“Excecionalismo americano” de Tocqueville manter-se-á com Trump?
A economia enfrenta riscos como dívida pública, défices, crise no imobiliário, taxas de juro altas e valorização de 70% do S&P 500. Mas há otimismo quase universal quanto à hegemonia dos EUA.
A política orçamental dos EUA, marcada por uma postura ‘excecionalmente’ expansionista nos últimos anos, tem perpetuado o “excecionalismo da economia americana” e sustentado os índices acionistas. Mesmo num cenário de taxas de juro elevadas, o país tem apresentado um crescimento económico relativamente robusto, também impulsionado pela extraordinária valorização dos mercados de ações, refletindo um círculo virtuoso: a concentração crescente de capital nos EUA fortalece a sua economia, impulsiona as bolsas e, em contrapartida, o desempenho positivo dos mercados acionistas reforça, por sua vez, o dinamismo económico.
Esta dinâmica tem sido igualmente favorecida pela falta de alternativas competitivas noutras partes do mundo, que não oferecem retornos comparáveis aos dos EUA, sobretudo os outros dois grandes blocos económicos. A desaceleração económica da China, combinada com a crise política e económica do eixo franco-alemão — que enfraquece a coesão europeia —, bem como o desempenho aquém das expectativas dos mercados emergentes, consolida os EUA como principal destino para o capital global, perpetuando, pelo menos temporariamente, o seu papel como força motriz da economia mundial, sobretudo no domínio tecnológico e na capacidade de atrair investimentos para os mercados acionistas americanos.
Atualmente, a economia dos EUA representa cerca de 27% do PIB global (mais de 29 biliões de dólares num total aproximado de 108 biliões de dólares). Contudo, o peso das empresas americanas no índice MSCI World é de 74% da capitalização bolsista, com a Apple, Nvidia e Microsoft juntas a representarem cerca de 15%. Em novembro de 2024, o índice bolsista era composto por 1.397 empresas de 23 economias avançadas.
O político, historiador e pensador francês Alexis de Tocqueville, que viveu na primeira metade do século XIX, argumentava que o futuro da América sempre esteve nas suas próprias mãos. Para Tocqueville, o “excecionalismo americano” resultou de uma combinação única de democracia, igualdade relativa, liberdade individual e um senso de responsabilidade comunitária. Estas perceções continuam relevantes para a análise da sociedade americana nos dias de hoje. Tocqueville destacou também a ausência de uma aristocracia tradicional nos EUA, onde o sistema político e económico não favorecia privilégios hereditários, permitindo que o mérito e o esforço individual fossem os principais motores da mobilidade social. No entanto, nas últimas décadas, tem havido um aumento substancial de oligopólios, que prosperaram através de lóbis junto dos reguladores, eliminando a concorrência e limitando o crescimento baseado na inovação.
Na sua época, Tocqueville reconhecia já os desafios e perigos potenciais, como a tirania da maioria, o isolamento do individualismo e o risco de o materialismo corroer os valores democráticos. Atualmente, outro problema relevante é o chamado “dinheiro fácil”, impulsionado pelo crescimento do balanço da Reserva Federal dos EUA (Fed), que quadruplicou entre 2009 e 2014 e duplicou em 2020 devido à pandemia. A estratégia da Fed para resolver problemas sempre se pautou pela extraordinária injeção de liquidez, impulsionando os índices acionistas americanos, mas gerando apenas crescimentos económicos moderados. Entre 2009 e 2020, a economia cresceu apenas de forma satisfatória, enquanto os mercados de ações, liderados pelo setor tecnológico, registaram ganhos extraordinários. As autoridades dos EUA têm consistentemente priorizado evitar recessões, mesmo que isso implique abdicar de um crescimento económico mais sustentável e equilibrado.
Esta estratégia de “empurrar com a barriga” os problemas — com mais dinheiro dos bancos centrais e défices orçamentais crescentes — tem contribuído para a sobrevivência de empresas zombies. Estas empresas geram apenas receita suficiente para pagarem salários, enquanto as suas dívidas são pagas com a emissão de novas dívidas, muitas vezes facilitadas pelos juros baixos desde 2010 (mas nos últimos dois anos os juros têm subido, ameaçando mudar este cenário). O tecido empresarial americano encontra-se assim esmagado entre os oligopólios no topo e as empresas zombies na base. Este cenário impede o rejuvenescimento do tecido empresarial, limitando a inovação e os avanços tecnológicos. Períodos prolongados sem recessões podem culminar em crises mais profundas, como a de 2008/2009.
Atualmente, a economia enfrenta riscos significativos, como dívida pública elevada, défices orçamentais consecutivos, uma crise no imobiliário comercial, taxas de juro elevadas e a valorização de 70% do S&P 500 desde outubro de 2023. Apesar disso, há um otimismo quase universal quanto à permanência da hegemonia americana, especialmente devido aos lucros extraordinários das grandes empresas tecnológicas.
