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O trabalho na sociedade do futuro
Pensar como será a sociedade inteligente requer novos pressupostos de raciocínio para uma melhor compreensão de um novo paradigma.
Pensar como será a sociedade inteligente requer novos pressupostos de raciocínio para uma melhor compreensão de um novo paradigma. Isto implica considerar a possibilidade dessa sociedade poder dispensar o trabalho e/ou funcionar sem a intervenção ou supervisão humana.
Assisti ao É ou não é sobre o futuro do trabalho. Na sociedade do futuro não haverá trabalho para todos e dificilmente será possível requalificar todas as pessoas. E mesmo a requalificação será temporária. Não há profissão que não vá ser afectada pela Inteligência Artificial (IA) e o pior pesadelo de Karl Marx, a dispensa total do homem do trabalho e da produção, pode vir a ser uma realidade.
Em 2024, publiquei o livro – Intelciety: Sociedade Inteligente. Estamos preparados para o desafio? – no qual procurei contribuir para a reflexão do impacto da IA na sociedade.
Tudo aquilo que damos por garantido irá mudar. A sociedade inteligente, que denominei como Intelciety, será algo entre a concretização do que a ficção científica foi capaz de imaginar e muito mais para além disso; uma sociedade integralmente autónoma, automatizada e autossuficiente capaz de se gerir por si só, completamente regulada pela inteligência, (humana e/ou artificial, ou ambas) mas capaz de dispensar o trabalho e até a supervisão humana.
Apesar de estarmos a trilhar o caminho, ainda estamos muito longe de concretizar a Intelciety. Presentemente, vivemos um período de transição entre a sociedade que tínhamos como garantida e a que está a emergir. Obviamente, este período de transição – pré-Intelciety – não se desenrola linearmente. Decorrerá com rupturas e saltos, ocorrerá a diferentes velocidades e em diferenciados momentos em todo o planeta.
Como navegar esta disrupção contínua em que vivemos? Esta é a questão. O problema é que aquilo que pensávamos que só ocorreria daqui a décadas está a acontecer agora e a uma velocidade estonteante.
É importante referir que o impacto da IA no mercado de trabalho será diversificado. A IA substituirá directamente pessoas, mas, muito provavelmente, não realizará as tarefas como um ser humano o faria; aumentará a produtividade em virtude da redução do número de pessoas necessárias para a realização de tarefas e alterará as estratégias empresariais provocando uma reestruturação que poderá encerrar e criar departamentos novos.
Como esta reflexão é sobre mudança, é importante mencionar isto logo no início. Não há nenhuma evolução civilizacional e social que não tenha originado mudança e ruptura. O controlo do fogo, a passagem da caça e da recolecção para a agricultura e para a domesticação dos animais, e assim sucessivamente, da idade da pedra para idade dos metais, da idade antiga para a idade média, idade moderna, idade contemporânea. Até a passagem da pré-história para a história teve consequências técnicas e sociais (económicas e políticas). Todas evoluções provocaram rupturas e reestruturações sociais, incluindo o definhamento de actividades humanas e o aparecimento de novas profissões.
Desde a Revolução Industrial que a cadência do aparecimento e desaparecimento de novas profissões e especializações humanas é uma realidade mais perceptível. Mais recentemente, os produtos da quarta revolução industrial vieram acelerar ainda mais essas mutações. Por outras palavras, novas profissões não são apenas sinais destes tempos. Sempre o foram. E à medida que a inovação e o desenvolvimento originaram novas profissões e actividades, as profissões que se tornaram obsoletas, esmoreceram até ao desaparecimento.
A substituição da mão-de-obra humana não é novidade desde os anos 60 do século passado [mais cedo ainda se considerarmos a linha de montagem móvel desenvolvida para o Ford Modelo T (7 de outubro de 1913)]. Ora, se isto já acontece há décadas por que razão esta nova geração de máquinas é um problema? Porque são máquinas capazes de dispensar a mão-de-obra humana especializada e forçar a passagem da produção colaborativa centralizada para a descentralizada. Não estamos perante uma mera mecanização ou automatização. É urgente perceber que esta nova geração de robots são autênticos sistemas físicos cibernéticos que não serão confinados à indústria. Logo, a substituição do trabalho humano acontecerá a uma escala impensável até agora.
Na minha opinião, três factores são agora diferentes.
