As recomendações de Bruxelas e a urgência de reformas
o caminho para Portugal exige uma ação concreta, ambiciosa e alinhada com as necessidades estruturais do país. É um percurso exigente, mas indispensável, que determinará o futuro do país.
Neste artigo analiso o cumprimento das recomendações específicas da Comissão Europeia para Portugal em 2024 e 2025, apresentadas em junho (no âmbito do Semestre Europeu), e perspetivo as políticas públicas necessárias para alcançar um crescimento económico sustentável, através de uma melhor gestão dos recursos públicos e uma maior resiliência social e ambiental. Embora algumas recomendações tenham sido implementadas (por vezes apenas parcialmente), as mais estruturais e cruciais estão por cumprir.
O artigo está estruturado para guiar o leitor pelos seus principais pontos. Na Parte I resumo as recomendações, destacando os aspetos mais relevantes. Na Parte II faço um balanço crítico da resposta do governo, avaliando o que já foi alcançado e identificando o que ainda precisa de ser feito. Este percurso oferece uma visão clara sobre os desafios e as oportunidades que o país enfrenta neste contexto.
Resumo detalhado das recomendações específicas da Comissão para Portugal em 2024 e 2025
Abaixo segue então a lista detalhada das principais recomendações da Comissão para o governo português, incluindo importantes mensagens do longo preâmbulo, muitas não destacadas nos media.
Recomendação 1. Consolidação orçamental e sustentabilidade do sistema fiscal e de pensões
- Apresentar um plano orçamental estrutural de médio prazo que assegure o cumprimento das metas europeias de défice e dívida pública, e do novo indicador de despesa líquida.
- Reduzir as medidas de apoio de emergência na área da energia antes do Inverno.
- Melhorar a eficácia do sistema fiscal, reduzindo encargos administrativos e fortalecendo a administração fiscal. Em particular, a Comissão salienta que o sistema fiscal deve ser simplificado. O sistema de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, agravado por sobretaxas estatais e municipais, cria encargos adicionais tanto para a administração fiscal como para as empresas. Esta situação é agravada pela sobrecarga de requisitos regulamentares onerosos e pela morosidade das interações com a administração pública, que constituem desafios de longa data com forte impacto no ambiente empresarial. O volume de dívidas fiscais em mora permanece elevado e muito acima da média da União Europeia (UE), representando 45,6% das receitas totais em 2021. Os custos administrativos da cobrança de impostos são altos e têm vindo a aumentar nos últimos anos (aumento de cerca de 4% entre 2018 e 2021). Além disso, o pessoal da administração fiscal está a envelhecer rapidamente e os recrutamentos são escassos. Abordar estes desafios permitiria melhorar o ambiente empresarial e promoveria a competitividade.
- Garantir a sustentabilidade do sistema de pensões, considerando a previsão de subida significativa das despesas com pensões – para 15,2% do PIB em 2046 (2,9 pontos percentuais acima de 2022 e um dos rácios mais altos da UE) e bem acima do peso de 28% do total da despesa pública registado atualmente –, devido ao envelhecimento e à melhoria prevista da esperança de vida, que irá ainda elevar bastante o rácio de idosos por ativo e baixar para menos de metade o rácio de contribuintes por pensionista (de quase três em 2022, para menos de 1,5 até 2050). Isto porque se prevê que a população portuguesa em idade ativa diminua em cerca de um milhão a médio prazo, sobretudo devido às baixas taxas de fertilidade e à redução da migração líquida. Esta evolução demográfica ameaça a sustentabilidade do sistema de pensões. Nos últimos anos, Portugal implementou reformas destinadas a melhorar a sustentabilidade do sistema de pensões – indexando a idade legal de reforma à esperança média de vida –, mas ela é ameaçada, nomeadamente, por regimes de reforma antecipada e diferentes taxas contributivas (incluindo os trabalhadores independentes).
