Yasser Omar, presidente do Instituto Quântico Português, defende que Portugal deve ter a ambição de ser competitivo na Europa. Sistemas de encriptação estão ameaçados pela nova tecnologia, alerta.
As tecnologias quânticas ainda deverão demorar vários anos até terem aplicação prática, mas a corrida de países e empresas pela dianteira nesta área já começou. Yasser Omar, presidente do Instituto Quântico Português, defende que o Governo deve lançar uma estratégia nacional para esta área.
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Doutorado em Computação Quântica pela Universidade de Oxford, o professor do Instituto Superior Técnico explica ao podcast À Prova de Futuro, apoiado pelo Meo Empresas, o potencial destas novas tecnologias e as áreas onde poderão ter maior impacto.
Uma delas é a criptografia, onde a computação quântica pode representar uma séria ameaça. “No dia em que o computador quântico existir (…) já temos um algoritmo pronto a correr que sabemos que compromete a privacidade na internet e, portanto, tudo o que seja comércio eletrónico, as nossas credenciais privadas nos sites a que vamos, de emails, redes sociais, banca eletrónica, etc.”, alerta. Felizmente, também já estão a ser desenvolvidas novas formas de proteção, com a participação de uma startup portuguesa.
Começamos com um desafio. Consegue explicar-nos de forma simples o que são as tecnologias quânticas?
As tecnologias quânticas são tecnologias de informação futuristas que usam as propriedades da física quântica para tentar desenvolver computadores muito mais rápidos ou, eventualmente, com maior eficiência energética, que pode ter um impacto muito interessante; para desenvolver comunicações privadas com um nível de privacidade maior e com implicações estratégicas, de segurança, de soberania, etc.
E ainda para desenvolver sensores com capacidade de medir as coisas com muito maior precisão. Pode ter uma série de aplicações potenciais – isto ainda é tudo um pouco futurista – à imagiologia médica para, por exemplo, tentar detetar doenças numa fase mais preliminar.
Que propriedades é que a física quântica tem que permitem esta maior capacidade de computação, por exemplo?
A física quântica é a física que descreve a natureza à escala dos átomos e das partículas que constituem os átomos. É uma escala diferente da escala em que nós experienciamos as leis da física e tem propriedades muito diferentes.
Umas das propriedades da física quântica é que um sistema pode estar em dois estados possíveis ao mesmo tempo. Há a famosa história do gato de Schrödinger. Um gato é um sistema físico e tem dois estados possíveis.
Vivo ou morto.
Ou está vivo ou está morto. Se fosse quântico, podia estar simultaneamente vivo e morto. O que é obviamente uma coisa que nós nunca vimos à nossa escala e por isso custa-nos a aceitar que na física quântica, à escala quântica, estas propriedades possam ser válidas.
Parte das tecnologias atuais que foram desenvolvidas no século XX foi graças à teoria quântica, incluindo a microeletrónica, a química artificial, novos materiais, sistemas de imagiologia médica como as ressonâncias, energia nuclear, etc. A teoria quântica é bem conhecida, está bem assente, e tem estas propriedades surpreendentes.
O bit quântico pode ser zero, pode ser um e pode estar na tal sobreposição de zero e um. Isso dá-nos uma espécie de computação paralela de forma natural e, portanto, permite potencialmente acelerar a computação e a supercomputação.
O que é relativamente recente, embora já sejam ideias com cerca de 30 anos, foi usar sistemas quânticos para codificar informação para ser a base de tecnologias de informação. Temos um novo tipo de informação, que é a informação quântica, que tem uma unidade fundamental diferente, que é o que chamamos o bit quântico.
A unidade fundamental da informação clássica é o bit, ou é zero ou é um. O bit quântico pode ser zero, pode ser um e pode estar na tal sobreposição de zero e um. Isso dá-nos uma espécie de computação paralela de forma natural e, portanto, permite potencialmente acelerar a computação e a supercomputação.
