A Comissão para a Reforma Fiscal é uma boa ideia

Apesar do meu profundo desacordo com a linha de pensamento dos autores, neste ponto em particular não posso deixar de manifestar o meu acordo.

1. O Professor Cavaco Silva e o Dr. Carlos Tavares, publicaram por estes dias um artigo de opinião cujo ponto central é a defesa da nomeação de uma Comissão para a Reforma Fiscal. Concordo com a ideia. Apesar do meu profundo desacordo com a linha de pensamento dos autores, neste ponto em particular não posso deixar de manifestar o meu acordo.

Desde logo, porque o artigo reflete de forma séria o processo que levou à Reforma Fiscal de 1989 e que, ao fim de 35 anos, ainda é a base do nosso sistema fiscal. Por um lado, a nomeação de um grupo técnico (a Comissão da Reforma Fiscal), pelo governo liderado por Mário Soares, cujo trabalho foi entregue pelo seu coordenador, Professor Paulo Pitta e Cunha, ao governo liderado pelo Professor Cavaco Silva, que assumiu o processo de decisão. Mas também a entrada na Comunidade Económica Europeia, cujo processo de integração obrigou à harmonização da tributação indireta, com especial enfoque na implementação do IVA, processo que decorreu com extraordinário sucesso, tendo por base os estudos de um grupo técnico, liderado pelo Professor Xavier de Bastos.

O processo que conduziu à Reforma Fiscal de 1989 foi um exemplo da forma como as políticas públicas devem ser formuladas, baseadas no estudo, na reflexão e dialética e na assunção da decisão política. Um processo que, por isso mesmo, sobreviveu à conjuntura política inicial e subsequente. E que dura há 35 anos.

Em matéria fiscal, Portugal seguiu o bom exemplo do projeto europeu que baseia a adoção da sua política fiscal de integração numa base técnica, que antecede o processo de decisão política: São credores do conjunto da cidadania europeia os comités de peritos que produziram os relatórios Tinbergen (1953), Newark (1962) e Ruding (1992), e que são documentos que nos ajudam a entender a forma como se fez a harmonização e aproximação da legislação fiscal dos Estados-Membros no domínio da fiscalidade indireta e as hesitações e falta de entendimento no essencial da tributação sobre o rendimento das sociedades.

2. Ao contrário da ideia que percorre no nosso espaço público, o sistema fiscal no nosso País é estável. Passados 35 anos da Reforma Fiscal de 1989, o essencial da estrutura do nosso sistema fiscal foi preservado, com um sistema de impostos diretos assente na progressividade da tributação dos rendimentos das pessoas singulares e com um único imposto sobre o rendimento das sociedades, a par de um sistema de impostos indiretos plenamente harmonizado com as regras europeias. No domínio da tributação do património, é de assinalar um importante progresso, no início deste século, com a aprovação dos Códigos do IMI e do IMT que, mais uma vez, tiveram por base os trabalhos técnicos de uma Comissão (da Reforma da Tributação do Património), e cujo processo de decisão política foi liderado por Vasco Valdez, um dos secretários de Estado dos Assuntos Fiscais com mais anos na pasta.

Esta estabilidade do sistema fiscal corresponde, do meu ponto de vista, à solidez do processo de decisão que antecedeu a sua adoção. Depois, dentro do quadro do nosso sistema fiscal, são tomadas decisões de natureza política que são normais em democracia e que respondem, nos diversos ciclos, às orientações de política que são estabelecidas por diferentes governos e pela Assembleia da República – que tem a competência exclusiva da sua adoção, em linha com a tradição fundadora das democracias liberais “no taxation without representation”.

Um dos tópicos que é abordado pelos autores do artigo que aqui se comenta, é o da complexidade do sistema fiscal, induzido em grande medida pela panóplia de benefícios fiscais. 542, para ser mais preciso, de acordo com o relatório do Grupo de Trabalho para os Benefícios Fiscais, designado em 2018, e que foi coordenado pela Professora Francisca Guedes de Oliveira. De entre os muitos méritos desse trabalho, destaco, precisamente, o esforço de sistematização do conjunto disperso de normas de caráter fiscal que devem prosseguir objetivos de natureza extrafiscal. Dentro destes, temos ainda de distinguir aqueles que são de natureza estrutural e os que não são, bem como os que não são verdadeiros benefícios fiscais mas elementos integrantes do imposto, porque muitas vezes a discussão sobre o peso excessivo da despesa fiscal é toldada por não se fazer esta adequada distinção, aspeto que me parece que neste artigo não é exceção. Mas, do meu ponto de vista, isso não afasta a validade do argumento dos autores quanto à complexidade que a existência de 542 benefícios fiscais introduzem no nosso sistema. Isso, aliás, explica em grande medida, por exemplo, a diferença entre a nossa taxa estatutária de IRC e a nossa taxa efetiva.

3. Os trabalhos de uma possível Comissão para a Reforma do Sistema Fiscal não se destinam – nem podem ter o propósito – de definir taxas de imposto ou medidas de natureza fiscal de suporte a políticas económicas, em particular de política industrial. Antes se devem reconduzir à avaliação da evolução do sistema fiscal e à reflexão da sua adequação atual e futura às funções de coleta dos recursos para prover as despesas do Estado e de redistribuição, conforme estabelecido constitucionalmente para a sua função.

A simplificação do sistema fiscal é um objetivo neutro do ponto de vista político e constitui, do meu ponto de vista, o maior desafio que o nosso sistema fiscal enfrenta. As decisões sobre taxas reduzidas de IVA, por exemplo, são tomadas de entre as mais de 2000 propostas que os autores fazem referências nas discussões em sede de especialidade do Orçamento de Estado. Sem qualquer avaliação prévia. E, os dados mostram, como grande parte da litigância em matéria fiscal – em Portugal e no Tribunal de Justiça da União Europeia – está associada, precisamente, à aplicação das taxas reduzidas de IVA.

Mas, a par da simplificação do sistema fiscal, onde a reformulação dos benefícios fiscais se apresenta como prioritária, temos ainda de ter presente a alteração do peso dos diferentes impostos na estrutura da receita para aferir se o nosso sistema fiscal, em que mais de 50% da receita tem origem nos impostos indiretos, continua a assegurar a função de redistribuição através dos impostos diretos, e se a forma como temos estruturados os impostos indiretos, em particular o IVA, introduzem ou não fatores excessivos de regressividade.

4. A criação da U-Tax (Unidade Técnica de Política Fiscal) constitui uma importante concretização resultante do Grupo de Trabalho para os Benefícios Fiscais (2018), e é um instrumento valioso para a avaliação (incluindo monitorização) do sistema de benefícios fiscais, e de suporte técnico à tomada de decisões de política fiscal.

Não posso, no entanto, deixar de concordar com os autores sobre a pertinência de se designar uma Comissão da Reforma Fiscal, com tempo necessariamente longo para estudo e reflexão, sem pressa de decisões imediatas, que apenas comprometeriam um processo de decisão política que assenta numa dialética democrática. Uma reforma fiscal que preserve o consenso do nosso modelo de sistema fiscal, a eficácia da nossa administração fiscal e que em nada prejudica as diferenças de opção de política fiscal que são inerentes aos diferentes partidos políticos que, na Assembleia da República, representam o conjunto do Povo português.

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