Recomendação 2. Reforçar a capacidade administrativa de gestão de fundos da UE e acelerar a execução
- Resolver os atrasos e assegurar a execução rápida e eficaz do PRR, incluindo o capítulo REPowerEU (investimento em energia verde para terminar a dependência da UE da energia fóssil russa), de modo a concluir as reformas e dos investimentos até agosto de 2026. Subsistem desafios nas regras de contratos públicos e morosidade dos procedimentos, sobretudo nos grandes projetos de investimento. A participação sistemática do poder local e regional e das partes interessadas pertinentes continua a ser essencial para assegurar uma ampla apropriação do PRR, que contribuirá para a sua execução bem-sucedida.
- Acelerar a execução dos programas de política de coesão (Portugal 2030), que terão uma revisão intercalar até março de 2025, tendo em conta as recomendações específicas, bem como o plano nacional de energia e clima revisto. É apontada, em particular, a necessidade de reforçar a prevenção e mitigação dos riscos climáticos e aproveitar as oportunidades da Plataforma de Tecnologias Estratégicas para a Europa, com vista a melhorar a competitividade, sobretudo o apoio à transformação industrial – com realce para o fabrico avançado e eficiente em termos de recursos, os transportes sustentáveis, a biomedicina, a biotecnologia e as tecnologias limpas –, a par com o investimento em competências e qualificações para satisfazer a procura associada de mão de obra.
- No contexto da revisão intercalar – a base para a atribuição definitiva do financiamento da UE em cada programa –, a Comissão salienta ainda a importância de debelar as disparidades entre as zonas costeiras e interiores do país, entre as regiões continentais e ultraperiféricas e entre as áreas metropolitanas e as pequenas cidades e vilas, nomeadamente pela aceleração da execução dos programas da política de coesão e reforço da capacidade administrativa a nível nacional e regional. As prioridades acordadas nos programas continuam a ser pertinentes, segundo a Comissão, destacando ainda a aposta na investigação aplicada em domínios das estratégias de especialização inteligente, na transferência de conhecimentos e na valorização dos resultados de I&D, bem como na capacidade de inovação das pequenas e médias empresas, na transição ecológica e na competitividade. Continuam também a ser fundamentais os investimentos na educação e na formação, o desenvolvimento das qualificações e das competências exigidas pelo mercado de trabalho e as políticas ativas específicas do mercado de trabalho, especialmente para os jovens.
Recomendação 3. Gestão Sustentável da água e adaptação climática
- No âmbito da revisão intercalar, melhorar a gestão da água para reforçar a adaptação às alterações climáticas e assegurar a resiliência económica e ambiental a longo prazo – garantindo que os setores-chave continuem a ter acesso à água –, aplicando uma estratégia de gestão integrada e sustentável da água, desenvolvendo a sua estrutura de governação, promovendo investimentos na recolha e tratamento de águas residuais, na redução das fugas e na monitorização da água, desenvolvendo soluções baseadas na natureza (restauração da função de esponja natural dos solos, redução da extração de águas subterrâneas e a recuperação de zonas húmidas e rios, incluindo planícies aluviais), reabilitando as massas de água e melhorando a eficiência e reutilização da água.
Recomendação 4. Melhoria da infraestrutura elétrica
- Reforçar a capacidade da rede de transporte e distribuição de eletricidade, em especial melhorando os procedimentos de ligação e aumentando a sua transparência para incentivar os investimentos na rede nacional e aumentar as capacidades de armazenamento de energia.
- Indo ao detalhe, para concretizar o objetivo de, pelo menos, 85% do consumo bruto de eletricidade gerado por energias renováveis até 2030 – entretanto elevado para 93% no plano nacional de energia e clima (PNEC) revisto –, são necessários mais progressos na eletrificação e descarbonização da indústria, melhorando a competitividade. Apesar de medidas legislativas para acelerar o licenciamento das energias renováveis, há desafios de capacidade da rede para acomodar mais energias renováveis. A revisão dos planos da rede de transporte e distribuição elétrica ajudaria a acelerar a integração das energias renováveis, em consonância com os compromissos do PNEC e com os compromissos de interligação com Espanha e França. É essencial simplificar os procedimentos de ligação à rede e estabelecer um planeamento claro e a longo prazo dos leilões solares. Face à crescente procura, Portugal teria vantagem em investir mais nas redes elétricas, incluindo a modernização das linhas elétricas existentes e a promoção da flexibilidade do sistema com soluções como o armazenamento, mais contadores inteligentes e incentivos ao consumo fora das horas de ponta e mecanismos de resposta do lado da procura.
