Somos todos interior. Somos todos litoral

  • João Grilo
  • 16:35

Se existe um “problema do interior desertificado”, também existe um “problema do litoral massificado” que raramente é trazido para o debate. Veja-se a recente alteração à lei dos solos.

O termo “interior”, que não gosto de usar, remete para um tempo em que as distâncias dentro do país se mediam em dias e é uma reminiscência que sobrevive na nossa consciência coletiva de uma também antiga dicotomia entre capital e “província”. Não faria sentido ser utilizado, no final do primeiro quarto do século XXI, num país desenvolvido com pouco mais 200 quilómetros entre a costa e a linha de fronteira. Mas, se essa dicotomia persiste ou não com efeitos reais e práticos sobre as nossas vidas, é o que agora veremos.

À falta de melhor designação, chamemos-lhe áreas rurais (“rural areas”, da UE) ou territórios de baixa densidade, ou, persistindo no termo, estaremos sempre a falar de mais de dois terços de Portugal Continental, sendo que, levado ao extremo, muitas vezes as áreas rurais se estendem até ao limite das áreas metropolitanas. Ou seja, excetuando alguns pontos bem marcados do litoral, onde se concentram pessoas, empresas e atividade económica, é dos desafios e das oportunidades do resto do país que falamos, quando falamos de desafios do interior.

Ora, se existe um “problema do interior desertificado”, também existe um “problema do litoral massificado” que raramente é trazido para o debate.

A concentração excessiva de pessoas em pontos que não foram preparados para esse fim levanta constantes problemas de mobilidade, acesso a serviços públicos, segurança e habitação, entre outros, que levam também à constante mobilização de recursos que nunca se revelam suficientes. E leva também à adoção de medidas pontuais e extraordinárias para atacar problemas estruturais. Veja-se a recente alteração à lei dos solos para responder a exigências de habitação em zonas de grande pressão, representando um retrocesso de décadas no ordenamento do território com consequências imprevisíveis ao dia de hoje.

Estas duas realidades são duas faces da mesma moeda, indissociáveis na hora de procurar soluções que, a existirem, serão sempre complexas, resultantes de múltiplas abordagens e a exigirem cedências e compromissos de todas as partes. Litoral e interior são dois gémeos siameses e nenhum deles estará bem se o outro estiver mal. A boa notícia é que a construção de um modelo de desenvolvimento sustentado os obriga a trabalhar para objetivos comuns.

Confrontados com os problemas da desertificação humana que se acentua apesar de todos os esforços e investimentos, bem como as cada vez mais numerosas e complexas competências que trazem novos desafios que transcendem a compensação financeira, os autarcas dos territórios de baixa densidade vivem a angústia de procurar soluções e a tentação de chamar a si a resolução de todos os problemas. Tarefa impossível. Bem como a pressão e a perceção de que não tendo canais e vias privilegiadas para Lisboa, tudo se torna mais difícil.

Ora, a primeira constatação que me parece obrigatória é que há várias escalas para mudar o paradigma dos nossos territórios e nem todas estão na esfera local.

Temos que começar por fazer o exercício, tão libertador como clarificador, de perceber o que está na nossa esfera da atuação e que podemos mudar a partir de casa, e o que devemos exigir que seja resolvido noutros patamares de decisão.

Sem pretender doutrinar ninguém, permitam-me usar como referência o meu município, os caminhos que aqui seguimos e os desafios com que nos confrontamos. Alguns paralelismos serão possíveis de estabelecer com muitos outros pontos do território. Afinal, são 543 km2 no Alentejo Central, colado à fronteira com Espanha (a mais deprimida da Europa em toda a sua extensão) e com cerca de 5 mil habitantes nos últimos censos.

De entre os objetivos na nossa esfera de atuação, privilegiamos a reabilitação do património como motor de atração de investimentos privados ligados à hotelaria, restauração e animação turística. Os serviços públicos de qualidade e proximidade, em especial nas áreas da educação e da saúde, mas também no setor social, nas forças de segurança e na prestação de serviços ao cidadão, dão qualidade de vida aos nossos residentes e transmitem confiança a quem nos visita ou pretende investir. O emprego é o primeiro fator de fixação. A qualidade de vida, o segundo.

