Era uma vez a América

  • Henrique Burnay
  • 5 Março 2025

O presidente quer acabar com a globalização, o vice-presidente quer acabar com os governos moderados, e o bilionário quer acabar com o poder europeu que o limita nos negócios.

A Europa está em choque com o que se passa com a América, com o que diz a administração americana e com o que Trump faz. Tem boas razões para isso. Mas depois do que choque e horror, a Europa precisa de perceber o que se passa, para poder decidir o que fazer.

Para perceber a política externa americana é preciso primeiro olhar para a política interna. Nem sempre é assim. Com frequência, durante a campanha eleitoral a política externa esta submetida ou mesmo submersa, para emergir depois, quando o governo começa e governar os Estados Unidos é, tem sido, ser actor global. No caso de Trump, as coisas não são bem assim.

A questão fundamental é interna. É a coligação eleitoral de Trump que define a sua política externa. E é a sua leitura do mundo global que a acomoda. Comecemos por dentro.

A eleição de Trump é uma coligação entre tecnológicos e ideológicos. Em 2024, os tecnológicos foram fundamentais. Do dinheiro que trouxeram para a campanha ao que permitiram de discurso nas suas plataformas (do X, de Musk, ao Washington Post, de Bezos, que pela primeira vez não escolheu um candidato), os tecnológicos Elon Musk (X, space X, Tesla), Joseph Bezos (Amazon e Washington Post), Mark Zuckerberg (Facebook, Instagram e WhatsApp), Tim Cook (Apple), Sundar Pichai (Google), e sobretudo Peter Thiel (ex-PayPal e investidor em várias tecnológicas), o mais desconhecido e para muitos o mais influente, foram fundamentais para a vitória de Trump. Deram-lhe a possibilidade de os seus discursos e o discurso dos seus circular livre e incontestadamente. Não foi uma preferência pela liberdade de expressão. Foi a preferência por um certo tipo de expressão, em nome da liberdade. Os que perseguem determinados livros em bibliotecas públicas não estão, obviamente, interessados na Liberdade, mas estão interessados em certa expressão. É isso que lhes importa.

Para Trump, é fundamental que se possam dizer certas coisas. Aquilo que é consabidamente falso, que promove o ódio, que estimula a dissensão é o que alimenta o trumpismo. E é fundamental que as redes sociais deixem circular livremente essas ideias. Em contrapartida, os tecnológicos querem a Europa. A regulação europeia do universo digital não favorece a criação de líderes europeus na economia digital. O Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD) não faz campeões digitais europeus. Mas limita a actividade de americanos (e chineses). É esse o problema dos tecnológicos.

Quando JD Vance veio à Europa falar da regulação da inteligência artificial, alguém mais distraído, ingénuo ou genuinamente cúmplice pode ter pensado que o vice-Presidente estava sinceramente preocupado com a liberdade e com as boas condições para o florescimento da Inteligência Artificial (IA) ocidental, americana e europeia. Obviamente, não estava nem está.

O que Vance quer é o que os tecnológicos esperam desta administração: que as regras europeias, sobre as plataformas digitais já existentes e sobre o desenvolvimento da inteligência artificial, beneficiem as empresas tecnológicas americanas. Que lhes abram mercado e, sobretudo, que não lhes imponham regras que limitem o uso das suas ferramentas, em particular de IA, no futuro, na Europa. Esta é uma parte da equação, bastante transparente, de resto. Depois há a outra, a dos ideológicos.

JD Vance é o rosto ideológico do trumpismo. Por isso cria tanto entusiasmo em alguma direita e extrema direita europeias: porque diz coisas que irritam a esquerda e atacam o consenso europeu. Ora, para os ideológicos, o consenso europeu, a ideia de que é fundamental preservar o sistema das democracias liberais, a convicção de que as ideias moderadas, mesmo as de que discordam, fazem parte das opções legítimas que não põem em causa o modelo político, é a podridão da Europa. Os ideológicos têm uma agenda externa, tal como no passado os ocidentalistas americanos tinham. E acreditam no papel da América e no poder dos seus agentes, públicos e privados, na promoção dessa agenda. A grande diferença não está no meio, está mesmo na substância.

Ao contrário do que parece, os Estados Unidos de Trump não fazem tenções de deixar de apoiar partidos e regimes na Europa, tal com fizeram no passado. A diferença é que Vance e companhia genuinamente não gostam dos partidos centrais da democracia europeia, porque não gostam dos regimes europeus. Os seus aliados, os aliados dos ideológicos, são os que acreditam que a Liberdade em excesso está na origem da decadência do Ocidente. A Trumpamérica está tão disposta a apoiar partidos e governos europeus como a América sempre esteve. A grande diferença é sobre quais devem ser os partidos e governos aliados. E é aí, de novo, que entra a coligação entre ideológicos e tecnológicos.

Os Vances querem apoiar os europeus do Brexit, da AfD, do Vox, de Órban, porque não deixaram de ser internacionalistas (a tese de que Trump é isolacionista é um erro). Apenas deixaram de apoiar os defensores da democracia. Até podem defendê-la, mas o critério para merecer o seu apoio é outro. É a expressão livre das ideias mais extremistas. Ora, a contrapartida, para os tecnológicos, é que, em nome da Liberdade de Expressão, ou de qualquer outro argumento, estes partidos contribuam para a desregulação europeia das tecnológicas americanas. Isso vale bem um tweet a favor da AfD, contra Starmer ou o que mais houver: nomeadamente o reforço de Putin, às custas da Ucrânia e da segurança da Europa e, barreira que normalmente seria intransponível, do Ocidente.

Aos tecnológicos e aos ideológicos juntam-se os anti-globalistas. Depois de décadas a promover e beneficiar da globalização, as novas elites americanas acreditam que o desequilíbrio comercial da América é a causa dos seus males. Ao arrepio de tudo o que foi sendo ensinado nas últimas décadas, esta Administração e os seus teóricos acreditam que a globalização foi gravemente desfavorável à América e que o comércio livre é o grande mal. Exatamente o oposto daquilo em que as administrações americanas têm acreditado, particularmente desde o fim da Guerra Fria.

Percebendo-se esta coligação e entre ideológicos, tecnológicos e anti-globalistas, percebe-se facilmente o resto. A administração quer gastar o menos possível em tempo, homens, armas e dinheiro, com esta Europa. Mas está empenhada em mudá-la.

No mundo da Trumpamérica, temos de perceber a coligação interna pra compreender a política externa. Os populistas fundamentalistas querem o controlo ideológico do aparelho do Estado. As oligarquias tecnológicas querem as (não) regras para desenvolver o seu modelo de negócio. Os anti-globalistas têm uma agenda proteccionista. Uns e outros vêem a Europa como o adversário. Uma Europa woke, como a consideram, e uma Europa com regras de controlo sobre as tecnológicas, e uma europa que ainda acredite no comércio livre é o inimigo de todos eles. Já a China é concorrente/competidor e, para alguns (aí é que o confronto nesta coligação interna pode surgir) um belíssimo mercado. Para outros, o inimigo no combate pelo predomínio global. Para já, até a ideia de fazer um corte orçamental na defesa faz crer que o conceito de rival sistémico, que é como a Europa vê a China, não é partilhado. Já a aproximação à Rússia, mais do que uma forma de enfraquecer a China, é vista como podendo servir para enfraquecer a Europa, forçando-a a ceder nas regras tecnológicas e ajudando ao reforço dos partidos ideologicamente próximos deste (ex-)Partido Republicano.

Basta ouvir Trump e companhia, sem achar que o que dizem não é o que querem dizer ou que o que dizem é um exagero pré-negocial. Não é. Compreendida a agenda da coligação de que é feito o trumpismo, fica muito mais fácil perceber por que razão a Europa é o adversário. E por que razão a Ucrânia pode ser sacrificada: se isso for útil para reforçar Putin e enfraquecer os liberais democratas europeus.

  • Henrique Burnay
  • Colunista convidado. Senior Partner EUPPORTUNITY

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