Do dólar ao ouro — de “In God We Trust” a “In Gold We Trust”?

  • Paulo Monteiro Rosa
  • 28 Março 2025

A erosão da confiança no dólar, alimentada por dívida excessiva, inflação persistente e instabilidade geopolítica, está a devolver protagonismo ao ouro.

Durante o período em que vigorou o padrão-ouro, sobretudo entre o século XIX e o início do século XX, os preços do ouro mantiveram-se relativamente estáveis, o que teve um impacto significativo na inflação. Esta estabilidade deveu-se ao facto de o padrão-ouro impor uma disciplina monetária bastante rígida: a quantidade de moeda em circulação estava diretamente limitada pelas reservas de ouro detidas por cada país. Tal limitação dificultava a expansão arbitrária da massa monetária, contribuindo para níveis de inflação baixos, ou até mesmo para períodos de ligeira deflação.

Um exemplo emblemático dessa estabilidade foi o preço do ouro fixado por Isaac Newton em 1717, quando exercia funções na Casa da Moeda britânica. Esse valor manteve-se praticamente inalterado até 1914, com a exceção do período das guerras napoleónicas entre 1797 e 1821. Este facto ilustra bem a estabilidade do ouro enquanto base monetária durante cerca de dois séculos.

Até por volta de 1920, e em particular antes da Primeira Guerra Mundial, a inflação global manteve-se geralmente baixa. A eclosão da guerra levou muitos países a suspender o padrão-ouro, de forma a poderem financiar o esforço de guerra através da emissão de moeda, originando um aumento considerável da inflação a partir dessa altura.

O caso dos EUA é particularmente ilustrativo: entre 1792 e 1973, o preço oficial do ouro foi alterado apenas quatro vezes. Esta consistência reflete a tentativa de manter a paridade com o ouro e, por consequência, controlar a inflação de forma rigorosa. No entanto, importa salientar que, enquanto a economia dos EUA crescia e a base era pequena, o crescimento económico e o aumento populacional permitiam ganhos consideráveis. Gradualmente, a economia dos EUA tornou-se hegemónica, e o dólar passou a ser a moeda de referência mundial. Contudo, para que todos tivessem dólares a nível global, os EUA precisaram incorrer em défices comerciais, então o banco central americano, a Fed, emitiu dólares, e a economia dos EUA trocou-os por bens e serviços estrangeiros, com dinheiro criado praticamente do nada. Esse processo tem vindo minar a confiança no dólar, estando no cerne do célebre dilema de Triffin: não é possível ser a referência mundial em termos de moeda e, ao mesmo tempo, manter a confiança nessa mesma moeda no longo prazo devido aos défices comerciais.

Atualmente, a economia dos EUA continua a ter um grande peso na economia mundial, mas já não cresce como antes, devido à sua base económica elevada. A depreciação do dólar é, portanto, uma realidade, o que favorece a valorização do ouro. Além disso, os défices orçamentais consecutivos e o rácio da dívida pública em máximos históricos tornam o dólar cada vez menos atrativo. Para preservar a atratividade da sua moeda, os EUA têm de manter taxas de juro elevadas.

Em suma, entre aproximadamente 1830 e 1914, viveu-se um longo período caracterizado por preços relativamente estáveis, inflação baixa ou inexistente, e até, por vezes, deflação — tudo isto sustentado pela disciplina imposta pelo padrão-ouro. Foi apenas com o surgimento das grandes guerras e, mais tarde, com a transição para sistemas de moeda fiduciária, que a inflação se tornou uma presença mais constante nas economias modernas.

Durante o século XIX e grande parte do século XX, as yields das obrigações do Tesouro dos EUA a 10 anos, embora relativamente moderadas e sem necessidade de serem particularmente elevadas, revelaram-se, na maioria do tempo, suficientes para preservar o valor do dólar face ao ouro. No contexto do padrão-ouro, que vigorou até ao início do século XX, o dólar apresentava uma estabilidade notável, sendo praticamente equivalente ao ouro em termos de poder de compra, mesmo sem qualquer remuneração. Quando remunerado à taxa de juro das obrigações soberanas norte-americanas, o seu desempenho superou largamente o do ouro. Importa recordar que o ouro não gera qualquer rendimento, oferecendo apenas potenciais ganhos de capital, ao contrário do dólar que tem um juro implícito. Essa paridade foi interrompida com a Primeira Guerra Mundial e, definitivamente, em 1971 com o fim do sistema de Bretton Woods, quando o dólar deixou de ser convertível em ouro. A partir desse momento, o dólar tornou-se uma moeda fiduciária e o seu valor passou a depender da confiança dos mercados, das políticas orçamentais e monetárias dos EUA, e do comportamento das taxas de juro.

Os gráficos apresentados ilustram de forma clara a evolução da relação entre o ouro e o dólar. A evolução do dólar não remunerado face ao ouro desde 1833 apresenta uma longa fase de estabilidade até 1914, seguida de uma descida progressiva e acelerada do seu valor, que acaba por perder praticamente 100% do seu poder de compra em relação ao ouro ao longo de quase dois séculos. No entanto, se tivesse sido remunerado, o desempenho do dólar teria superado o do ouro nesse mesmo período, em grande parte devido à evolução favorável da primeira metade do intervalo, que compensou a fase final mais desfavorável, sobretudo no século XXI.

