Construir casas, desconstruir argumentos
Quais foram, então, as alterações trazidas pelo novo diploma de 30 de Dezembro, em matéria de conversão de solos rústicos em solos com finalidade habitacional?
Muita controvérsia tem gerado a dita “alteração à lei dos solos”. E boa parte dela resulta de grande desinformação, começando logo por se falar em “lei dos solos”. É uma coisa que não existe no nosso ordenamento jurídico. Há a Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e de Urbanismo, mas essa não foi mexida em Dezembro de 2024. O que conheceu alteração foi o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de Maio.
Esta confusão normativa talvez explique a ideia errada que se tem veiculado de que foi o diploma deste Governo a criar um procedimento simplificado de reclassificação do solo rústico para urbano. Não foi. Este procedimento (e sublinhe-se o “simplificado”, porque a reclassificação está prevista na versão original do RJIGT, a de 2015) é um produto do “simplex dos licenciamentos”. Foi o Decreto-Lei n.º 10/2024, de 8 de Janeiro, que previu que, em certas situações, a passagem de solo rústico a urbano não tivesse de acarretar a elaboração, a revisão ou a alteração de um plano municipal e antes pudesse ser realizada através de um processo mais simples que, ainda assim, implicava uma consulta pública, uma conferência procedimental e a aprovação da assembleia municipal.
Uma das situações contempladas era a dos solos de propriedade exclusivamente pública, contíguos a solos já urbanos e não localizados em áreas sensíveis, na Reserva Ecológica Nacional ou na Reserva Agrícola Nacional, que podiam ser transformados em solos urbanos destinados a habitação desde que esta fosse a custos controlados ou estivesse prevista numa Estratégia local de habitação, Carta municipal de habitação ou Bolsa de habitação.
Quais foram, então, as alterações trazidas pelo Decreto-Lei n.º 117/2024, de 30 de Dezembro, em matéria de conversão de solos rústicos em solos com finalidade habitacional? Sem ser exaustiva: eliminou-se o requisito de que os solos em causa sejam públicos, substituiu-se a referência a “custos controlados” por “habitação de valor moderado” e permite-se que 30% da área de construção fique de fora deste conceito. De resto, continua a ser exigida compatibilidade com a estratégia local de habitação, a carta municipal de habitação ou bolsa de habitação; continua o procedimento a ser aplicável somente a solos adjacentes aos já urbanos (excepto no caso de casas para trabalhadores agrícolas); continua a não se poder classificar solos que fiquem em áreas sensíveis, na Reserva Ecológica Nacional ou na Reserva Agrícola Nacional e ainda se acrescentam mais umas limitações. Os trâmites do processo também não sofreram alteração.
Um dos mais ouvidos, repetido à exaustão, é o de que os solos rústicos que são privados, podendo ser reclassificados mais facilmente em urbanos, vão ser alvo de especulação. Não, não e não. Por favor, parem de chamar “especulação” àquilo que é apenas uma valorização perfeitamente explicável por razões atendíveis. Especulação não é isso. Citando Robert Pindyck e Daniel Rubinfeld (também poderia ser Mariana Mortágua a propósito do caso Robles, mas prefiro estes dois economistas), a especulação é frequentemente irracional: as pessoas observam uma subida do preço de um bem e, de alguma forma, concluem que o preço continuará a subir, sendo que esse “de alguma forma” não tem uma base racional, não tem nenhum fundamento económico. Não é claramente o caso aqui, porque obviamente o facto de poder construir habitação num terreno justifica a subida de preço.
Peço desculpa por esta digressão jurídica amadora, mas estou convencida de que esclarecer estes equívocos era ponto prévio à análise dos argumentos que têm sido apresentados. Passemos, então, a eles.
