“Vemos investidores a carregar nos travões”. Tarifas de Trump abalam negócios em Portugal
Os processos de negociação e diligência prévia estão mais demorados e sem garantias de sucesso. Assessores têm estado a apoiar empresários nos receios com a taxas dos EUA e mitigação de risco.
Era pouco esperado, mas tornou-se inegável: as fusões e aquisições (M&A) entraram com o pé esquerdo num ano que se avizinhava de retoma, devido ao contexto de incerteza internacional e à guerra comercial que deixou de estar só na esfera das duas maiores economias do mundo.
Em Portugal, o mercado transacional está em mínimos trimestrais de três anos. No primeiro trimestre deste ano, registaram-se 114 operações de M&A, o que representa o valor mais baixo desde os primeiros três meses de 2022 e uma queda homóloga de 32%. Já o valor dos negócios que envolveram empresas nacionais fixou-se nos 918 milhões de euros, menos 71% do que no primeiro trimestre do ano passado.
O tema deixou de ser um ‘elefante na sala’ nos escritórios dos advisors. “O que vemos no nosso dia-a-dia, que se caracteriza por um trabalho eminentemente transacional e com uma forte componente cross-border, [transfronteiriço] é que apesar de o ano ter começado com grande otimismo – e com a esperança de um antecipado retorno aos ‘bons tempos’ de M&A – temos visto já alguns investidores a ‘carregar nos travões’, sobretudo no que respeita a transações de maior dimensão (os chamados macro deals), que tenham alguma componente de mercado de capitais ou que impliquem necessidades relevantes de financiamento”, diz Rafael Lucas Pires, sócio coordenador de Societário/M&A da Cuatrecasas.
Além da política protecionista dos Estados Unidos, há mais fatores que explicam esta situação, como taxas de juro “ainda elevadas” e com “impacto direto” no custo do capital, instabilidade geopolítica “persistente” quer no leste europeu quer no Médio Oriente, a queda do Governo e “elevada preocupação” com a avaliação dos ativos, esclarecem Rodrigo Nogueira e Manuel Cordeiro Ferreira, sócios da Pérez-Llorca. A dupla de advogados de M&A afirma ao ECO que os processos de due diligence e de negociação estão “mais prolongados” e “nem sempre culminam com êxito”, mesmo os que “já se encontram em fases adiantadas”.
No backstage dos negócios, outros assessores admitem que as transações estão a demorar mais tempo do que é comum. Por exemplo, operações com empresas de média dimensão (mid-market) que, noutras circunstâncias, seriam fechadas em quatro ou cinco meses, arrastam-se há mais de seis e podem chegar a um ano devido ao contexto de mercado. Outros consultores de empresas concorrentes, não identificados neste artigo, contam episódios em que o vendedor desiste no dia da assinatura ou numa etapa final em que falta apenas uma cláusula do contrato.
David Sequeira Dinis, sócio da Uría Menéndez especializado em reestruturações de empresas e insolvências, conta ao ECO que está a acompanhar uma empresa impactada pelas tarifas e a opção estratégica foi implementar um RERE – Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresas.
No único caso que acompanhamos diretamente relacionado com o tema das tarifas, a opção estratégica passou por um RERE. As principais preocupações dos empresários são o ajustamento dos calendários de pagamento junto da banca e dos principais fornecedores.
“Temos visto vários empresários a consultar-nos para perceber se há algo a fazer, o quê, quando e como. As principais preocupações têm que ver com o ajustamento dos calendários de pagamento junto da banca e dos principais fornecedores aos novos (e imprevisíveis) impactos das tarifas nos processos de exportação. Não deixa de ser curioso que as empresas exportadoras são aquelas que mais sofrem, quando houve um esforço – correto, a meu ver – de redirecionar o nosso tecido empresarial para os mercados externos”, assinala.
AdC recebeu 25 notificações de concentração até março
A Autoridade da Concorrência (AdC) ainda não denota alterações no número de notificações recebidas, que se encontram em linha com o ano passado. No primeiro trimestre, foram notificadas à AdC 25 operações de concentração, mais duas que entre janeiro e março de 2024, de acordo com os dados facultados ao ECO. Aliás, há oportunidades no horizonte em setores como energia, imobiliário, tecnologia, saúde (farmacêutica) e defesa, segundo os juristas contactados.
Rodrigo Nogueira e Manuel Cordeiro Ferreira, da Pérez-Llorca, projetam uma “proliferação de investimentos greenfield, um reforço da tendência de nearshoring para mitigar o impacto das cadeias de distribuição e de aquisições para crescimento e consolidação em certos setores por operadores de maior dimensão”.
A nível internacional, existem exemplos concretos de empresas que estão a reavaliar negócios, entre os quais a francesa Saint-Gobain, que adiou a venda da divisão de vidros para carros, ou a private equity britânica 3i Group, que pôs na gaveta a venda da empresa de refeições para animais MPM. Ainda antes da maré encarnada de abril, a Rosebank Industries desistiu em março de comprar a norte-americana ECI – Electrical Components International, à Cerberus, por dois mil milhões, alegando “volatilidade política e dos mercados”, apesar de ser uma “empresa muito boa com uma equipa de gestão de elevada qualidade”.