Um computador quântico, em termos de capacidade de processamento, quanto maior pode ser face a um computador normal?
A Google apresentou recentemente o resultado do novo processador que lançou e em que resolveram um problema académico, infelizmente sem aplicação prática em cinco minutos.
Um problema matemático, que no melhor supercomputador clássico que existe neste momento à face da Terra, demoraria mais do que a idade do Universo. Eles deram um número que eu nem sei o nome em português – septillion – portanto são milhões, de milhões, de milhões de anos.
Resolvido em cinco minutos.
É um problema meramente académico, sem qualquer aplicação prática e que de certa forma foi escolhido para ter esta performance, mas mostra que a computação quântica não é apenas uma ideia teórica. De facto, funciona.
Agora, o grande desafio é conseguir este tipo de acelerações – não é preciso serem tão gigantescas como esta – para problemas práticos para a nossa qualidade de vida, para a investigação científica, para uma série de indústrias que hoje em dia assentam a sua produtividade na capacidade computacional. Isso é um desafio que ainda estamos a tentar resolver.
Qual é que diria que é o atual estado da tecnologia e quando é que vamos ver essas aplicações mais práticas?
Ninguém consegue fazer, honestamente, uma previsão. Pegando neste exemplo do processador da Google, tinha cerca de 105 bits quânticos. Para resolver problemas úteis, precisaremos se calhar de milhões de bits ou milhares de milhões, depende dos problemas. Portanto, o hardware ainda está muito longe disso.
Quanto tempo demoraremos a ter hardware capaz de resolver problemas úteis? Pode demorar anos, pode demorar décadas. Há pessoas mais otimistas e pessoas mais pessimistas. Eu diria que deveríamos ser cautelosamente otimistas. Por um lado, não se vê nenhum obstáculo fundamental a fazer o scaling dos processadores quânticos. Nós já sabemos que funcionam. Eu trabalho nesta área já há bastantes anos e nunca imaginei ver no meu tempo de vida o que estou a ver hoje.
Pode ser mais rápido.
Às vezes somos surpreendidos por descobertas inesperadas que podem antecipar, mas eu diria que devemos ser pacientes e mitigar as expetativas, tanto em termos de tempo, como noutro aspeto muito importante, que é a segunda parte da minha resposta. O computador quântico não acelera todos os problemas.
Se eu correr um algoritmo clássico, um programa de computador clássico, num computador quântico, ele vai demorar exatamente o mesmo tempo. Para ser mais rápido, tem que alterar o programa de computador, o algoritmo, para tirar partido das tais propriedades dos bits quânticos.
Não basta desenvolver o hardware, é preciso desenvolver também o software.
É preciso desenvolver o software. Há muitos desafios ainda por resolver no software. Tem que se investir em ambas as direções.
Quando isto puder ser aplicado de forma mais evidente, que utilizações é que se antecipam? O que é que isto pode mudar, por exemplo, para as empresas?
Muita gente não se apercebe que muita da nossa qualidade de vida hoje em dia depende de serviços e de produtos que são desenvolvidos através de supercomputação. Já agora, deixar claro que a ideia do computador quântico é competir ou complementar os supercomputadores, não é para substituir o nosso computador pessoal. Estamos a falar de máquinas de calcular que fazem cálculos muito, muito avançados e em grande volume.
Alguns exemplos. Quando nós estamos a conduzir temos um sistema de navegação que nos dá a melhor rota em função do mapa, das ruas, do trânsito, etc. Essa rota está a ser calculada em tempo real. A previsão meteorológica, por exemplo, também são cálculos extremamente complexos.
Na indústria farmacêutica e na indústria química acabou aquela ideia de descobrir novos fármacos a misturar os ingredientes nos tubos de ensaio. Hoje em dia isso é tudo feito computacionalmente, numericamente. Há grandes bases de dados de moléculas que são combinadas arbitrariamente por programas de computador e é um bocadinho como encontrar uma agulha num palheiro.