Um dos mais ouvidos, repetido à exaustão, é o de que os solos rústicos que são privados, podendo ser reclassificados mais facilmente em urbanos, vão ser alvo de especulação. Não, não e não. Por favor, parem de chamar “especulação” àquilo que é apenas uma valorização perfeitamente explicável por razões atendíveis. Especulação não é isso. Citando Robert Pindyck e Daniel Rubinfeld (também poderia ser Mariana Mortágua a propósito do caso Robles, mas prefiro estes dois economistas), a especulação é frequentemente irracional: as pessoas observam uma subida do preço de um bem e, de alguma forma, concluem que o preço continuará a subir, sendo que esse “de alguma forma” não tem uma base racional, não tem nenhum fundamento económico. Não é claramente o caso aqui, porque obviamente o facto de poder construir habitação num terreno justifica a subida de preço.
Mesmo que alguém se queira agarrar à definição jurídica, não vai encontrar especulação. Segundo o artigo 35.º do regime das infracções antieconómicas e contra a saúde pública, especulação consiste em «alterar, sob qualquer pretexto ou por qualquer meio e com intenção de obter lucro ilegítimo, os preços que do regular exercício da actividade resultariam para os bens ou serviços» (as demais acepções definidas nesse artigo ou são fruto de um decreto aprovado em 1984, ainda no espírito do tabelamento de preços, ou apontam para embustes, não para realmente especulação). Ora, os preços dos terrenos que se tornam urbanos alteram-se para cima como resultado do regular funcionamento do mercado e não há nenhuma ilegitimidade nessa valorização.
Um outro argumento é o de que, ficando estes terrenos mais caros, o preço das casas vai é subir, não descer. Este é um raciocínio particularmente estulto. É que o preço dos solos rústicos convertidos em urbanos sobe porque passa a ser permitido construir mais neles. Ou dito ao contrário: em termos de habitação, de nada adianta ter terrenos baratíssimos que custam pouco precisamente porque não são urbanizáveis. Acresce que o preço que sobe é o dos solos anteriormente rústicos; os que já eram urbanos tenderão a descer, porque encontrarão agora mais concorrentes.
Por isso, faz sentido a afirmação do Governo de que “a simplificação destes procedimentos contribui para o aumento dos solos disponíveis, permitindo igualmente que os custos da criação de habitação sejam menores e os tempos de concretização de projetos imobiliários sejam mais reduzidos.” Ah, esperem, isto era no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 10/2024, o de Janeiro! Mas o de Dezembro diz algo parecido: “A maior disponibilidade de terrenos facilitará a criação de soluções habitacionais que atendam aos critérios de custos controlados e venda a preços acessíveis”. É a mesma linha de pensamento e, pasme-se, está correta!
Mas, se teoricamente o raciocínio está certo, na prática, faltam-me dados para antever a eficácia desta medida. Desde logo, não sei quantos metros quadrados são passíveis de beneficiar do procedimento simplificado, porque, lembremo-nos, face à versão anterior do diploma, apenas foram acrescentados os solos rústicos privados que cumpram todos os requisitos que os públicos já tinham de cumprir. Depois, mesmo que esta alteração se traduza numa significativa descida do preço dos terrenos urbanos, o seu impacto no preço da habitação dependerá de quão relevante é o custo do solo na estrutura de custos de construir uma casa e não tenho essa informação.
O que o site do INE nos mostra é que, entre a primeira década deste século e agora, o índice de emprego na construção caiu mais de 40%. Por isso não se estranha que o custo da mão-de-obra no sector tenha duplicado nos últimos vinte anos, sendo que o dos materiais também aumentou significativamente. Observamos, igualmente, que o número de empresas de construção caiu quase 20%, entre 2004 e 2023. Ao mesmo tempo, pessoas ligadas ao sector mencionam a questão dos licenciamentos, bem como o rol de exigências em termos de qualidade de construção. Diante deste retrato, questiono-me se, em vez de escassez de solos, não existirá um problema de capacidade instalada e gostava de perceber como chegou o Governo à estimativa de que esta medida fará o preço da habitação descer 20%.
Sobre esta questão do preço, também tem havido críticas negativas à troca da menção a “custos controlados” pela de “habitação de valor moderado”, que o decreto define como casas cujo preço por m2 está abaixo da mediana nacional ou, então, está acima não mais que 2,25 vezes e sem exceder 1,25 a mediana do respectivo concelho.
