Startup que ofereceu solução de IA ao INEM denuncia sistema obsoleto: “É impossível conseguir alguma coisa”
Atendedor automático com IA oferecido pela Sword Health foi posto na gaveta. Startup denuncia sistema do INEM "obsoleto", enquanto a comissão de trabalhadores diz que a proposta era "impossível".
A startup portuguesa que ofereceu ao INEM um sistema de atendimento automático de chamadas com recurso a inteligência artificial (IA) admitiu estar a enfrentar sérias dificuldades na sua implementação. Segundo o fundador da Sword Health, Virgílio Bento, “não é possível integrar” a solução no sistema de informação do instituto de emergência médica porque este, além de “frágil”, está “obsoleto”. Entretanto, a Comissão de Trabalhadores do INEM acusou a empresa portuguesa de ser “alarmista” e de ter “ideologias utópicas”, considerando que era “garantidamente impossível” que a solução proposta fosse funcionar.
O Expresso avançou esta sexta-feira que a ideia da startup para o INEM terá sido posta na gaveta e, ao semanário, o empreendedor português mostrou-se “perplexo” com o que os técnicos da startup encontraram no INEM: “Precisamos de muita coisa, é uma lista muito longa. Não é possível integrar a nossa solução no sistema de informação do INEM para as chamadas serem roteadas para o operador humano ou para a IA. O que encontrámos é assustador”, afirmou.
A história começa em novembro, quando se soube da intenção da Sword Health de oferecer esta solução ao Governo. No mês seguinte, em dezembro, a ministra da Saúde, Ana Paula Martins, confirmou na Assembleia da República que a IA iria passar a ajudar o INEM no atendimento de chamadas “dentro de poucas semanas”, disse a governante, aceitando desta forma o contributo da empresa privada. O anúncio não escapou desde logo a críticas e alertas sobre a proteção de dados sensíveis e outros riscos.
Todavia, no terreno, a Sword Health admite agora ter encontrado muitas dificuldades em implementar esta solução junto do INEM: “É impossível conseguir alguma coisa com a camada intermédia de técnicos que estão na mesma posição há 10/20 anos sem conhecimentos básicos. Adicionalmente, há uma aversão à mudança patológica. Esses dois ingredientes combinados explicam o estado do sistema de informação que encontrámos”, defendeu Virgílio Bento esta sexta-feira, numa publicação no LinkedIn.
O CEO foi ainda mais além: “As verdadeiras vítimas disto tudo são os técnicos de emergência médica que trabalham com sentido de missão e têm um sistema que em vez de lhes tornar a vida mais fácil, torna o trabalho deles ainda mais difícil”, acrescentou, adiantando que, mesmo perante estes desafios do sistema, os técnicos do INEM “tiveram todo o interesse e disponibilidade” em ajudar.
O fundador desta startup, que já conquistou o estatuto de ‘unicórnio’, por ter sido avaliada em mais de mil milhões de euros, deixou também em suspenso se alguma vez este sistema chegará ao terreno: “Gostaríamos que fosse uma realidade no INEM, mas a integração não depende de nós. Se acontecer, vai melhorar o sistema de emergência. Se não, ao menos peçam uma auditoria ao sistema de informação e garantam que é robusto e não falha. Só isso já evita um desastre no futuro”, apelou.
Um dos aspetos salientados por Virgílio Bento no LinkedIn foi o facto de a empresa não ter conseguido aceder às chamadas gravadas do INEM. “Nunca tivemos acesso às mesmas o que tornou significativamente mais difícil o desenvolvimento do sistema”, escreveu, algo que diz ser necessário “para perceber a robustez real do sistema” de IA, que “segue uma árvore de decisão clínica especificada” pela própria startup.
O ECO tentou contactar Virgílio Bento, mas não foi possível até à publicação desta notícia. A Sword Health oferece soluções tecnológicas com base em IA aplicadas à prestação de cuidados de saúde, estando também presente no mercado norte-americano.