Gustavo Ordonhas Oliveira, sócio responsável por private equity e venture capital da SRS Legal, diz ao ECO que a sua equipa tem visto “preocupação crescente” em incluir cláusulas de proteção em contratos comerciais (produção, fornecimento, serviços…) para acautelar ou mitigar a exposição riscos derivados das tarifas e tem recomendado “atenção especial” às relações contratuais com contrapartes norte-americanas ou ligadas a cadeias de produção expostas às taxas alfandegárias.
Antecipamos que venha a existir uma preocupação acrescida com as valorizações das empresas, que poderá conduzir a um abrandamento nos processos de investimento ou aquisição.
“Antecipamos que venha a existir uma preocupação acrescida com as valorizações das empresas, que poderá conduzir a um abrandamento nos processos de investimento ou aquisição e à utilização de mecanismos contratuais e pricing [preço] adequados para fazer face a essas preocupações e mitigar o valuation gap [diferença de avaliação]”, antevê o advogado, acrescentando que os processos de investimento ou aquisição que tem em curso ainda não foram afetados, embora admita saber de “alguns que ficaram em stand by em virtude da incerteza gerada pela política tarifária da administração Trump”.
Botão de pausa no IPO
Além da nuvem cinzenta sobre a atividade M&A, a guerra comercial interrompeu os preparativos para ofertas públicas iniciais (IPO – Initial Public Offering) de empresas com uma avaliação total de mais de 120 mil milhões de dólares (cerca de 106 mil milhões de euros) desde 1 de abril – véspera do anúncio de tarifas por Donald Trump – até à última quinta-feira, de acordo com a agência financeira Bloomberg.
“As exigências e o preço que se pode obter num IPO podem não ser interessantes, dada a volatilidade e a opção de levantar capital de forma privada pode ser mais atrativa. Os investidores gostam de segurança e certeza nos seus investimentos. O IPO da Venture Global, empresa americana exportadora de gás liquefeito, tinha sido feito no início do ano, mas com esta volatilidade e outros fundamentais da empresa as ações desceram quase 50%, o que faz naturalmente pensar duas vezes a um investidor que esteja a querer participar num IPO nas atuais circunstâncias”, exemplifica Manuel Requicha Ferreira, sócio cocoordenador de Bancário & Financeiro e Mercado de Capitais da Cuatrecasas.
O IPO da Venture Global, empresa americana exportadora de gás liquefeito, tinha sido feito no início do ano, mas com esta volatilidade e outros fundamentais da empresa as ações desceram quase 50%, o que faz naturalmente pensar duas vezes.
O advogado menciona ainda casos na Europa: a farmacêutica alemã Stada, que adiou o IPO na bolsa de Frankfurt, e o banco germânico OLB, que decidiu não avançar com a oferta e avançou para uma venda privada para o grupo Credit Mutuel.
Há precisamente três semanas, Donald Trump fez tremer a diplomacia mundial e os mercados financeiros ao anunciar impor tarifas recíprocas de, pelo menos 10%, às importações, que levaram as bolsas europeias a registar a pior sessão desde 2020. A aplicação das novas taxas aduaneiras acabou por ser suspensa temporariamente, mas demasiado tarde para evitar efeitos adversos nalgumas empresas e mudanças de planos estratégicos.
Foi o caso da fintech sueca dos pagamentos faseados Klarna, da bilheteira online StubHub ou do grupo Azadea (distribuidor da Zara no Médio Oriente), que suspenderam o IPO, ou o banco digital Chime, que adiou a entrada em bolsa, enquanto a empresa de trading eToro atrasou o roadshow.
“O ano tem sido marcado por uma elevada volatilidade nos mercados, reflexo das persistentes incertezas macroeconómicas e, mais recentemente, das preocupações associadas às tarifas. Este ambiente tem conduzido a uma significativa retração no apetite pelo risco por parte dos investidores institucionais. Neste enquadramento, é expectável que um roadshow possa enfrentar desafios acrescidos ao nível da tração junto do mercado”, comentou o analista Henrique Tomé, da XTB.
Segundo o responsável de trading do Banco Carregosa, manter a flexibilidade e a capacidade de adiar, caso as condições não estejam reunidas, pode ser “tão importante” como a preparação da oferta. João Queiroz deixa um conselho: segmentar “cuidadosamente” o público-alvo ao eleger investidores institucionais de longo prazo que estão menos sensíveis à volatilidade de curto prazo.
Embora o ambiente seja mais exigente, é possível estruturar uma apresentação ao mercado eficaz, desde que sustentada numa narrativa coerente, focada na robustez do modelo de negócio, qualidade da gestão e clareza estratégica. O foco estaria menos na capacidade de executar tecnicamente o roadshow e mais na avaliação de se o contexto permite concretizar a operação nos termos pretendidos. Uma apresentação bem estruturada e preparada pode gerar interesse, mas não necessariamente garantir valorização que justifique a entrada em bolsa.
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