Comissão Europeia precisa de uma “Bússola para a competitividade”, mas sem interferências

A capacidade da UE se adaptar e inovar determinará o seu sucesso num mundo cada vez mais competitivo e em rápida mudança.

Neste artigo faço uma análise crítica da “Bússola para a Competitividade”, uma iniciativa da Comissão Europeia apresentada no final de janeiro, que visa fornecer um quadro estratégico claro para alcançar o o objetivo de recuperar a competitividade e garantir a prosperidade sustentável da União Europeia (UE). Tenho dúvidas fundadas de que a UE se consiga finalmente ‘orientar’ em matéria de competitividade.

Domínios de ação prioritários

A iniciativa identifica três domínios de ação prioritários: inovação, descarbonização e segurança. Cada um destes domínios é fundamental para reforçar a posição da UE no cenário económico global.

1. Inovação

A Comissão Europeia (CE) propõe criar um ambiente favorável às startups inovadoras, promover a liderança industrial em setores de elevado crescimento baseados em tecnologias avançadas, e fomentar a difusão tecnológica nas grandes empresas e PME. As principais iniciativas incluem:

  • Gigafábricas de Inteligência Artificial (IA) e Estratégia de Aplicação da IA: estas ações visam impulsionar o desenvolvimento e a adoção industrial da inteligência artificial em setores-chave.
  • Planos de ação para materiais avançados, tecnologia quântica, biotecnologia, robótica e tecnologias espaciais: o objetivo é fortalecer a posição da UE nestas áreas estratégicas.
  • Estratégia específica para empresas em fase de arranque e expansão: destina-se a eliminar obstáculos à criação e expansão de novas empresas.
  • Proposta de 28.º regime jurídico: visa simplificar regras aplicáveis, incluindo aspetos do direito das sociedades, insolvência, trabalho e fiscalidade, reduzindo custos de incumprimento e permitindo às empresas inovadoras operar sob um conjunto único de regras no mercado único.

2. Descarbonização

A “Bússola” reconhece que os preços elevados e voláteis da energia são desafios essenciais e propõe áreas de intervenção para facilitar o acesso a energia limpa a preços acessíveis. As principais medidas incluem:

  • Pacto da Indústria Limpa: estabelece uma abordagem de descarbonização baseada na competitividade, visando garantir a atratividade da UE para a indústria transformadora, incluindo indústrias intensivas em energia, e promover tecnologias limpas e modelos de negócio circulares.
  • Plano de ação para garantir preços de energia acessíveis: destinado a reduzir os preços e custos da energia.
    Ato legislativo para acelerar a descarbonização industrial: alarga o licenciamento acelerado aos setores em transição.
  • Planos de ação específicos para setores com utilização intensiva de energia: Inclui aço, metais e produtos químicos, visando apoiar a transição energética desses setores.

3. Segurança

Para diversificar e reduzir dependências, a “Bússola” propõe:

  • Novas parcerias de comércio limpo e investimento: ajudarão a assegurar o abastecimento de matérias-primas, energia limpa, combustíveis sustentáveis para os transportes e tecnologias limpas a partir de todo o mundo.
  • Revisão das regras da contratação pública no Mercado interno: introduzirá uma preferência europeia nos contratos públicos relativos a setores e tecnologias críticos.

Medidas transversais

Além dos três domínios prioritários, a “Bússola” inclui cinco medidas horizontais essenciais para criar um ambiente propício ao crescimento económico sustentável, à inovação e à competitividade da UE:

  • Simplificação: Visa reduzir drasticamente os encargos regulamentares e administrativos, incluindo a futura proposta “Omnibus” para simplificar a comunicação de informações sobre sustentabilidade, dever de diligência e taxonomia, bem como facilitar os negócios a milhares de pequenas empresas de capitalização média, visando uma redução mínima dos encargos administrativos de 25% para as grandes empresas e de 35% para as PME.
  • Redução dos obstáculos ao Mercado Único: modernização do quadro de governação, eliminando obstáculos intra-UE e impedindo o surgimento de novos obstáculos, além de uma maior celeridade e acessibilidade (sobretudo para as PME) na elaboração de normas.
  • Financiamento da competitividade: a CE apresentará a UE da Poupança e dos Investimentos, para criar novos produtos de poupança e investimento, proporcionar incentivos ao capital de risco e assegurar um fluxo contínuo de investimentos em toda a UE. A reorientação do orçamento da UE racionalizará o acesso aos fundos, em consonância com as prioridades.
  • Promoção das competências e empregos de qualidade: de modo a permitir que as pessoas trabalhem em toda a UE, esta prevista a construção de uma União das Competências, centrada no investimento, educação de adultos e aprendizagem ao longo da vida, criação de competências de futuro, retenção de competências, mobilidade justa, atração e integração de talento qualificado estrangeiro, e reconhecimento de diferentes tipos de formação.
  • Melhor coordenação das políticas aos níveis nacional e da UE: a CE introduzirá um instrumento de coordenação da competitividade, que ajudará os Estados-Membros a assegurar a execução dos objetivos políticos comuns da UE, identificar projetos transfronteiriços de interesse europeu e realizar as reformas e investimentos conexos. No próximo Quadro Financeiro Plurianual, um novo fundo para a competitividade substituirá vários instrumentos financeiros existentes da UE com objetivos semelhantes, e apoiará financeiramente as ações executadas ao abrigo do Instrumento de Coordenação da Competitividade.

Análise crítica

Nesta segunda parte, aponto algumas ‘interferências’ possíveis ao funcionamento da nova ‘Bússola’.

  • Ausência de um cronograma detalhado

Embora a “Bússola para a Competitividade” estabeleça objetivos ambiciosos, uma das principais críticas é a falta de um cronograma detalhado para a implementação das propostas. A Presidente da CE, Ursula von der Leyen, referiu que este documento pretende ser um roteiro para a execução do Plano Draghi, enquanto Stéphane Séjourné, Vice-Presidente Executivo para a Estratégia Industrial e de Prosperidade, destacou que servirá como uma doutrina económica europeia para os próximos cinco anos. No entanto, sem prazos claros das ações, torna-se difícil avaliar o progresso e a eficácia das medidas. Esta lacuna é particularmente preocupante, dado que os desafios de competitividade afetam já seriamente a economia da UE, com realce para as economias mais exportadoras, desde logo a Alemanha, a maior economia europeia, mas também economias mais pequenas, como a Portuguesa, cuja exiguidade do mercado interno exige uma estratégia de crescimento e desenvolvimento muito assente nas exportações.

  • A persistência da burocracia e da regulação excessiva

A promessa de simplificar o acesso a fundos europeus e a legislação é bem-vinda. Contudo, é importante reconhecer que a complexidade burocrática e a regulação excessiva têm sido obstáculos persistentes na UE que será difícil de contrariar a curto prazo, até porque o próprio funcionamento da UE é muito burocrático e não há medidas para que melhore. As empresas, especialmente as de menor dimensão, enfrentam dificuldades diárias crescentes ao logo dos anos para ‘navegar’ no intrincado sistema regulatório europeu, o que acarreta custos e limita a sua capacidade de inovar e de crescer. A eficácia das novas medidas propostas dependerá da sua implementação prática e da capacidade da CE em superar resistências institucionais e nacionais que historicamente têm dificultado reformas significativas neste domínio, incluindo a agilização do processo decisório. Penso ser bastante elucidativo que a simplificação legislativa se baseie numa “proposta de 28º regime jurídico” – resta a esperança de ‘seja desta’ que acertam em algo a este nível, mas tenho amplas razões para estar bastante cético, como se vê.