Balanço da reposta do governo às recomendações e foco no que falta fazer
Ao nível da Recomendação 1
O governo comprometeu-se com um plano orçamental estrutural de médio prazo perante a Comissão Europeia, como recomendado, até porque era indispensável para a apresentação do Orçamento de Estado para 2025. Já analisei anteriormente que falta uma reforma profunda do Estado que baixe o peso da despesa corrente em favor de mais investimento público nacional (até para fazer face a redução dos apoios europeus após 2026) e, em particular, uma descida expressiva da carga fiscal que restaure alguma competitividade a esse nível para atrair mais investimento. Há pouco disso no plano orçamental, cuja projeção de crescimento económico anual de 2% a médio prazo só confirma a pouca ambição do mesmo.
No que toca a retirada das medidas de apoio de emergência na área de energia, o cumprimento tem sido parcial, mas considero que o que tem sido feito, reduzindo os apoios quando o preço do petróleo baixa para estabilizar o preço final dos combustíveis, é equilibrado e vai de encontro ao objetivo da Comissão.
Na primeira recomendação, retenho ainda que, tal como eu, a Comissão é contra as sobretaxas estatais e municipais de IRC – as primeiras não estiveram em discussão no desagravamento do IRC na negociação do Orçamento de Estado, como deviam, e as segundas não estão na agenda devido às eleições autárquicas de 2025 –, que complexificam o sistema e acabam por criar também dificuldades para a própria administração fiscal. É preciso uma reforma fiscal urgente para simplificar procedimentos, reduzir os custos crescentes de cobrança de impostos e rejuvenescer a equipa da administração fiscal, nomeadamente. Em termos de melhores práticas, aconselho olharem para a implementação de sistemas fiscais digitais pela Estónia, tendo em vista reduzir custos administrativos e melhorar a transparência.
Quanto à sustentabilidade do sistema de pensões – onde o modelo baseado em contas individuais da Suécia é um referencial a ter em conta –, evoluímos em sentido contrário ao preconizado pela Comissão, dado o aumento extraordinário de pensões proposto pelo PS e aprovado pelo Parlamento com abstenção do Chega, o que é uma irresponsabilidade face às projeções acima referidas. Por outro lado, a perspetiva de redução da imigração líquida da Comissão apenas reforça a importância de integrar e atrair imigrantes e de travar a saída do nosso talento jovem com medidas efetivas como o IRS Novo talento que defendo, acessível às gerações novas e anteriores, a imigrantes e emigrantes, também coerente com a importância de requalificação da população ativa para as transições gémeas referida na recomendação 2.
Ao nível da Recomendação 2
No que se refere aos atrasos do PRR, o ministro Adjunto e da Coesão Territorial tem tomados medidas para acelerar a execução e há alguma expectativa quanto à reprogramação de investimentos no início de 2025, que será decisiva para conseguir finalizar os investimentos em 2026. Contudo, os desafios das regras dos contratos públicos e morosidade de procedimentos, sobretudo nos grandes projetos de investimento, são antigos, e temo que as alterações a esse nível sejam só para o PRR e não mude nada de fundo.
Quanto ao Portugal 2030, tenho sérias dúvidas de que o que está programado atualmente atenda aos vários desafios elencados pela Comissão e que subscrevo, com realce para o reforço da coesão territorial e a inversão do abandono do interior do continente, o que não aconteceu com os fundos do Portugal 2020 e é pouco crível que suceda com Portugal 2030, que é a sua continuação. O mesmo raciocínio se aplica à crucial valorização económica dos resultados de I&D e reforço da capacidade de inovação das PME, que também não progrediram o suficiente no Portugal 2020. Quanto aos investimentos em educação e formação, não bastam sem um maior rigor e exigência do sistema, como mostram os resultados do recente relatório da OCDE sobre educação de adultos, com cerca de 40% da população em idade ativa a revelar dificuldades na literacia, numeracia ou resolução de problemas, e mesmo a geração mais nova e os mais qualificados também pontuam relativamente mal, mais perto do final do que do meio da tabela. Ao nível do Portugal 2030, defendo ainda a revisão dos critérios de mérito e de resultado dos projetos para valorizar o aumento do VAB, do valor acrescentado nacional, da produtividade e da ecoeficiência.