No dia em que o computador quântico existir (…) já temos um algoritmo pronto a correr que sabemos que compromete a privacidade na internet e, portanto, tudo o que seja comércio eletrónico, as nossas credenciais privadas nos sites a que vamos, de emails, redes sociais, banca eletrónica, etc.
Tudo isso já usa supercomputadores.
Já é baseado em supercomputadores. Todos os problemas na indústria financeira, deteção de fraudes, otimização de portfólios financeiros, todas as questões de logística das grandes empresas, transportes, aeroportos, etc. Todas esse tipo de atividade económica e industrial assenta na nossa capacidade computacional e agora com a inteligência artificial ainda mais.
A computação quântica vai permitir dar um salto?
Potencialmente, sim. Pode haver uma aceleração inesperada, o que seria ótimo em termos de hardware. Se o hardware já estiver pronto e conseguir ter capacidade para resolver problemas maiores, quais são esses problemas? Ainda identificámos poucos.
Um dos que foi identificado é uma forma de decifrar a atual criptografia clássica, a atual forma de garantir privacidade na internet, no comércio eletrónico, etc. Aí o computador quântico pode ser capaz de atacar.
Aí falamos de uma ameaça.
No dia em que o computador quântico existir, no sentido que já tem capacidade de processar muitos, muitos bits quânticos, aí já temos um algoritmo pronto a correr que sabemos que compromete a privacidade na internet e portanto, tudo o que seja comércio eletrónico, as nossas credenciais privadas nos sites a que vamos, de emails, redes sociais, banca eletrónica, etc. Tudo isso fica comprometido.
Isso significa que tem de haver uma corrida também no sentido de arranjar uma defesa.
Exatamente. Essa corrida está em marcha e está-se a desenvolver um novo tipo de criptografia chamada criptografia pós-quântica. São novos paradigmas para cifrar informação que são resistentes ao ataque de um computador quântico, mesmo que ele ainda não exista em termos de hardware, pelo menos pensa-se que está protegido. No dia em que existir, já não temos que procurar. Só que neste momento ainda estamos numa fase de investigação.
Para as pessoas que estão nas agências de segurança isto é um período de grande ansiedade. Estamos aqui num período de transição de paradigma de cifras. Para a comunidade dos investigadores este é um período extremamente interessante, porque estão a tentar desenvolver hardware quântico e software quântico para, por exemplo, ver as vulnerabilidades das cifras atuais. Outros investigadores do lado das cifras estão a tentar desenvolver novas cifras que sejam robustas face ao ataque de um futuro computador quântico.
Portugal está a preparar-se para agarrar esta oportunidade?
Eu acho que sim.
O que é que está a ser feito?
Estávamos a falar da parte da criptografia quântica e há agora uma startup portuguesa, a Entangled Space, que está a desenvolver sistemas de comunicações quânticas para o espaço, que é uma forma de ir para a longa distância. A comunidade académica em Portugal tem estado atenta e ativa nas diferentes frentes das tecnologias quânticas. Poderia haver talvez maior coordenação, mas acho que a comunidade tem crescido de forma sustentada e a criar mais capacidade, a formar mais pessoas e a posicionarmo-nos nos projetos e iniciativas europeias, porque a Comissão Europeia está a promover muito esta área.
Mas mais ao nível académico.
Sim, talvez mais a nível académico. A nível das empresas é mais difícil. Nós no Portuguese Quantum Institute lançámos o Quantum Innovation Center, em que tentamos estabelecer essa interface com empresas e estamos bastante satisfeitos com a resposta. Mas isto são tecnologias futuristas.
Ainda há poucas empresas nesse universo.
Há poucas empresas que precisem de pensar a tão longo prazo. Isto não vai afetar as coisas a curto prazo, a menos que haja alguns desenvolvimentos. Mas esses desenvolvimentos podem vir mais cedo do que do que esperamos e é muito importante que as empresas e os diferentes stakeholders, também a nível público, porque são tecnologias de soberania, estejam atentos, estejam preparados.
É bom estarmos preparados e tentarmos unir a ‘expertise’, os recursos que temos para nos posicionarmos para sermos competitivos dentro da Europa e contribuir para que a Europa seja competitiva no mundo.
O Governo deveria começar desde já a delinear uma estratégia para para a computação quântica?
Acho que sim. Isso é importante. Não é fácil, mas é uma coisa que faz sentido. É bom estarmos preparados e tentarmos unir a expertise, os recursos que temos para nos posicionarmos para sermos competitivos dentro da Europa e contribuir para que a Europa seja competitiva no mundo. Há investimentos muito grandes a acontecer noutras regiões do mundo.
Quais os principais passos que deveriam ser dados no âmbito dessa estratégia?
Eu diria tentar que a expertise e o conhecimento técnico tenham uma palavra determinante. Que as coisas sejam feitas com o objetivo de desenvolver, baseando na competência e no conhecimento. Isso é que é sempre o mais importante nestas coisas.
Portugal devia estar já a tentar construir o seu primeiro computador quântico?
Não sei. São investimentos muito, muito grandes. Estamos a falar de dezenas de milhões de euros. Na Europa há poucos países que o estejam a fazer. Neste momento é feito mais por startups, alguns projetos académicos europeus, mas também em parceria com a indústria. Se nós tivéssemos dezenas de milhões de euros para colocar nesta área, seria muito mais útil formar pessoas. Neste momento são máquinas interessantes para fazer testes.
Deve-se esperar uma maior maturidade da tecnologia.
Não, eu diria o contrário. Acho que quanto mais madura a tecnologia estiver, mais difícil é nós entrarmos. Construir um computador quântico é melhor do que comprar. Há uma corrida, com certeza, mas isto não é uma tecnologia para amanhã. É muito mais interessante do ponto de vista científico, tecnológico, societal, ganharmos nós a expertise e não comprar uma caixa preta.
Mas tendo em conta que são investimentos da ordem das dezenas de milhões de euros, se houvesse esse dinheiro ou mesmo uma fração desse dinheiro, seria muito mais útil pensar estrategicamente nos nichos onde podemos ser competitivos e investir não só na formação, mas também no desenvolvimento de laboratórios.
Portugal devia desde já implementar uma estratégia.
Sim, com certeza. Temos de ser ambiciosos e ter uma visão, mesmo que isso nos obrigue a trabalhar em áreas onde o país ainda não tenha a expertise. Mas se for mais interessante do ponto de vista estratégico, se for mais interessante do ponto de vista de encontrarmos nichos de competitividade, eu acho que devemos ter essa ambição.
Esta é mais uma área que será dominada pelas grandes tecnológicas americanas?
Na parte do hardware quântico, sim. São investimentos muito grandes e claramente as grandes empresas tecnológicas americanas estão à frente. Na parte das comunicações quânticas, a China está muito, muito forte. Lançou o primeiro satélite de comunicações quânticas em 2016. Oficialmente, ainda não há nenhum outro, nem europeu, nem americano.
Mas há agora também uma corrida espacial quântica. Na parte dos sensores, há uma série de diferentes aplicações e a expertise está espalhada pelo mundo. A nível da teoria, do software quântico, eu acho que a Europa está bastante forte. Mas também está a apostar no hardware, nos sistemas e nas infraestruturas de comunicações.
Como isto são questões de soberania e são tecnologias futuristas, não temos uma urgência, como existe na inteligência artificial em que já estamos um bocadinho a correr contra o prejuízo. Mais vale que isto seja feito made in União Europeia do que tentar acelerar, porque temos algum tempo. Mas a concorrência é forte e não podemos ficar parados.
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