  • O impacto das políticas energéticas na competitividade

A transição para energias limpas é essencial para combater as alterações climáticas e prosseguir com os compromissos internacionais da UE, com realce para o Acordo de Paris, que não deve abandonar mesmo que os EUA o façam, não apenas por uma questão de princípio, mas porque os cidadãos estarão do lado da UE, por promover a qualidade ambiental e de vida no espaço europeu e liderar a transição climática. No entanto, esta transição tem tido implicações negativas significativas para a competitividade da indústria europeia porque não foram exploradas todas as opções de descarbonização. Com a guerra na Ucrânia, substituímos a dependência do gás natural barato russo pela dependência crescente de importações de gás natural liquefeito (GNL), especialmente norte-americano, a preços mais elevados. Isto coloca a UE em desvantagem na concorrência com os EUA e a China, que beneficiam de custos energéticos mais baixos. Uma alternativa ao GNL que merece consideração é a adoção de centrais nucleares de nova geração. Estas centrais são projetadas para serem mais seguras, produzir menos resíduos e fornecer uma fonte estável de energia de baixo custo e sem emissões de gases com efeito de estufa, complementando assim as fontes renováveis intermitentes. Esta primeira apresentação da “Bússola para a Competitividade” não aborda esta opção que me parece decisiva, possivelmente devido a sensibilidades políticas (até pela proximidade de eleições na Alemanha) e preocupações públicas sobre o nuclear.

Uma discussão aberta e baseada em evidência sobre o papel da energia nuclear na matriz energética europeia poderia contribuir para uma estratégia energética mais equilibrada e competitiva, reduzindo a dependência de combustíveis fósseis. Relembro que o Relatório Draghi para o futuro da competitividade da UE aponta para uma combinação de energias renováveis, energia nuclear, hidrogénio e captura de carbono. O hidrogénio (verde) deve ter o seu espaço, mas é uma tecnologia ainda pouco madura e cara, segundo os especialistas na matéria, pelo que a energia nuclear pode ser um complemento importante, pelo menos num horizonte próximo, sendo a urgência do debate e da decisão nessa matéria equivalente à do desafio da competitividade da UE, pois os investimentos em novas centrais requerem tempo.

  • A admissão implícita de desorientação estratégica

Penso que o nome “Bússola para a Competitividade” não podia ter sido melhor escolhido, pois parece uma admissão implícita que a UE tem estado ‘desorientada’ em matéria de competitividade da economia europeia. O relatório Draghi enfatiza a necessidade urgente de reformas estruturais para evitar que a Europa fique para trás em relação aos EUA e à China. O relatório destaca, nomeadamente, a importância de uma política industrial coordenada, decisões rápidas e investimentos significativos para competir com os EUA e a China. A dependência de uma nova iniciativa (“Bússola”) para orientar a política económica indica uma reflexão sobre falhas das estratégias anteriores e uma necessidade de reavaliação profunda das políticas existentes, o que é positivo, mas também faz ressaltar os riscos que impendem sobre essa iniciativa – as ‘interferências’ na “Bússola” –, alguns dos quais apontei acima.

Conclusão

A “Bússola para a Competitividade” representa um esforço positivo da CE para revitalizar a economia europeia e enfrentar os desafios globais atuais. No entanto, para que esta iniciativa seja bem-sucedida, é essencial que as propostas sejam acompanhadas de ações concretas e implementadas de forma eficaz e atempada.

Tal requer, desde logo, um cronograma detalhado com prazos claros para assegurar a responsabilização e o acompanhamento das ações propostas, garantindo que a Europa possa enfrentar os desafios económicos atuais de forma decisiva e oportuna, pois precisamos de medidas decisivas ‘para ontem’.

A desregulação e de desburocratização efetivas, uma estratégia energética equilibrada que considere todas as opções viáveis, incluindo a energia nuclear, e uma reflexão honesta sobre as falhas passadas são cruciais para garantir que a UE não permaneça ‘desorientada’ na sua busca por prosperidade sustentável.

A capacidade da UE se adaptar e inovar determinará o seu sucesso num mundo cada vez mais competitivo e em rápida mudança. Como já tenho vindo a afirmar, é ainda crucial uma agilização do processo de decisão numa UE a 27 e que se espera ver alargada nos próximos anos, caso contrário não passaremos de ‘planos bonitos’, como tem acontecido.

  • Diretor da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, Professor Catedrático e sócio fundador do OBEGEF

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