O apagão e o euro digital do BCE

  • Paulo Monteiro Rosa
  • 2 Maio 2025

O apagão de segunda-feira mostrou que, se as pessoas já tivessem euros digitais em vez de notas e moedas, não conseguiriam fazer compras em muitos locais.

O apagão que, no passado dia 28 de abril, afetou Portugal revelou uma realidade muitas vezes ignorada na era digital, a importância do dinheiro físico. Com a falha no fornecimento de eletricidade, muitos estabelecimentos comerciais deixaram de aceitar pagamentos com cartão, aplicações móveis ou outros meios eletrónicos. Restou apenas a possibilidade de pagar com notas e moedas, à moda antiga. Este episódio serviu como um aviso claro de que, por mais avançada que seja a tecnologia, continua vulnerável a falhas técnicas e interrupções inesperadas. Nesse contexto, volta a ganhar força o debate sobre o futuro dos meios de pagamento e a função do numerário, sobretudo quanto ao projeto em curso para a criação de um euro digital.

O euro digital é uma iniciativa do Banco Central Europeu (BCE), visando criar uma versão eletrónica das notas e moedas do euro, ou seja, uma moeda digital com o mesmo valor que as notas e moedas de euro em circulação. Surge num contexto de crescente digitalização dos pagamentos, do avanço dos criptoativos — como as stablecoins estrangeiras — e da dependência cada vez maior de sistemas de pagamento não europeus, o que levanta preocupações quanto à estabilidade financeira, à soberania monetária e à autonomia estratégica da Europa.

O objetivo do BCE é disponibilizar ao público uma forma de moeda do banco central em formato digital, algo que atualmente só existe fisicamente. Ao contrário da moeda privada (moeda crédito/dívida), criada pelos bancos comerciais (OIM – Outras Instituições Monetárias), como os saldos em contas bancárias ou os pagamentos com cartão, o euro digital seria moeda oficial, emitida diretamente pelo banco central e utilizável através de um cartão ou aplicação móvel. Não se trata de uma criptomoeda, que é descentralizada, uma vez que seria gerida por uma entidade pública e, por isso, centralizada, com a finalidade de funcionar como meio de pagamento e não como instrumento de investimento.

Numa intervenção no Parlamento Europeu, a 8 de abril de 2025, o BCE reforçou que o euro digital deverá complementar o numerário, não substituí-lo. Sublinhou que, apesar da crescente digitalização, o numerário continua a ser o único meio de pagamento soberano e desempenha um papel essencial na inclusão financeira e na resiliência em situações de crise, como ciberataques, falhas de energia ou catástrofes naturais — um ponto que ficou particularmente evidente no apagão ibérico do passado dia 28 de abril. O BCE reafirmou o seu compromisso com a preservação das notas e moedas, através de uma estratégia para assegurar a sua disponibilidade e aceitação em toda a zona euro.

O euro digital será gratuito no uso básico, funcionará online e offline, e será desenvolvido sob um modelo público-privado com governação europeia. O projeto foi lançado em 2020, entrou na fase de investigação em 2021 e, desde 2023, está em fase de testes e auscultações. A decisão final sobre a sua implementação está prevista para o final de 2025. Caso avance, será necessário um enquadramento legal próprio e uma fase de experimentação técnica, podendo a entrada em funcionamento ocorrer a partir de 2026.

Em boa verdade, o euro digital já existe, mas apenas no mundo interbancário. O que está em discussão agora é a possibilidade de tornar essa moeda digital acessível ao público em geral. A base monetária representa o passivo de um banco central, sendo composta por moeda em circulação (as notas e moedas físicas — o chamado numerário) e pelas reservas bancárias (em formato digital, aquilo que já é, de fato, euro digital). Através da base monetária — aumentando-a ou reduzindo-a — os bancos centrais procuram influenciar a massa monetária, isto é, o total de moeda disponível na economia real, nas mãos das empresas e das famílias.

Atualmente, a moeda em circulação (notas e moedas físicas) representa cerca de 1,6 biliões de euros, enquanto as reservas bancárias chegam a 3,6 biliões. Ou seja, o total da base monetária é de 5,24 biliões de euros, valor que corresponde a cerca de um terço do PIB nominal da Zona do Euro. Essa base monetária existente é, na prática, muito maior do que o valor que se espera digitalizar para uso público (a tal fração próxima de 1,6 biliões de euros, as tais notas e moedas físicas). Para comparação, a base monetária dos EUA representa cerca de 20% do seu PIB nominal, subindo para 22% quando se incluem os reverse repos.

