qual informamos os serviços financeiros da Assembleia da República de que não queremos receber [os 5%], e não temos nenhuma resposta ainda, mas assumo o compromisso solene de abdicar desta reposição e cada mês iremos canalizar esses 5% para associações de luta contra o cancro ou pessoas desfavorecidas, ou de antigos combatentes, não só para os deputados, mas para todos os políticos do Chega a nível nacional.”

Conforme vários especialistas de Direito logo apontaram e os serviços administrativos do Parlamento confirmaram, os deputados do Chega não podem abdicar de salário (de parte ou do todo), mas depois de o receberam, podem dar-lhe o destino que quiserem, incluindo causas importantes como as referidas.

A questão não é fim mais ou menos meritório a dar ao dinheiro, mas mais um aproveitamento político e demagógico nesta matéria, sobretudo a renúncia propalada. Por exemplo, o partido Livre sempre admitiu votar contra a medida, mas não fez qualquer espalhafato e muito menos anunciou que não queria receber o dinheiro, anunciando simplesmente que o ia reservar para financiar uma bolsa de estudo. Faço ainda notar que o destino a dar ao salário deve ser uma decisão individual, não partidária, o que aconselharia a uma investigação sobre eventuais pressões ilegais que possam ter ocorrido a este nível.

Além disso, sendo André Ventura doutorado em Direito, é pouco crível que não soubesse da impossibilidade de renúncia de parte do salário – até porque o Livre, também contra, deu a entender que o sabia –, pelo que tudo não terá passado de uma encenação para dar ainda mais visibilidade ao caso.

Finalmente, passo ao ponto mais importante de análise neste tema, que pouca gente falou, que é saber qual o nível salarial adequado dos cargos políticos. Naturalmente, legislar sobre os próprios salários abre campo para demagogias, que foram exploradas até ao absurdo e de forma inaudita, como referi acima. Em Portugal, os salários dos cargos políticos são determinados por lei, pelo Parlamento, que os atualiza de forma casuística, como vimos, pelo que de futuro podemos vir a ter mais demagogia a este respeito.

No passado, as polémicas foram sendo geralmente evitadas alinhando a atualização dos salários dos políticos com o decidido para o resto da função pública ou nem sequer mexendo, dependendo do contexto, como mostra a tabela – por exemplo, em 2020 e 2021, durante a pandemia, foram congelados. Contudo, se os salários forem baixos arriscamo-nos a não atrair políticos de qualidade e torna-los mais permeáveis à corrupção, o que revela mais uma inconsistência do Chega, que se considera o arauto do combate à corrupção. Atendendo ao nosso baixo crescimento económico e afundamento no ranking de nível de vida europeu neste milénio, diria que urge atrair os melhores para a causa pública e o salário é um fator de atratividade relevante (não o único), como mostram alguns estudos científicos neste tema.

Relembro que o anterior Primeiro-ministro, António Costa, que esteve oito anos no poder, era assumidamente avesso a reformas estruturais, o que é bem revelador da falta de ambição dos nossos principais políticos e das políticas que prosseguem. Espero que ele mude de opinião enquanto Presidente do Conselho Europeu, pois a UE precisa também de reformas estruturais em várias áreas, tornadas ainda mais urgentes pelo enfraquecimento do eixo franco-alemão, a guerra na Ucrânia e o regresso de Trump.

Independentemente do nível salarial mais adequado para os cargos políticos em Portugal, o problema da demagogia acabaria com a existência de regras transparentes nessa matéria, adaptadas à realidade nacional e devidamente consensualizadas, como se faz nos países mais avançados.

Defendo a criação de uma comissão técnica independente que faça uma análise comparativa estratégica em matéria de salários de cargos políticos face a outros países – tendo em conta, nomeadamente, o nível de vida e o seu progresso, como indicador indireto da qualidade das politicas, e, de forma relacionada, indicadores de qualidade institucional – e apresente regras alternativas (com os respetivos prós e contras) de fixação e atualização desses salários face às melhores práticas internacionais e a realidade portuguesa.

Defendo a criação de uma comissão técnica independente que faça uma análise comparativa estratégica em matéria de salários de cargos políticos face a outros países – tendo em conta, nomeadamente, o nível de vida e o seu progresso, como indicador indireto da qualidade das politicas, e, de forma relacionada, indicadores de qualidade institucional – e apresente regras alternativas (com os respetivos prós e contras) de fixação e atualização desses salários face às melhores práticas internacionais e a realidade portuguesa.

Essa comissão deverá ainda analisar outros elementos da remuneração além do vencimento base, como ajudas de custo e prémios, nomeadamente por exclusividade de funções, como há em Portugal, e fazer análises de mercado para averiguar o custo de oportunidade de uma carreira política e a sua atratividade. Por fim, ter ainda em conta os salários superiores dos eurodeputados, pois concorrem igualmente com os salários dos cargos políticos em Portugal, devendo o diferencial ser também fator de análise.

Uma pequena análise exploratória do que se passa noutros países apenas para o vencimento base mostra que os critérios variam conforme a cultura e a realidade económica, como indexar os salários ao rendimento Nacional Bruto per capita (caso da Alemanha), ao salário mediano ou médio (Dinamarca e Suécia, países de rendimento alto e dos mais igualitários), ou decisão por comités independentes, nomeadamente com base no custo de vida e comparações de mercado (Canadá e Austrália).

Melhorias decisivas nas regras de transparência, prevenção e combate à corrução, sucessivamente adiadas em Portugal, também ajudariam a reduzir a demagogia em matéria de salários dos cargos políticos e facilitariam um enquadramento nesta matéria. O caso de Itália, com remunerações dos políticos das mais altas a nível europeu, é paradigmático a este nível, pois mesmo assim a perceção de corrupção continua a ser bastante alta, daí que esses salários elevados gerem insatisfação popular.

  • Diretor da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, Professor Catedrático e sócio fundador do OBEGEF

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