- Primeiro, o factor inteligência (artificial), que pode (ou que irá) dispensar a supervisão e até a necessidade de colaboração humana;
- Segundo, serão máquinas (robots) que vão substituir o trabalho humano, não apenas nas áreas blue colar (agricultura, construção civil, linhas de produção, montador e operador de máquinas, etc.), mas também deve ser salientado que os agentes de IA vão tornar muitas funções white collar obsoletas e mais rapidamente;
- Terceiro, a rapidez com que a mudança acontece. Algumas das profissões que apareceram nos últimos dez anos, estão agora entre aquelas com maior probabilidade de serem substituídas pela IA e pela robótica. É, por isso, necessário pensar diferente.
Preparar o futuro começa na educação. E o esforço deve ser focalizado no que é essencial: uma sólida compreensão da língua e da matemática aliadas à capacidade de gerar pensamento crítico, solução de problemas, aprendizagem activa, resiliência, tolerância ao stress e flexibilidade.
Pode não parecer, mas o maior desafio que temos actualmente é o ensino (transmissão de conhecimento). Há duas coisas que devem ser alteradas já. Primeiro, a maneira como ensinamos e, segundo, o que ensinamos. Continuamos a formar jovens para profissões que vão desaparecer ou transformar-se em nichos de especialidade, tendentes também ao desaparecimento. Independentemente do grau de ensino, e apesar de muitas das leis e postulados que constituem as bases de vários domínios científicos estarem a ser postas em causa como “dogmas”, a sua validade garante que a base científica do conhecimento continuará a ser utilizada. Felizmente, não são protestos, nem a ignorância que mudam a validade do conhecimento. O problema está relacionado com a actual metodologia de ensino que é insuficiente. E se os pressupostos da mesma se mantiverem, os nossos filhos não serão capazes de acompanhar, quanto mais competir com máquinas. Só isto indica que a sociedade (assim como as suas diferentes formas de estruturação) vai ser profundamente alterada. Segundo, não podemos continuar a focalizarmos principalmente na mensuração e avaliação do conhecimento. Parece-me imperioso dar aos alunos capacidades que lhes permitam adaptar-se às novas circunstâncias que as mudanças originam.
Tudo indica que um generalista tem mais probabilidade de manter o emprego por mais tempo do que um especialista. A diferença entre um generalista e um especialista, da qual resulta uma maior capacidade de adaptação, é fácil de explicar. Enquanto o primeiro sabe um pouco de tudo e esse pouco permitir-lhe-á fazer um “deep dive” quando necessário, o especialista, preso num padrão de conhecimento que, entretanto, se tornou obsoleto, terá de fazer um esforço maior para reentrar noutro domínio do que um generalista. Logo, este está mais bem preparado para trabalhar num ambiente de disrupção contínua.
Tudo indica que um generalista tem mais probabilidade de manter o emprego por mais tempo do que um especialista. A diferença entre um generalista e um especialista, da qual resulta uma maior capacidade de adaptação, é fácil de explicar. Enquanto o primeiro sabe um pouco de tudo e esse pouco permitir-lhe-á fazer um “deep dive” quando necessário, o especialista, preso num padrão de conhecimento que, entretanto, se tornou obsoleto, terá de fazer um esforço maior para reentrar noutro domínio do que um generalista. Logo, este está mais bem preparado para trabalhar num ambiente de disrupção contínua.
A aposta na igualdade de resultados, em detrimento da igualdade de oportunidades, só promoveu a diminuição do potencial humano e a impreparação dos jovens para a vida. Não é possível continuar a apostar no decréscimo da exigência, com receio de ferir a susceptibilidade e a auto-estima dos jovens, deixando-os progredir sem o conhecimento adequado até à universidade (uma realidade comum a vários países). Para ultrapassar os problemas é essencial reconhecer a sua existência. Só assim será possível definitivamente transformar fragilidades em forças.
Claro que tal reforma, que implica ruptura e até disrupção, não deixará de poder ter impactos e alguns efeitos negativos. No entanto, os impactos e os efeitos serão consideráveis maiores e mais profundos se nada for feito. Não se pode preparar a vida para uma sociedade inteligente com pressupostos ultrapassados e defasados da realidade.
Consequentemente, o ensino devia ser reformulado já. Não é daqui a uns anos. Essa reforma no ensino deve basear-se no que está na base da comunicação: o sistema alfa-numérico. Como tal, há três coisas que são essenciais para aprender: ler e escrever (português), contar (matemática) e pensar. Especialmente pensar criticamente (filosofia). Ler e escrever, fazer contas e pensar devem ser os vectores permanentes do ensino, desde o primeiro ano até ao fim da universidade. Naturalmente, as línguas estrangeiras, os estudos sociais (história, economia, geografia, cidadania), as ciências exactas (física, química, biologia) e a educação física devem integrar o curriculum de ensino. Tal como a informática. E, neste âmbito, particularmente, a ciência de dados (Data Science) também deve ser aposta.
