À Direita do Almirante

A vinculação simbólica ao Presidente é porque os portugueses identificam na figura qualquer coisa próxima a uma ideia de identidade nacional.

O Almirante no seu silêncio vai conquistando Portugal. Com a logística das vacinas, com os testes psicotécnicos da Marinha, com a atmosfera claustrofóbica dos submarinos, o candidato inspira os portugueses porque não diz nada que se pareça vagamente político.

O Almirante não inventa nada, pois limita-se a seguir o ar do tempo enquanto adopta o perfil estafado do político anti-político. Flagrante é a ironia da personagem que não passa de uma criação política para ultrapassar a incompetência dos políticos. Logo a competência do Almirante resulta da incompetência dos políticos, a figura tutelar de um militar que promete a ordem onde reina o caos. O que aflige as mentes é a ausência de obstáculos ao “poder inorgânico” com que o candidato convence a liberdade dos portugueses.

O Almirante projecta sobre o país um poder carismático que o poder democrático não sabe como enfrentar. O mesmo poder democrático que tantas vezes depende desse factor carismático para decidir eleitoralmente sobre os lugares do poder e da oposição. O Almirante é uma fissura no “corporativismo democrático”, mas é uma incursão da “sociedade civil” sem limite ou controlo. Há em Portugal o reflexo insensato da separação entre a política e a sociedade, como se a política fosse o espectáculo passivo para os adultos da sociedade. O que se verifica no fenómeno do Almirante é a expansão sem controlo do poder carismático ao mesmo tempo que se observa a contracção do poder democrático. Em Portugal o carisma conta sempre mais do que os programas políticos. O que é absurdo é que parte do “país político” acuse o Almirante dos “vícios do carisma”, das “virtudes da sociedade” e das velhas “doenças da democracia portuguesa”.

A candidatura do Almirante é um acto surrealista. E surrealista porque representa a “interpretação do maravilhoso” que absorve e subverte a vida política quotidiana. E o maravilhoso político é simplesmente a explosão silenciosa da “contradição no interior do real”. A tarefa do candidato surrealista é revelar todas estas contradições, o que implica a intensidade de uma visão política impulsionada pela energia política de um outsider. No silêncio do discurso do Almirante pressente-se um dicionário de banalidades que descobrem sempre o maravilhoso político na complexidade perversa, corrupta, imoral, da normalidade passivamente aceite como a ética da República. Para o Almirante o Regime é talvez o espectáculo clientelar de uma rede de interesses. O Almirante apresenta-se aos portugueses como o único e o último obstáculo a todos aqueles que extraem os recursos do Estado ou que querem vender Portugal.

Não admira que os portugueses, cansados com a degradação política da República, identifiquem no Almirante a luz de uma referência moral. O Almirante parece ocupar aquele espaço politicamente oblíquo que se situa entre o centro-esquerda e o centro-direita. Mas a sua não vinculação ao espaço político-partidário dá-lhe uma latitude inesperada sobretudo à direita. A esquerda odeia militares. A direita adora militares. Observe-se a discussão fratricida à esquerda e sobretudo no PS. A natureza crepuscular de um PS sem liderança e dividido em facções e grupúsculos que não representam nada a não ser os interesses clientelares e os ódios de estimação. Aliás o espectáculo que o PS proporciona ao país é de uma incompetência revoltante. Mas sobretudo é a exibição de um modo de fazer política onde não existe uma ideia para Portugal, apenas e tão-somente o desejo de ganhar as eleições para a Presidência da República. O PS como pai da democracia julga-se dono da República e a exclusão de Belém é uma suprema humilhação. A terceira fila de candidatos socialistas, sendo todos estimáveis, acabou a suas carreiras políticas em desgraça. O PS apresenta políticos retirados com se fossem reservas da República.

Mas a direita não se apresenta melhor nem inunda o país com uma onda de entusiasmo. O candidato oficial do PSD é uma figura do comentário que também falhou politicamente. Será destino da Presidência da República ter candidatos que representam o fracasso político? Quanto ao Chega é o candidato da Junta que está no circuito para garantir a fidelidade dos clientes da mercearia. Quanto aos Liberais é porque é urgente uma candidata mulher sem passado ou currículo e quem sabe se com ou sem futuro.

A democracia portuguesa não consegue gerar os “candidatos naturais” à Presidência. E quando gera os “candidatos naturais” à Presidência estes não querem ser Presidentes da República. Este é o maior sintoma da doença da República que deveria suscitar uma profunda reflexão sobre o cargo e sobre a eleição.

A vinculação simbólica ao Presidente da República é porque os portugueses identificam na figura qualquer coisa próxima a uma ideia de identidade nacional. No imaginário colectivo, os portugueses elegem sempre um Presidente-Rei.

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