No entanto, o apagão de segunda-feira mostrou que, se as pessoas já tivessem euros digitais em vez de notas e moedas, não conseguiriam fazer compras em muitos locais. O dinheiro físico mantém a privacidade e permite pagamentos mesmo sem eletricidade ou em situações de catástrofe natural, embora esteja sujeito a perdas ou roubo. O euro digital, por sua vez, é muito mais seguro contra roubos, mas levanta dúvidas sobre a privacidade.

O BCE pode afirmar que esta privacidade será garantida, mas o facto é que o euro digital implicará sempre um registo informático. Esse registo estará armazenado num sistema central. Estará devidamente encriptado ou acessível a alguém dentro do BCE? Será descentralizado? Será encriptado de forma robusta?

É muito improvável que o BCE adote um sistema 100% anónimo como o dinheiro físico. Como instituição pública, está obrigado a permitir o acesso das autoridades em casos específicos, como suspeitas de branqueamento de capitais ou financiamento do terrorismo. Assim, a privacidade será sempre relativa, e não absoluta — haverá algum grau de proteção, mas com exceções legais. Isso coloca o euro digital em desvantagem face a criptomoedas verdadeiramente descentralizadas, sobretudo à medida que o dinheiro físico for desaparecendo.

O euro digital é também concorrente da moeda-crédito criada pelas OIM e, em muitos aspetos, pode representar uma concorrência ainda mais direta à moeda-crédito do que às criptomoedas. Entre ter euros digitais — armazenados de forma segura no BCE — ou manter um depósito bancário numa OIM, a escolha torna-se relevante, sobretudo quando o saldo ultrapassa os 100 mil euros e há apenas um titular, pois nesse caso já não se aplica a garantia pública do Fundo de Garantia de Depósitos. Nesse caso, o que conta é a robustez do balanço do banco comercial.

Quanto às criptomoedas, a sua natureza descentralizada e privada pode tornar-se ainda mais atrativa à medida que o numerário for desaparecendo, apesar do BCE insistir que quer garantir a continuidade das notas e moedas, por representarem também soberania monetária.

Fazendo uma alusão à lei de Gresham e ao bimetalismo, é provável que o público tenda a utilizar como meio de troca a moeda-crédito das OIM, guardar o euro digital como reserva de valor, e recorrer às criptomoedas — sobretudo à Bitcoin, a mais robusta — para pagamentos mais discretos. Tal como acontecia no sistema de Bretton Woods, em que a valorização do ouro levava as pessoas a trocarem dólares por ouro, o dólar era usado para pagar e o ouro para guardar.

Curiosamente, nas economias de ‘fronteira’, como a maioria dos países africanos, onde as falhas de energia são frequentes, há maior adaptação a falhas energéticas prolongadas. Nestes países, soluções descentralizadas como as criptomoedas conseguem manter alguma funcionalidade graças à existência de produção autónoma de energia, sobretudo com geradores a gasóleo. Nas grandes cidades, é comum que estabelecimentos comerciais e, nalguns casos, residências da classe média ou alta tenham geradores, o que permite continuar a funcionar durante os apagões. Um exemplo comparável é a Ucrânia, onde, mesmo em guerra, foi possível manter o fornecimento de eletricidade de forma relativamente estável graças à instalação de geradores por todo o país. Este contraste mostra que a fiabilidade de um sistema financeiro digital depende não só da tecnologia, mas também da estabilidade da rede elétrica e, em caso de apagões, da existência de produção autónoma de eletricidade e de populações e economias locais já habituadas a funcionarem nessas condições.

A proposta do BCE para um euro digital revela mais a sua visão centralizadora, e a intenção de afastar a concorrência das criptomoedas, do que uma eventual necessidade premente da sociedade. Como no provérbio “quando Pedro me fala de Paulo, sei mais de Pedro do que de Paulo”, também aqui o entusiasmo pela digitalização diz mais sobre o sistema do que sobre o eventual interesse público. Se o euro digital vier a ser adotado de forma generalizada, menos dinheiro físico existirá e, provavelmente, mais os pagamentos informais e discretos tenderão a ser feitos com criptomoedas, sobretudo com a principal, a Bitcoin. Ou seja, poderá ser pior a emenda do que o soneto.

No final, o episódio do apagão serviu para relembrar uma verdade básica, mas muitas vezes esquecida. Em contextos de instabilidade ou disfunção sistémica, as formas físicas e tangíveis de valor como o dinheiro em espécie e, à escala internacional, o ouro, continuam a desempenhar um papel essencial como meio de troca fiável e reserva de valor, respetivamente.

  • Paulo Monteiro Rosa
  • Economista Sénior, Banco Carregosa

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