Porquê a referência à ciência de dados? Para além da procura por cientistas de dados ter aumentado, o facto de ser uma área multidisciplinar e de ser uma interface entre a estatística e a ciência da computação faz dela uma área com mais longevidade de emprego. Ao agregar método científico, processos, algoritmos e sistemas a partir duma miríade de dados, independentemente da sua forma ou substância – ruidosos, luminosos, nebulosos, estruturados ou não-estruturados – a ciência de dados estuda e analisa dados científicos, sociais, económicos, financeiros, políticos, geográficos, históricos, mercadológicos, demográficos, biológicos, psicológicos, etc., que possibilitam conhecimento mais rápido e sustentado (padrões e insights) para a tomada de decisões. Apesar de ser um campo com mais de 30 anos, recentemente, devido ao surgimento dos grandes bancos de dados e ao machine learning, a ciência de dados adquiriu um fulgor suplementar. Na minha opinião, é uma área com futuro. Adicionalmente, como é o cientista de dados quem lida com o desenvolvimento, manutenção e fiscalização da IA, esta característica viabiliza mais longevidade laboral. Saber ler, escrever, contar, pensar e ter familiaridade com a informática são as bases imprescindíveis para qualquer área, da linguística à medicina, passando pela engenharia, arquitectura, etc.
Assim, é essencial alterar os pressupostos de raciocínio e de análise. A sociedade que se aproxima dificilmente se regerá segundo os pressupostos actuais. A velocidade e a amplitude da disrupção tecnológica fazem do inesperado a norma e dos desafios constantes um hábito. Não há país no mundo, não há economia no mundo que não vá ser afectada ou que possa manter-se ao lado desta (r)evolução.
A metodologia do ensino deve alterar-se. A aplicação do modelo implementado pelo Pedro Santa Clara, na Escola 42 e na Tumo, – que incentiva a cooperação e colaboração entre alunos, simultaneamente responsabilizando-os e dando-lhes a possibilidade de progredir consoante o seu esforço e vontade – devia ser seriamente considerado.
A metodologia do ensino deve alterar-se. A aplicação do modelo implementado pelo Pedro Santa Clara, na Escola 42 e na Tumo, – que incentiva a cooperação e colaboração entre alunos, simultaneamente responsabilizando-os e dando-lhes a possibilidade de progredir consoante o seu esforço e vontade – devia ser seriamente considerado.
Aproveitando o exemplo deste modelo, penso que também se deviam adaptar os sistemas das grandes escolas filosóficas da Grécia antiga, onde os estudantes se reuniam para debater ideias. Ao encarar o conhecimento como concomitantemente transversal e específico, será possível repensar em intersecções que promovam aprendizagem interdisciplinar, que estimulem o pensamento critico e a resolução de problemas. Admito estar enganado, mas parece-me que será um bom passo para a preparação dos jovens para o mundo real. E não só. Também fomentará a imaginação e a inovação. Outra sugestão pode ser a adaptação do modelo de ensino japonês que pode ser descrito por estes 5 vectores: (1) ensino do comportamento adequado e do respeito por todas as pessoas, independentemente de sua situação financeira; (2) promoção da independência e da capacidade para trabalhar em equipa – os estudantes assumem a responsabilidade pela limpeza das escolas desde o primeiro nível de ensino; (3) ensino da valorização e conservação do meio ambiente; (4) foco no valor do conhecimento e não das classificações; e (5) enfatização pelo respeito, educação e pontualidade.
Relativamente à utilização da IA no ensino, estas quatro ideias – 1) Aprendizagem personalizada; 2️) Tutoria Inteligente; 3) Tarefas administrativas aprimoradas; 4) Informações baseadas em dados – apresentadas por Charlotte Joy Trudgill, também são de considerar. Todavia, a principal mudança consiste na alteração de como encaramos as crianças e os alunos e, sobretudo, na capacidade de incentivar o pensamento critico.
Nunca é demais dizê-lo. O pensamento crítico é o factor que ajudará à relevância do homem no futuro.
Uma coisa é certa. Não é possível continuar a formar jovens para profissões que vão desaparecer ou transformar-se em nichos de especialidade, tendentes também ao desaparecimento.
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