Portugal é atropelado por uma bicicleta infantil. E a bicicleta infantil torna-se parte da História do Portugal Contemporâneo.

As manifestações descem a Avenida da Liberdade. A polícia sobe a Rua do Benformoso. Descer é o privilégio de quem decide como cidadão. Subir é o destino de quem vagueia sem pátria. Estas duas ruas de uma Lisboa transformada são o retrato que a política portuguesa não sabe ler porque não sabe compreender. Na Avenida da Liberdade desfila a nova cidade dos turistas que afluem aos cofres do Estado e da Câmara com impostos e receitas que se julgam a riqueza da nação. Na Rua do Benformoso situa-se a nova cidade dos imigrantes que afluem ao espírito do Estado e da Câmara a necessidade e o desespero que julgam a pobreza da nação. Entre o cosmopolitismo novo-rico da Avenida da Liberdade e o multiculturalismo pós-colonial da Rua do Benformoso está a realidade de uma Europa desconhecida do provincianismo periférico nacional. É o clássico desencontro entre as duas nações que não se conhecem, que não se encontram, que apenas se observam à distância higiénica de um preconceito. É nesta distância entre dois mundos que a política se perde e nos faz perder. Sobra o mito de um país orgulhoso, senhor de tanto passado, nação que deu mundos ao Mundo, mas que não passa afinal de um país miseravelmente míope. Entre a Lisboa Parque-Temático e a Lisboa Gueto Pós-Colonial qual o lugar dos portugueses? Qual a visão para o Portugal do futuro?

A política portuguesa está encostada à parede. E está encostada à parede porque não tem resposta política para o enclave turístico nem para o gueto imigrante nem para a vida portuguesa. Colonizados pelos turistas, pressionados pelos imigrantes, acossados pelos portugueses, o discurso político refugia-se no tema da segurança para fugir a uma realidade complexa que lhe foge por entre as mãos. A segurança torna-se o tema do momento pela facilidade da cor da pele, pelo desfasamento de costumes, pela urgência de preencher um vazio sem as exigências de pensar a política. Portugal está em processo de mudança, Lisboa está em progressão revolucionária, enquanto a política se ocupa num teatro de sombras ideológicas em busca de uma supremacia eleitoral que foge a todos os partidos. Para a Esquerda os problemas resolvem-se com a derrota da Direita. Para a Direita os problemas resolvem-se com a derrota da Esquerda. Este maniqueísmo primário consiste na redução da política a um jogo de baixo risco para os políticos e de alto risco para o país. Entre novelas e novelos existe um Portugal desconhecido que se perde e que se afunda e que não pode esperar nem confiar na inteligência política. O discurso sobre a segurança é um fétiche ideológico e um perigo para a coerência da fábrica social. Tudo soa a sociologia de café, tudo soa a indignação de tabacaria, tudo soa a um coração usado na lapela para impressionar os mais sensíveis. Tudo soa a discurso oportunista para recolha de fundos eleitorais.

O discurso demagógico sobre a segurança à Esquerda e à Direita arrisca a transformar-se numa profecia auto-realizável. De tanto anunciarem o tema no discurso político acabam por transformá-lo numa realidade social. E quando a realidade social explodir em fumos e chamas nas ruas de Lisboa teremos escassez de turistas, excesso de imigrantes, portugueses divididos entre os extremos da Esquerda e os extremos da Direita. O colapso é a vitória da sociologia de bolso lida num comboio suburbano. O colapso é a vitória da polícia cercada nas esquadras. O colapso é a invasão do Parlamento por activistas de Esquerda e de Direita a destruírem o pouco que resta da autoridade da República. Neste cenário imaginado, a política substitui a reverência mística pelo eleitor pela evidência mítica do motim, do tumulto, da Revolução.

Quando não há seriedade e bom-senso, quando não existe inteligência e visão, quando a política ao centro se transforma numa estratégia cínica para manutenção do Governo, a política portuguesa está encostada à parede. A política portuguesa encostada à parede representa o predomínio do “marxismo cultural” e do “nacionalismo cultural”. Esta realidade maniqueísta é um perigo para a democracia porque divide os portugueses entre dois grupos mutuamente exclusivos. Observe-se o discurso político sobre as Autárquicas em que o Frentismo é a opção ideológica de base natural. Observe-se o discurso político sobre as Presidenciais em que o Frentismo é a opção ideológica de base natural. Com esta lógica e com este critério, os partidos vão escolher os mais sectários, os mais pragmáticos. Portugal precisa de revelar o livro secreto do dissidente compilado pela Comissão do Pensamento.

Numa época em que parece termos acordado a acreditar que a História é o processo irreversível pelo qual tudo se desmorona, o pessimismo desamparado vai no sentido de explicar o seu estatuto como o grande mito dos nossos tempos. Portugal é atropelado por uma bicicleta infantil. E a bicicleta infantil torna-se parte da História do Portugal Contemporâneo.

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