
A doutrina Marcelo
Em janeiro, seremos novamente chamados a votar. Talvez seja hora de deixarmos de encarar as eleições presidenciais como concursos de mera popularidade ou simpatia.
Dentro de poucos meses, a década de Marcelo chegará ao fim. Chegou a Belém com epíteto de popular, o Presidente dos afetos, sincero nos abraços. Marselfie tornou-se vocábulo e aplicação de telemóvel e a presidência, depois de 10 anos de Cavaco, parecia ter voltado ao povo. A estabilidade era o mote e a relação próxima com António Costa foi o motor para a conseguir.
Fracassado o objetivo de bater os 70% da reeleição de Soares, o segundo mandato trouxe-nos um Presidente manifestamente diferente. A presidência popular fechou-se em Belém, a relação com Costa arrefeceu e a estabilidade tão apregoada durante a campanha da reeleição, em menos de 1 ano, deixou de existir.
Logo em 2021, com uma crise orçamental à vista, antevendo que as autárquicas seriam duras para o PCP, Marcelo avisou que um chumbo do OE levar-nos-ia a eleições. Nunca tendo acontecido em 50 anos de democracia, o constitucionalista Presidente tinha uma oportunidade de criar jurisprudência política. E criou. Diabolizando os duodécimos, irresponsabilizando os partidos da geringonça e ignorando o mandato parlamentar dos deputados eleitos, mandou o país para legislativas antecipadas.
Seguiu-se a maioria absoluta. É certo e sabido que ninguém esperava aquele resultado, mas Marcelo, antevendo que o seu papel estava a mudar, avisou que nunca abdicaria do poder da dissolução. Talvez sem imaginar a quantidade de vezes que o viria a utilizar. Ia sucessivamente avisando que mantinha o poder, e quando a relação com Costa conheceu um novo fundo, a oportunidade apareceu. O Presidente voltava a dar um forte chega para lá ao parlamentarismo, ignorou a doutrina de Sampaio e, como tinha prometido, tornou a maioria um resultado de um homem só. Para além disto, dissolveu a AR dos Açores uma vez, depois de um Orçamento chumbado, e a da Madeira já soma duas dissoluções – uma das quais, de constitucionalidade duvidosa.
Chegados agora à terceira dissolução da Assembleia da República, é evidente que temos de perguntar – É Marcelo responsável pela instabilidade? Pelo menos, agente principal é. Enquanto tentava estar no meio do regime, enquanto tentava que a sua popularidade servisse para que nada se passasse sem ele, permitiu um esvaziamento total do cargo que prometeu defender. Recusou outras ferramentas que a Constituição lhe dava, por se cingir a uma visão profundamente restritiva dos seus poderes. Quando um exército restringe o seu armamento à bomba nuclear, fica sem raio de ação numa variedade ampla de situações que não a justificam.
Não, não acho que Marcelo seja responsável por esta crise, nem creio que tivesse outra alternativa que não a dissolução. Penso, no entanto, que Marcelo, que começou beijoqueiro, acabou dissolvente. Ao tentar estabilizar o regime, tomando o papel de seu ator central, terminou responsável por uma doutrina que mais do que limitar os poderes presidenciais, os restringe a mero Truman da vida política portuguesa. Marcelo diminuiu Belém a um simples portador da bomba.
O Presidente tornou banal a sua palavra e viu-se obrigado, neste final de mandato, a gerir silêncios, ao invés da magistratura de influência. Para se tentar colocar no âmago do regime foram várias as estocadas que deu no parlamentarismo. A dissolução do Parlamento em caso de chumbo da proposta de OE e a redução das eleições a escolhas diretas de Primeiros-Ministros disso são exemplos. A visão foi sempre esta: restringir a independência, autonomia e responsabilidade dos deputados.
Em janeiro, seremos novamente chamados a votar. Talvez seja hora de deixarmos de encarar as eleições presidenciais como concursos de mera popularidade ou simpatia. Hoje, talvez como nunca desde ‘76, ouvirmos a interpretação que os candidatos fazem dos poderes constitucionais da presidência é fulcral. Nestes anos de instabilidade que podemos estar para viver vai ser vital que Belém, mais do que um ator, seja um árbitro. Um árbitro que não reduza a sua ação ao cartão vermelho. Dar posse a líderes que não tenham sido sufragados, como Marcelo o entende, pode ser um elemento crucial do papel presidencial. Tão ou mais importante do que evitar criar novos cenários de dissolução.
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