Atualmente, são poucos os investidores que desconfiam do desempenho económico e dos mercados acionistas americanos para 2025. A nível global, a maioria está otimista (bullish) quanto à permanência dos EUA como potência hegemónica, sustentada pelos impressionantes lucros das suas grandes empresas tecnológicas. No entanto, esta valorização constante das ações e do desempenho económico não seria tão “excecional” sem os lucros extraordinários do setor tecnológico, alimentados por elevados gastos governamentais, corroborados pelos crescentes défices orçamentais.
Embora a competitividade tenha sido uma característica marcante da economia americana, nos últimos tempos este cenário parece ter-se afastado um pouco. Nas economias concorrenciais, os lucros acima do normal tendem a ser disputados, e os EUA precisarão de recuperar este equilíbrio se quiserem manter a sua hegemonia. Atualmente, o crescimento económico e os lucros das empresas estão a ser impulsionados “artificialmente” pelos maiores défices orçamentais alguma vez registados numa fase de ciclo económico de alta. Esta política pró-cíclica é arriscada, pois em períodos de forte crescimento o governo deveria procurar equilibrar as suas finanças ou até gerar excedentes, reservando os saldos negativos para momentos de desaceleração ou recessão económica.
Há algumas décadas, algum investimento público ofereceu retornos positivos, principalmente quando direcionado para infraestruturas essenciais ou projetos que aumentassem a produtividade. Como Milton Friedman destacou, a dívida é “dinheiro dos outros”, e o ser humano tende a ser mais displicente na gestão do que não lhe pertence. No entanto, a dívida pública pode ser uma ferramenta eficaz para gerar retorno quando utilizada com sensatez. Exemplos históricos, como a compra do Alasca à Rússia ou da Louisiana à França, são testemunhos de investimentos públicos lucrativos para os EUA. Todavia, o papel dos governos é frequentemente dificultado por agendas eleitorais, que acabam por manietar muitas vezes a tomada de decisões racionais e de longo prazo.
Por isso, atualmente o problema não reside tanto na dívida em si, mas nas decisões ineficientes tomadas com este dinheiro. Desde 2010, a dívida pública americana aumentou 22,2 biliões de dólares, enquanto o PIB nominal cresceu apenas 14,3 biliões, refletindo uma crescente ineficiência. Por cada dólar emprestado ao governo dos EUA, o PIB nominal cresceu apenas 64 cêntimos de dólar. Este valor reflete a crescente ineficiência do investimento público em promover o crescimento económico. Este desajuste poderá trazer consequências graves no futuro, incluindo uma perda de confiança dos credores, uma queda nas classificações de crédito e o aumento das taxas de juro soberanas. Em 2023 e 2024, o aumento de um dólar de dívida pública resultou num retorno do PIB nominal de apenas 0,66 e 0,76 dólares, respetivamente. Nos EUA, desde o início do milénio, o crescimento do PIB é quase sempre inferior ao crescimento da dívida pública.
Esta ineficiência não é exclusiva dos EUA. Nos países da União Europeia, os investimentos públicos também têm sido em grande parte improdutivos, muitas vezes afastados de áreas tecnológicas ou de elevada produtividade.
Assim, diante das valorizações crescentes nos mercados acionistas, surge a questão: estamos perante uma bolha tecnológica impulsionada pela inteligência artificial (IA)? Em termos de múltiplos, como o PER (Price Earning Ratio), as ações americanas não estão assim tão sobrevalorizadas como no auge da bolha das dotcom em 2000. No entanto, atualmente os mercados americanos são negociados com um prémio muito maior em relação ao resto do mundo.
Enquanto muitos acreditam que o mundo está cada vez mais multipolar, com o crescimento de regiões como o sul global, sobretudo da China e da índia, e todo a faixa que vai do Médio Oriente ao sudeste asiático, os investidores parecem ver o cenário global como cada vez mais unipolar, centrado nos EUA. Este fenómeno tem transformado os mercados num jogo de soma nula, onde o dinheiro direcionado para os EUA suga recursos de outros mercados. No passado, um mercado americano em ascensão elevava outros mercados, tendo isso acontecido também durante a bolha das dotcom, mas, hoje, um mercado americano em expansão retira o dinheiro dos outros.
Quanto mais uma tendência persiste, maior se torna a confiança dos investidores, resultando numa compra cada vez mais indiscriminada de ações tecnológicas americanas relacionadas com a IA. Será que o ‘excecionalismo americano’ estará a acabar? É difícil prever quando, ou o que poderá desencadear uma correção nos mercados acionistas americanos, no entanto, um abrandamento do PIB para crescimentos de apenas 1% ou a manutenção de taxas de juro elevadas poderá espoletar uma forte desvalorização dos mercados acionistas, podendo culminar num círculo vicioso de recessão e maior desvalorização das ações. Neste cenário, as obrigações do tesouro seriam o melhor refúgio.
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