Duvido ainda que consigamos progressos na reindustrialização, aproveitando as oportunidades que se apresentam no quadro europeu como preconizado pela Comissão, quando no programa económico ‘Acelerar a economia’, apresentado em junho, o número de medidas para a indústria é bem inferior ao das dedicadas ao turismo – cujo peso é já excessivo, sendo preciso evoluir da quantidade para a qualidade e o valor gerado –, o que já diz bem das prioridades assumidas a nível económico por este governo.
Quanto aos investimentos referidos de capacitação da administração no PRR e no Portugal 2030, no fundo atirar para aí mais dinheiro, considero um erro grave, pois sinaliza a substituição de despesa corrente por fundos europeus. O que é precisamos é de melhor gestão e mais eficiência no Estado para que cobre menos dinheiro aos contribuintes, mas tal pressupõe uma reforma profunda que é sempre adiada. Os fundos europeus devem destinar-se antes a aumentar o investimento público e privado, de modo a elevar o potencial de crescimento da economia, preparando-nos para a redução desses apoios após 2026.
Ao nível da Recomendação 3
Quanto à gestão sustentável da água, o governo já anunciou que será apresentada uma estratégia nacional da água no início do ano, com base no trabalho a apresentar pelo grupo de trabalho criado para o efeito, designado “Água que nos une”, pelo que não me posso pronunciar para já a esse respeito. Nessa altura veremos se as recomendações da Comissão Europeia estão vertidas nessa estratégia. Neste caso, Israel pode ser um bom referencial em termos de reutilização e gestão integrada de recursos hídricos.
Ao nível da Recomendação 4
As indicações da Comissão para melhoria da infraestrutura elétrica decorrem da ambição PNEC em termos de incorporação de energias renováveis na rede (ainda maior na versão, entretanto, revista), cuja execução deve ser seguida com atenção pela importância do tema. No armazenamento energético e incentivo ao autoconsumo, vale a pena ver o exemplo da Alemanha com as devidas adaptações.
Em conclusão, subscrevo a grande maioria das recomendações da Comissão Europeia e outras implícitas, que tenho abordado de forma pedagógica e cívica nos meus artigos de opinião, para que os Portugueses se mantenham informados e conscientes.
Em particular, a necessidade de uma reforma profunda do Estado e do sistema fiscal, abrindo caminho a uma redução sustentada da carga fiscal – incluindo a eliminação prioritária da derrama estadual –; a importância da integração e atração de imigrantes, bem como da retenção do nosso talento jovem; a urgência de reindustrialização e valorização económica do conhecimento (pelo reforço da articulação entre Academia e empresas), para elevar o perfil de especialização da economia e gerar emprego mais qualificado, o que se coaduna com o investimento em educação e formação, que deve ser ampliado de forma inclusiva e acompanhado de uma maior exigência de todo o sistema, para que os resultados sejam melhores em matéria de competências efetivas. O aprofundamento da descentralização é um elemento fundamental da reforma do Estado, sendo instrumental para uma melhor distribuição das oportunidades económicas pelo País e uma maior coesão territorial. Em 2025 veremos se o governo é capaz de avançar de forma decisiva nestas matérias estruturantes. As dúvidas são muitas e vários sinais não são positivos, como referi, mas ainda não perdi a esperança, para bem de todos nós.
Com os desafios identificados e as recomendações em cima da mesa, o caminho para Portugal exige uma ação concreta, ambiciosa e alinhada com as necessidades estruturais do país. É um percurso exigente, mas indispensável, que determinará o futuro económico e social de Portugal. Que este seja o momento de avançar com coragem e determinação para enfrentar os desafios que o futuro nos impõe.
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