As acessibilidades rodoviárias, a qualidade da água, a cobertura de fibra e de rede num mundo cada vez mais digital são outros fatores importantes nas respostas locais.

Há objetivos que só se concretizam no nível supramunicipal, em parceria com outros municípios, vizinhos ou não, ou ao nível da CIM. Sair da zona de conforto da nossa esfera municipal e trabalhar em conjunto com quem nos rodeia para objetivos maiores traz resultados positivos.

Temos depois objetivos mais difíceis de concretizar, por não existir nível regional de decisão ou por dependerem de mudanças nas políticas nacionais. É aqui que se perde muita da capacidade da dinâmica que podia existir.

No Alandroal estamos gratos por Alqueva e por toda a dinâmica económica e turística que nos trouxe. É o exemplo perfeito de como investimentos estratégicos de grande dimensão, distribuídos pelo território, têm um enorme poder transformador. O que não podemos aceitar é que existam centros electroprodutores na barragem ou grandes centrais solares flutuantes sem que os municípios recebam a sua parte da riqueza aí produzida. O mesmo se passa com o IMI, que também não recebemos. Veja-se a batalha jurídica que alguns municípios travam a norte como grito de alerta para uma realidade transversal ao país e a vários recursos endógenos. Produção elétrica, hidroelétrica, fotovoltaica ou eólica, exploração mineira, exploração florestal, etc. Teríamos um país mais justo e equilibrado se a exploração dos recursos naturais deixasse, por princípio, uma parte da riqueza produzida no local de exploração e não onde quer que estejam as sedes das empresas, muitas vezes… em Lisboa.

No Alandroal apostamos na base agrícola do concelho. De natureza essencialmente tradicional onde desponta o uso de tecnologia avançada e promovemos as abordagens regenerativas e biológicas. O país inteiro tem nos territórios de baixa densidade esta base de produção estratégica de alimentos que será cada vez mais importante no futuro. Um ativo que tem um enorme valor e deve ser alvo de políticas mais musculadas. A mesma lógica se deve aplicar ao valor do montado e das florestas autóctones de todo o país.

No Alandroal queremos tirar partido da nova linha de ferrovia que atravessa o nosso território. Sete municípios da região batem-se há sete anos pela construção de soluções de carga e descarga, bem como de passageiros junto à estação técnica nº 2 (Alandroal-Vila Viçosa) do novo troço do Corredor Internacional Sul (Sines-Caia). Nada está decidido. Infraestruturas deste tipo constituem verdadeiras âncoras de desenvolvimento económico sub-regional, de fixação e atração de população e de aumento da coesão. Também nos batemos pela navegabilidade do rio Guadiana entre Badajoz e Alqueva (Juromenha). O país da baixa densidade está pontuado destas âncoras à espera de acontecerem. Centros logísticos, aeroportos barragens, hospitais, escolas profissionais, ligações rodoviárias, ferroviárias e fluviais. É urgente a existência de uma visão de médio e longo-prazo e de proximidade regional para fazer acontecer. Enquanto assim não for, teremos a invariável tendência para acontecerem mais coisas onde já aconteciam antes (a título ilustrativo, convido a uma visita rápida à página do PRR onde está evidenciada a execução atual por região e por concelho). A centralização é uma força que se auto-alimenta numa espiral crescente que encontra sempre boas razões para continuar a crescer. Veja-se a proposta em debate da nova Comissão Europeia que, em contraciclo com tudo o que defendemos, aponta para a centralização no nível nacional da gestão dos fundos comunitários.

No Alandroal estamos comprometidos com a transição energética e a sua importância para o país e para o nosso futuro comum. Centrais de produção de energia a partir do sol são bem-vindas e é possível a sua concretização em áreas com baixa aptidão agrícola ou onde o montado foi destruído para monocultura florestal não-autóctone de baixa rentabilidade. Com respeito pelo património e pela paisagem. Também aqui, é fundamental que, além da criação de postos de trabalho e de dinâmica de criação de conhecimento, os impostos gerados por estes investimentos fiquem no território.