Façamos aquilo que eu gosto muito de fazer, olhemos para os dados. Sem surpresa, mais de 80% dos concelhos portugueses têm valores medianos abaixo da mediana nacional. Há quem defenda que, nestes municípios, os preços da habitação vão aumentar, porque vão tomar como padrão a mediana do país. Bom, isso era uma coisa que se podia fazer já hoje. Se em Melgaço o metro quadrado se vende por 422 euros em vez dos 1661 nacionais, é porque a procura e a oferta de casas em Melgaço assim o ditaram. O facto de agora haver um tecto não fará o preço subir. Ou será que o salário mínimo puxa os salários para baixo, porque os patrões o tomam por referência e pagariam melhor sem ele?…
Façamos aquilo que eu gosto muito de fazer, olhemos para os dados. Sem surpresa, mais de 80% dos concelhos portugueses têm valores medianos abaixo da mediana nacional. Há quem defenda que, nestes municípios, os preços da habitação vão aumentar, porque vão tomar como padrão a mediana do país. Bom, isso era uma coisa que se podia fazer já hoje. Se em Melgaço o metro quadrado se vende por 422 euros em vez dos 1661 nacionais, é porque a procura e a oferta de casas em Melgaço assim o ditaram. O facto de agora haver um tecto não fará o preço subir. Ou será que o salário mínimo puxa os salários para baixo, porque os patrões o tomam por referência e pagariam melhor sem ele?…
Na verdade, se o Decreto-Lei n.º 117/2024 levar a um aumento da oferta de casas em Melgaço, o que se espera é uma descida do preço da habitação em Melgaço. Ainda assim, há, entre aqueles 256 concelhos, catorze (por exemplo, Braga, Caldas da Rainha ou Ponta Delgada) onde o limite da mediana nacional fica abaixo do valor mediano do concelho em termos de construção nova, que é o que interessa para o caso.
Também sem surpresa, os 52 concelhos onde se aplicará o mínimo entre 225% da mediana nacional e 125% da mediana concelhia incluem todos os municípios da Área Metropolitana de Lisboa (com excepção da Moita), todos os do Algarve (menos Monchique e Alcoutim) e sete na Área Metropolitana do Porto. Em 33 deles, é verdade que aquele limite se situa no último quartil da distribuição, mas há seis em que fica abaixo do preço mediano das casas novas. De qualquer forma, repito o que disse para Melgaço: se mais solos aptos para construção se traduzirem num aumento da oferta de habitação, o preço desta deverá descer.
Quer dizer, então, que a alteração que se fez ao RJIGT será, no limite, ineficaz, mas mal não faz? Não é bem assim. Em 2013, na Assembleia da República, Jorge Moreira da Silva, o ministro responsável pela Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e de Urbanismo, apresentou a sua nova lei dos solos notando que bastava “olhar para as cidades e para as suas periferias para perceber que a incapacidade de conter a dispersão da construção fora das áreas urbanas conduziu a um abandono progressivo dos centros das cidades e das vilas e originou cidades extensas, com movimentos pendulares constantes, com os inerentes e elevados custos, nomeadamente energéticos”.
A alteração ao RJIGT feita em Janeiro de 2024 e reforçada agora em Dezembro promove a suburbanização e a construção nova, em vez de apostar na contenção dos perímetros das cidades e na reabilitação urbana, num caminho diferente do da versão original do regime. Bem sei que este foi aprovado em 2015, quando o “problema da habitação” era mais o da descida do preço das casas e estas eram o colateral de empréstimos que estavam em incumprimento. Hoje, muitas vozes exigem a descida do preço dos imóveis e, para isso, aquelas duas alterações funcionam.
Mas aquelas duas alterações legislativas também podem ‒- além dos custos ambientais com acrescidos movimentos pendulares e maior impermeabilização, por exemplo ‒- comprometer a qualidade do habitat e evidenciar a ausência de uma rede adequada de transportes, que, a par da acessibilidade económica, também compõem o direito à habitação. Ou seja, o próprio direito à habitação exige a harmonização de dimensões suas nem sempre inteiramente compatíveis. Mas é aí que entra a política: para fazer escolhas.
Nota: A autora escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.
Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.
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