‘Yields’ ditam o ritmo do ‘masterplan’ de Trump

  • Paulo Monteiro Rosa
  • 10:00

Tal como aconteceu no ‘momento Liz Truss’, Donald Trump parece também estar condicionado pela reação dos mercados obrigacionistas e pelo comportamento das 'yields' do tesouro.

Os EUA vivem atualmente uma dinâmica marcada pela interação entre política económica, retórica populista e a disciplina imposta pelos mercados, sobretudo obrigacionista. O paralelismo com o episódio de Liz Truss, ocorrido no Reino Unido em outubro de 2022, é evidente: uma proposta política arrojada (cortes fiscais) foi travada não pela oposição política, mas pelos próprios mercados financeiros, nomeadamente pela subida acentuada das yields das obrigações do tesouro britânicas.

Tal como aconteceu no ‘momento Liz Truss’, Donald Trump parece também estar condicionado pela reação dos mercados obrigacionistas e pelo comportamento das yields do tesouro. Quando os rendimentos do tesouro norte-americano sobem de forma acentuada, sinalizando receios sobre a sustentabilidade da dívida pública ou das políticas propostas, Trump recua — adia tarifas, evita confrontos com a Fed ou suaviza o seu discurso. Pelo contrário, quando os mercados estabilizam e os rendimentos descem, Trump avança com as suas medidas – o seu masterplan.

Além de mentores de Trump como Stephen Moore, Larry Kudlow, Arthur Laffer e Peter Navarro, Stephen Miran, economista e presidente do Conselho de Assessores Económicos da administração Trump, é uma das vozes-chave da nova estratégia económica nacionalista e protecionista dos EUA, e um dos pais do masterplan.

No seu discurso de 7 de abril no Instituto Hudson, defendeu que os EUA fornecem dois bens públicos globais fundamentais: segurança internacional, através do seu poderio militar, e estabilidade financeira, sustentada pelo dólar como moeda de reserva. No entanto, alertou para os elevados custos desse papel, incluindo défices comerciais persistentes, perda de competitividade industrial e sacrifícios da classe trabalhadora americana.

Sob a liderança de Trump, os EUA rejeitam que outros países beneficiem deste sistema sem contribuir. Miran propôs uma maior partilha de responsabilidades globais, defendendo medidas como tarifas sobre exportações, abertura de mercados estrangeiros, aumento de gastos em defesa e investimentos no território americano. Defendeu também as tarifas como ferramenta económica legítima, criticando os modelos tradicionais que ignoram défices prolongados. Como exemplo, referiu as tarifas aplicadas à China em 2018 e 2019, que, segundo ele, permitiram financiar cortes de impostos nos EUA. Desta vez, as tarifas ajudarão a pagar tanto os cortes de impostos quanto a redução do défice orçamental. Para garantir a liderança americana no futuro, Stephen Miran considera essencial reconstruir a base industrial e exigir uma contribuição mais justa dos aliados internacionais.

Se nos próximos dias ou semanas os mercados estabilizarem, Trump deverá regressar ao seu plano, o que poderá incluir a tão anunciada redução de impostos prometida durante a campanha eleitoral — afinal, parte da perda de receita poderá ser compensada pelas receitas das tarifas. Ainda assim, essa proposta dificilmente será bem recebida pelos mercados, pois implica um agravamento das contas públicas, numa altura em que o défice orçamental dos EUA ronda os 1,3 biliões de dólares — o equivalente a 4,5% do PIB nominal — apenas nos primeiros seis meses do ano fiscal de 2025, e em que um volume elevado de dívida vence já na segunda metade de 2025 e ao longo de 2026. Além disso, as receitas provenientes das tarifas demoram a materializar-se — se é que alguma vez se materializam como esperado.

Talvez o verdadeiro calcanhar de Aquiles de Trump seja, portanto, o comportamento do mercado de dívida soberana. Manter os rendimentos baixos é, para Trump, essencial para garantir o financiamento do défice orçamental a custos reduzidos e proceder ao rollover do elevado montante de dívida, que se aproxima do vencimento, a taxas de juro baixas. Caso contrário, poderá enfrentar uma reação adversa dos mercados e ver o seu próprio programa político travado por esses mesmos mercados.

Trump acredita que, à medida que o dólar desvaloriza — como pretendido, para tornar a economia americana mais competitiva via preço e impulsionar a reindustrialização, os rendimentos do tesouro acabariam por cair também, e tudo seguiria conforme o previsto. Todavia, os rendimentos do tesouro na parte mais longa da curva têm subido, com os mercados a anteciparem um cenário de estagflação — isto é, estagnação económica acompanhada de inflação elevada — impulsionado pela subida dos preços provocada pelas tarifas. Trump partia do princípio de que a inflação recuaria com a desaceleração económica, mas essa não é a expectativa dos investidores.

A subida dos rendimentos é agravada pela deterioração das contas públicas, e, em caso de recessão, os estabilizadores automáticos aumentarão ainda mais a despesa. Para agravar a situação, a desvalorização do dólar tem gerado desconfiança na moeda americana, afastando investidores e penalizando, também por esta via, as obrigações do tesouro dos EUA, o que tem contribuído para a subida dos rendimentos da dívida pública.

Uma economia empenhada em eliminar os défices comerciais, reforçando a produção e a indústria interna, pode reequilibrar a balança corrente (composta pela balança comercial de bens e serviços, e pelos saldos dos rendimentos primários e secundários), mas esse reequilíbrio também afeta a balança de capitais. Se a balança corrente melhorar (ou seja, cada vez menos deficitária), o financiamento da economia americana com capitais externos torna-se menos necessário, reduzindo assim o excedente da balança de capitais — ou seja, deixa de ser preciso alienar tantos ativos americanos, como propriedades, imóveis, ações e obrigações. Consequentemente, o incentivo à entrada de capitais estrangeiros para financiar a dívida pública diminui, podendo, deste modo, pressionar em baixa o valor das obrigações e, mais uma vez, culminar numa subida dos rendimentos do tesouro.

Os EUA deixam de ser um destino de capitais para passarem a ser uma fonte: os investidores estrangeiros começam a financiar-se no país ou, melhor dizendo, a resgatar as poupanças que ali colocaram ao longo da última década — nomeadamente investimentos em ações tecnológicas e obrigações do tesouro acumuladas nas últimas décadas. Trump precisa de encontrar financiadores para o défice orçamental e para os elevados montantes de dívida que vencem em 2025 e 2026, mas os estrangeiros recuam devido à crescente desconfiança na moeda americana, à política comercial errática de Trump, à tentativa de reindustrialização com custos salariais elevados (uma verdadeira ‘quadratura do círculo’, incompreendida pelos investidores) e ao agravamento do défice orçamental. A subida dos rendimentos poderia atrair investidores, mas isso encarece o serviço da dívida, o que Trump quer evitar. Ele aposta no reequilíbrio das contas públicas, tal como das contas externas.

Uma possível solução passaria por convencer os bancos americanos a financiarem o Tesouro, através da compra de obrigações, contribuindo assim para a descida dos rendimentos. Para tal, Trump poderia solicitar à Fed a reintrodução da medida de emergência que vigorou entre 1 de abril de 2020 e 1 de abril de 2021, durante a crise pandémica, permitindo que as obrigações do Tesouro fossem excluídas do cálculo do rácio de alavancagem suplementar (Supplementary Leverage Ratio, SLR). Este rácio mede a relação entre o capital Tier 1 dos bancos, sobretudo ações ordinárias, e a sua alavancagem total (empréstimos, obrigações, reservas junto da Fed e derivados). Sem essa exclusão, os bancos ficam limitados na sua capacidade de absorver dívida pública. Caso a medida seja reativada, poderiam voltar a adquirir grandes volumes de obrigações, ajudando a baixar os rendimentos do Tesouro.

Por exemplo, se um banco tiver um capital próprio, medido pelo ‘capital Tier 1’, de 15 mil milhões de dólares, e uma alavancagem total de 300 mil milhões, o SLR será de 5%. No entanto, se esse banco adquirir 300 mil milhões de dólares em obrigações do Tesouro, o rácio cairá para 2,5% — abaixo do mínimo exigido de 3% —, impedindo-o de efetuar essa operação. O SLR manter-se-ia em 5% se as autoridades americanas decidissem excluir as obrigações do denominador do rácio SLR no cálculo da alavancagem total, permitindo assim aos bancos financiar indefinidamente o governo dos EUA e, consequentemente, reduzir substancialmente os rendimentos do Tesouro. Instituições com ativos consolidados de pelo menos 250 mil milhões de dólares ou exposições ao estrangeiro de pelo menos 10 mil milhões de dólares estão sujeitas à regra do SLR.

Contudo, dada a crescente fragilidade das contas americanas e a incerteza quanto à trajetória da economia, até os bancos americanos podem não estar dispostos a assumir esse risco. O objetivo dos bancos é ganhar dinheiro com as obrigações, o que só acontece se conseguirem vender as obrigações mais tarde a um valor mais elevado — lucro esse que só acontece se as obrigações valorizarem e os rendimentos caírem. No atual contexto desfavorável da economia, marcado por incertezas e fragilidades, esse ganho pode ser mais difícil de concretizar.

Então, o governo poderia obrigar os bancos a financiarem o Tesouro, como aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial, essa intervenção forçada poderia espoletar uma eventual reação adversa dos mercados, um novo “momento Liz Truss”, com mais desconfiança no dólar e nova escalada das yields.

O comportamento recente do mercado obrigacionista revela um verdadeiro harmónio de avanços e recuos do programa económico de Trump, cuja execução parece ritmada pelas oscilações das yields do Tesouro. Quando os rendimentos sobem acentuadamente, o masterplan trava — recuam as tarifas, moderam-se os discursos e evitam-se confrontos com a Fed. Quando os mercados acalmam e as yields descem, o plano avança novamente com cortes de impostos ou novas medidas protecionistas. Só os picos de tensão no mercado — os momentos “Liz Truss” — têm força suficiente para impor um travão real às medidas ousadas de Trump.

Ainda assim, esse efeito poderia revelar-se temporário e dependeria da dinâmica entre as forças compradoras e vendedoras no mercado obrigacionista. Caso a procura por obrigações ganhasse gradualmente tração, impulsionada por uma força compradora crescente dos bancos americanos, os rendimentos tenderiam a descer de forma progressiva. Isso poderia, por sua vez, atrair investidores estrangeiros e desencadear um círculo virtuoso, marcado pela valorização das obrigações e pela estabilização dos mercados.

Contudo, tudo permanece uma incógnita. Com um eventual défice orçamental em 2025 próximo dos 2 biliões de dólares e um grande volume de dívida pública a vencer já em 2025 e 2026, é legítimo questionar se a emenda não seria pior do que o soneto. E se a medida falhasse, provocando um colapso de confiança — um verdadeiro “momento Liz Truss total” — não poderia isso mesmo culminar num novo processo de impeachment a Trump?

  • Paulo Monteiro Rosa
  • Economista Sénior, Banco Carregosa

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