No Alandroal levamos muito a sério a conservação e a renaturalização. Temos espaço para as energias renováveis, mas temos mais espaço ainda para a manutenção dos ativos naturais. Vamos acolher um santuário para elefantes retirados ao cativeiro e esperamos ver ainda financiado um projeto LIFE para plantação de mais de um milhão de árvores na Ribeira do Lucefecit, onde queremos conjugar investimento público e privado para que toda a área envolvente à ribeira seja um santuário de vida selvagem e preservação dos ativos patrimoniais, paisagísticos e etnoarqueológicos. Estas áreas são reservas estratégicas de valor futuro, mas ao mesmo tempo podem constituir fatores de atração e fruição, logo, de desenvolvimento económico local. Devem ser vistas como fator de equilíbrio em relação a zonas de denso povoamento e ser valorizados como tal. Merecem financiamento específico em complemento aos programas europeus.

No Alandroal queremos enfrentar a crise climática e manter baixa a nossa pegada ecológica, ter um calculo exato das nossas (baixas) emissões de dióxido de carbono e, se possível, reduzi-las. É um imperativo do nosso tempo, um fator de atratividade e uma garantia de sustentabilidade futura. Maior atividade económica significa maior produção de riqueza. De acordo. Mas também significa (ainda) maiores emissões de CO2. Se começa a existir um fundo para a transição justa que ajuda a descarbonizar, porque não haver um mecanismo nacional de compensação de baixas emissões com uma diferenciação positiva para quem já trabalha para manter bons indicadores?

No Alandroal queremos receber bem quem está a decidir vir viver ou trabalhar connosco. A pandemia acelerou um processo que já estava em andamento e que trás novos residentes, sazonais ou permanentes, para reabilitar habitações e dar vida às aldeias. Também há espaço para novas construções. O PDM, com revisão concluída este ano, tem pelo menos 30% de dos perímetros urbanos disponíveis sem precisar de afetar solo rustico. Veem porque descobrirem que o que temos para oferecer lhes melhora muito a qualidade de vida. Talvez os incentivos do Programa de Valorização do Interior (agora em avaliação e a precisar de um novo impulso) estejam a contribuir. Talvez haja outros fatores. Mas está a acontecer um movimento e são muitas as pessoas que nos fazem perguntas, tentadas a mudar. Devemos perceber com que medidas se impulsiona esse movimento que tem vantagens para todos.

Ficam por aprofundar aqui, os objetivos estratosféricos de uma verdadeira distribuição do poder e da representatividade pelo território com uma reforma do sistema político.

A criação do nível regional de decisão política e a consequente responsabilidade de gestão de um orçamento regional seria a chave para o desbloquear de muitos projetos-âncora espalhados pelo território que sofrem com o “longo caminho para Lisboa” (não físico, mas mental, político e burocrático) e que aguardam até ao limite da resistência um alinhamento de astros para uma aprovação.

De igual forma, os mais de dois terços do país que descrevo sofrem de crónica falta de representatividade nos órgãos de poder nacionais. Faz sentido que o Alentejo, um terço do território nacional, seja representado na Assembleia da República por 8 deputados em 230? Faz sentido que Lisboa precise de 48 deputados para ser representada? Faz sentido que com todas as interações, capilaridades e mobilidades que existem hoje em dia o único critério para a distribuição de deputados seja o número de residentes/eleitores?

Nunca fiz, nem farei, parte do coro de lamento do “salvem o interior” como se fosse uma questão de boa vontade ou imperativo moral. Pelo contrário, entendo, como procurei exemplificar, que grande parte do país, o maior ativo nacional, está artificialmente colocado numa posição de subserviência em relação a alguns pontos do litoral, subestimando-se o seu real valor, porque não entram na equação todos os ativos que o nosso tempo exige, com a consequente distribuição de recursos em função desse valor.

Talvez a boa notícia, como disse no início, seja que o país vai ter mesmo que fazer isso se quiser estar no pelotão da frente do próximo quarto de século.

  • João Grilo
  • Presidente da Câmara Municipal de Alandroal / Presidente da Agência de Desenvolvimento Regional do Alentejo

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