O gráfico focado nos últimos 100 anos, permite ver com mais detalhe os grandes marcos da desvalorização do dólar, nomeadamente nas décadas de 1930, 1970 e após 2000. Ainda assim, este gráfico mostra apenas o dólar não remunerado — ou seja, sem considerar o reinvestimento das yields dos títulos do Tesouro. Quando o dólar é remunerado à taxa de juro do Tesouro a 10 anos, o seu desempenho é muito diferente. Entre 1940 e 1970, por exemplo, o capital investido em dívida pública norte-americana supera o desempenho do ouro. O mesmo ocorre, em menor escala, entre 1980 e 2000, quando as yields estavam em níveis elevados e a inflação era mais controlada.

Os dois gráficos que analisam o período desde 1971 — ano do fim do sistema de Bretton Woods — evidenciam de forma clara a diferença entre o dólar remunerado e o não remunerado. O dólar não remunerado entra praticamente em queda livre face ao ouro, enquanto o dólar com yield consegue ainda manter-se competitivo em certos períodos. No entanto, essa capacidade de preservação de valor revela-se tudo menos consistente.

O século XXI, tal como retratado nos dois gráficos — com o dólar remunerado e não remunerado — revela uma nova realidade. Mesmo com uma remuneração equivalente à yield das obrigações do Tesouro dos EUA a 10 anos, o dólar tem perdido valor de forma acentuada. Nos últimos três anos, a desvalorização face ao ouro chegou aos 50% e, mesmo considerando capital remunerado, a perda ronda os 40%. Isto demonstra que, no contexto atual, as yields aos níveis atuais deixaram de ser suficientes para preservar o valor da moeda em relação ao ouro. Para travar essa desvalorização, seria necessária uma remuneração significativamente mais atrativa — mas tal medida esmagaria a economia americana com custos elevados no serviço da dívida, sobretudo tendo em conta que a dívida pública se encontra em níveis historicamente elevados.

Assim, esta situação é agravada por fatores estruturais como os défices orçamentais crónicos dos EUA, uma dívida pública acima de 120% do PIB, e a crescente emissão de moeda por parte do banco central. A política de Donald Trump, que tentará reduzir as yields para facilitar o financiamento do défice, do rollover da dívida, e estimular a economia, poderá ter como consequência a erosão do valor do dólar. No entanto, esse efeito será eventualmente intencional, para tornar a economia dos EUA competitiva via preço.

Este panorama identifica o ouro como um ativo cada vez mais relevante num contexto de instabilidade monetária, com a sua valorização contínua a refletir uma conjuntura em que os fundamentos económicos e financeiros tradicionais deixaram de oferecer garantias sólidas de preservação de valor. Num momento de alta do preço do ouro, em contraciclo com as taxas de juro de longo prazo dos EUA — relativamente altas e atrativas para o dólar, mas aparentemente não o suficiente, situando-se atualmente em torno dos 4,50% —, estas deixaram de ser um dos principais fatores determinantes da cotação do ouro. Ao mesmo tempo, os bancos centrais — sobretudo dos mercados emergentes, com destaque para a China — têm aumentado significativamente as suas reservas de ouro. Este movimento reflete receios crescentes face aos elevados níveis da dívida pública norte-americana e à excessiva dependência de reservas denominadas em dólares, especialmente após o congelamento das reservas da Rússia, na sequência da invasão da Ucrânia. Adicionalmente, a inflação, ainda relativamente elevada, reforça a perceção de risco e torna cada vez mais evidente a necessidade de uma diversificação mais alargada das reservas cambiais — sendo o ouro o principal ativo escolhido. O banco central chinês (PBoC) tem, assim, um papel cada vez mais relevante na formação do preço do ouro, enquanto as taxas de juro do dólar perdem influência. Algo está, de facto, a mudar.

A análise do gráfico relativo ao rácio cobre/ouro reforça este diagnóstico. Desde o primeiro trimestre de 2022, a relação entre este rácio e a yield das obrigações do Tesouro dos EUA a 10 anos inverteu-se. Historicamente, esta relação é positiva, uma vez que yields mais elevadas sinalizam confiança no crescimento económico e impulsionam a procura de cobre e a sua cotação em detrimento do ouro. No entanto, nos últimos três anos, essa dinâmica alterou-se. Tem-se verificado uma correlação negativa persistente, o que significa que, apesar da subida das taxas de juro de longo prazo, o rácio cobre/ouro continuou a descer. Este comportamento revela um sinal claro por parte dos mercados: as taxas de juro atuais do dólar, apesar de elevadas, parece que deixaram de ser vistas como suficientemente atrativas para sustentar a confiança no dólar ou nas perspetivas de crescimento económico. Pelo contrário, e paradoxalmente ao habitual nas últimas décadas, mesmo século, esta inversão tem impulsionado o ouro. O metal amarelo beneficia da crescente perceção de risco, do agravamento da dívida pública dos EUA e, por conseguinte, da necessidade de diversificação das reservas dos bancos centrais. Num cenário em que o crescimento económico é posto em causa e a remuneração do capital pode já não compensar o risco, o ouro — apesar de, curiosamente, não gerar qualquer tipo de rendimento — reafirma-se, mais uma vez, como o ativo de refúgio por excelência.

A erosão da confiança no dólar, alimentada por dívida excessiva, inflação persistente e instabilidade geopolítica, está a devolver protagonismo ao ouro. A transição de um sistema baseado na fidúcia para um ancorado ao metal precioso levanta uma questão cada vez mais atual: estaremos a passar de “In God We Trust” das notas do dólar para “In Gold We Trust”?

 

  • Paulo Monteiro Rosa
  • Economista Sénior, Banco Carregosa

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

Do dólar ao ouro — de “In God We Trust” a “In Gold We Trust”?

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião