Especialistas alertam que decreto para mudar IRS pode ser inconstitucional. Governo rejeita
Executivo vai eliminar a obrigação de declarar rendimentos isentos, o que pode mexer no imposto a pagar, uma competência da reserva do Parlamento. Finanças garantem constitucionalidade da norma.
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O decreto-lei que o Governo vai aprovar em Conselho de Ministros para eliminar a obrigação de declarar no IRS rendimentos isentos como subsídio de refeição ou ajudas de custo arrisca ser inconstitucional, uma vez que pode afetar o cálculo do imposto a pagar por causa do mínimo de existência, uma competência que é da reserva exclusiva do Parlamento, alertam vários especialistas consultados pelo ECO. Mas o Ministério das Finanças garante ao ECO que a norma não viola a Constituição por via da interpretação da lei.
Estamos a pouco mais de um mês do arranque da campanha de IRS, que costuma iniciar-se a 1 de abril, e esta questão pode atrasar o processo de entrega. No entanto, o gabinete do ministro Joaquim Miranda Sarmento assegurou que a alteração por decreto é constitucional, afastando um cenário em que as datas para a submissão do documento possam resvalar para mais tarde.
“O Governo considera que a alteração ao número 7 do artigo 57.º do código do IRS não afeta o cálculo do mínimo de existência, uma vez que as referências a este artigo constantes do artigo 70.º do mesmo código, cuja redação é anterior à introdução daquela disposição, não visam abranger os rendimentos previstos no n.º 7 do artigo 57.º do Código do IRS”, referiu fonte oficial do gabinete de Joaquim Miranda Sarmento.
Já depois da resposta do Governo ao ECO e analisando os fundamentos apresentados, o fiscalista Luís Leon, da Ilya, avisa que, para aplicar o entendimento do Ministério das Finanças, “vai ser necessária uma instrução interna da Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais dirigida aos serviços da Autoridade Tributária para excluir tais rendimentos”.
Até porque o artigo 70.º do Código do IRS, relativo ao mínimo de existência, visa incluir, para determinação dos rendimentos brutos, todos os ganhos “isentos e excluídos de tributação” previstos no artigo 57.º sem excecionar o número 7 que diz respeito aos subsídios de refeição, ajudas de custo, pagamentos de quilómetros ou indemnizações por despedimento.
Legislar por decreto, sem passar pelo Parlamento, foi a solução encontrada pelo Executivo para contornar um eventual novo chumbo de PS e Chega e evitar que o preenchimento da declaração do IRS se transformasse numa autêntica dor de cabeça para os contribuintes, tal como o ECO noticiou. PSD e CDS, os partidos que suportam o Executivo da Aliança Democrática (AD) ainda tentaram, no ano passado, retirar essa norma do Orçamento do Estado para 2025 (OE2025), mas os socialistas com a ajuda do Chega rejeitaram a proposta. De lembrar que essa nova obrigação declarativa que, este ano, iria começar a produzir efeitos, foi introduzida no OE2024 pelo PS de maioria absoluta de António Costa.
Quando o ministro das Finanças, Joaquim Miranda Sarmento, anunciou que o Executivo iria avançar com o decreto-lei, não se levantaram problemas de inconstitucionalidade, porque as obrigações declarativas, mesmo tratando-se de impostos, matéria que costuma ter de passar pelo crivo dos deputados, podem ser alteradas por decreto.
“Tratando-se de uma norma relacionada com obrigações declarativas de imposto e não estando em causa a criação, ou modificação de uma norma de incidência de imposto por exemplo, entendemos ser possível que seja feito por decreto-lei, desde que o Governo tenha competência para legislar sobre a matéria”, explicou ao ECO Joana Monteiro de Oliveira, associada sénior da Abreu Advogados. Esta também foi a primeira conclusão dos fiscalistas, Luís Leon, da Ilya, e João Espanha, da Broseta Portugal.
Contudo, numa análise mais fina aos impactos que tal alteração poderia ter no Código do IRS (CIRS), Luís Leon verificou que a introdução do número 7 ao artigo 57.º, que determina a obrigatoriedade de reportar “rendimentos não sujeitos a IRS” como subsídio de refeição ou ajudas de custo, “quando superiores a 500 euros”, pode “influenciar o cálculo do mínimo de existência e a determinação da taxa do imposto a pagar”.
“Tal como está a lei, o subsídio de refeição ou ajudas de custo passam a contar para a determinação do mínimo de existência, ou seja, vão comer uma fatia desse parcela que abate ao rendimento. Na prática, poderíamos ter trabalhadores a receber o salário mínimo que nunca pagaram IRS e que poderiam passar a ser tributados”, exemplifica Luís Leon.
Se o Executivo mudar o código por decreto e eliminar a obrigação de declarar tais rendimentos, esses ganhos deixam de contar e o imposto baixa. “Há uma mudança na incidência que só pode ser legislada pelo Parlamento”, sublinha.
O mesmo alerta já tinha sido dado pelo contabilista certificado, Pedro Gaspar, numa publicação que partilhou na rede social Linkedin. “O que aconteceria se os rendimentos não sujeitos fossem ‘reportados’? Esses rendimentos, ainda que não sujeitos, poderiam vir a ser considerados para efeito do cálculo do abatimento por mínimo de existência. Daqui resultaria que alguém que receba apenas o salário mínimo, mas que receba ajudas de custo e quilómetros por utilização de viatura própria na ordem dos 300 euros por mês (11 meses), veria o seu rendimento subir dos 11.480 euros para os 14.780 euros anuais, o que teria um impacto expressivo no valor a deduzir ao rendimento a título de abatimento por mínimo de existência. Contas feitas (de forma grosseira), este facto iria traduzir-se na diferença entre não ‘pagar IRS’ e pagar sensivelmente 780 euros“, segundo o contabilista.
Eliminar o reporte obrigatório daqueles ganhos poderá ter impacto direto na incidência do imposto. Por isso, o constitucionalista José Moreira da Silva confirma o “risco de inconstitucionalidade”.
“A incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes só podem ser alterados pela Assembleia da República. E aqui coloca-se a questão da incidência do imposto”, salienta, citando o número 2 do artigo 103.º da Constituição.
Nas mãos de Marcelo
Perante esta “insegurança jurídica”, resta saber se o Presidente da República vai suscitar a fiscalização preventiva da constitucionalidade do diploma, suspendendo a produção dos seus efeitos, no prazo de oito dias desde a receção do decreto. Se os juízes do Palácio de Ratton confirmarem a existência inconstitucionalidade, o Chefe do Estado não pode promulgar o decreto e terá de o devolver ao Governo.
Caso o texto legal passe pelo crivo de Marcelo Rebelo de Sousa, o constitucionalista refere que “o Parlamento pode suscitar a apreciação do diploma a requerimento de 10 deputados, nos 30 dias subsequentes à publicação, descontados os períodos de suspensão do funcionamento da Assembleia da República”.
“O diploma também pode ser suspenso até uma decisão dos deputados no sentido de confirmação, rejeição”, acrescenta. No entanto, se o Parlamento aprovar alterações ao decreto, “fica resolvido o problema da inconstitucionalidade orgânica, porque o diploma converte-se numa lei da Assembleia da República”, clarificou.
Para já, os grupos parlamentares do PS e Chega estão em silêncio e preferem não tecer comentários nem tomar uma posição sobre o tema. Às questões colocados pelo ECO, os dois partidos querem esperar primeiro pelo decreto do Governo e depois decidem se pedem a apreciação parlamentar ou a fiscalização sucessiva da inconstitucionalidade, caso o Presidente da República promulgue o diploma.
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