Proposta da Sword era “impossível”, dizem trabalhadores do INEM
Apesar do elogio de Virgílio Bento aos técnicos do instituto, as declarações caíram mal junto do organismo que os representa. A Comissão de Trabalhadores do INEM publicou um comunicado esta sexta-feira à tarde no qual recusa que os trabalhadores do instituto sejam “incapazes”. “Não se devem confundir os profissionais do INEM com a incapacidade de empresas externas ao INEM em implementar soluções que na nossa opinião são impossíveis”, anunciou.
“O INEM não precisa de um sistema de substituição incapaz de lidar com as subtilezas do discurso e análise humana, mas sim de uma atualização de recursos informáticos que permita aos profissionais utilizar as ferramentas tecnológicas em benefício da rapidez e eficiência da tarefa e consequentemente do cidadão”, acrescentou. Defendendo que “nenhum sistema informático poderá substituir um profissional de saúde”, a comissão pede, em alternativa, mais “contratação de recursos humanos” para diminuir os tempos de resposta às chamadas.
“Lamentamos profundamente a posição desta empresa, não só pela incapacidade que demonstrou em implementar um sistema que, nos moldes em que foi proposto, era garantidamente impossível, mas também do arrastar de culpas para o INEM e mais gravoso ainda para os seus profissionais”, apontou a comissão de trabalhadores.
Sword Health demonstra solução proposta ao INEM
Também esta sexta-feira, antes da resposta da Comissão de Trabalhadores, o líder da Sword Health publicou na mesma rede social um vídeo que demonstra o funcionamento da solução que pretendia aplicar no INEM.
O conteúdo simula uma chamada telefónica para o 112 após a ocorrência de um acidente, em que o operador, um programa de IA, vai guiando a chamada em linguagem natural, despacha uma ambulância após pedir a localização e afere o estado da vítima.
A empresa assegura que a demonstração é verdadeira. Mas Virgílio Bento prometeu fazer uma demonstração em direto no Instagram, para afastar quaisquer dúvidas.
Ora, a controvérsia em torno da implementação de um sistema de IA por uma empresa privada num organismo público de saúde já vinha de trás. Pouco depois de ter sido conhecida a intenção da Sword Health e do Ministério da Saúde no final do ano passado, alguns especialistas alertaram para eventuais riscos num artigo publicado no jornal Público, incluindo, mas não só, questões relacionadas com a proteção de dados pessoais e com um eventual direito dos utentes a saberem que estão a conversar com uma máquina, e não com um humano.
Esses alertas foram mal recebidos pelo fundador da Sword: “Quando se tenta fazer algo inovador e com verdadeiro impacto nas pessoas, pode-se sempre contar com os típicos Velhos do Restelo, autodenominados ‘especialistas’, a inventar problemas que não existem e que não têm relevância alguma”, reagiu Virgílio Bento, em dezembro, noutra publicação no LinkedIn.
Por sua vez, Nuno Sebastião, fundador da Feedzai, outra empresa portuguesa que aplica IA ao setor financeiro (e que também é acionista da Sword Health), escreveu na mesma plataforma ter participado numa reunião com “membros muito seniores do Governo” sobre o uso de IA e de IA generativa na “máquina administrativa como um todo. Mas saiu do encontro “profundamente desapontado” com os “especialistas” que defendiam “que fosse o Estado a correr o risco”, a “pagar a conta” e a “criar mais uma agência”, desabafou.
Com as declarações de Virgílio Bento a serem mal recebidas pela Comissão de Trabalhadores do INEM, a controvérsia volta a instalar-se. O caso é paradigmático e expõe as tensões que podem existir entre um setor privado tendencialmente mais veloz e um setor público bastante mais lento e cauteloso, como o ECO antecipou em janeiro.
(Notícia atualizada às 16h48 com reação da comissão de trabalhadores do INEM em comunicado)
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