O que Luís Montenegro (não) disse no debate da moção de censura em que foi confrontado com a Spinumviva e os principais episódios desta novela a conta-gotas que se arrastou até à campanha eleitoral.
"Na moção de censura do Chega, ouvi as explicações sobre a quinta no Douro e as fazendas em Trás-os-Montes e votei contra. Eu senti-me enganado porque nos ocultou informação. E continuou a ocultar. Não sabíamos muita coisa nesse momento, mas Luís Montenegro sabia algo que só muito recentemente disse – e não disse em público, disse à Entidade para a Transparência através da declaração – sobre [quem eram] os clientes da Spinumviva.”
No debate televisivo de ‘todos contra Montenegro’, em que participaram os oito líderes dos partidos com representação parlamentar e que voltou a ficar marcado pela Spinumviva — que levou à queda do Governo e à convocação de legislativas antecipadas –, o porta-voz do Livre aludiu ao início do caso, em meados de fevereiro, que levou o Chega a apresentar uma primeira moção de censura. À luz do que hoje se sabe, o ECO contextualiza e revisita o que Luís Montenegro (não) disse nesse debate original, assim como os principais episódios desta novela a conta-gotas que se arrastou até à campanha eleitoral.
15 de fevereiro de 2025: “Família de Montenegro tem empresa imobiliária”. Foi com esta manchete do Correio da Manhã, numa edição de sábado, que o país ouvia falar pela primeira vez na Spinumviva, que era então apresentada apenas como “uma empresa de compra e venda de imóveis”. O foco era um potencial conflito de interesses porque a família do primeiro-ministro poderia vir a beneficiar da alteração à lei dos solos, promovida pelo Governo no âmbito do pacote legislativo da habitação, para permitir a reclassificação de solos rústicos em solos urbanos.
No arranque do ano, a lei dos solos era o tema que mais incendiava o ambiente político. Houve várias notícias sobre outros governantes com empresas imobiliárias, como os ministros da Coesão Territorial e da Justiça. O secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território, cujo Ministério tinha sido um dos envolvidos na elaboração do diploma, já se tinha demitido no início de fevereiro por, já depois de estar no Executivo, ter criado duas empresas desse ramo que poderiam vir a beneficiar com a nova lei. Uma “imprudência” de Hernâni Dias que o levou a “assumir a dimensão política dessa ação”, classificou então Montenegro.

Duas semanas depois, quando no centro da polémica passa a estar uma empresa criada por si, nas primeiras explicações dadas ao jornal, o chefe do Executivo explicou que o objetivo, quando a fundou, em 2021, um ano antes de se tornar líder do PSD e de vender a sua parte à mulher, era “incorporar na sociedade o vasto património” herdado dos pais, em especial uma quinta no Douro, e “revitalizá-lo”, o que não concretizaria pelo regresso à vida política ativa. No relatório entregue em 2024 à Entidade para a Transparência (EpT) constavam 54 propriedades imobiliárias, num valor total de 639 mil euros.
Pelo meio, sem explicações adicionais, Montenegro referiu que do vasto objeto social da empresa, só teve execução a prestação de consultoria no âmbito da proteção de dados pessoais. Mas (quase) ninguém ligou a essa ‘árvore’. A ‘floresta’ era o imobiliário. Acossado por vários escândalos a envolver a sua bancada parlamentar, como o do deputado que roubava malas em aeroportos, o Chega avança com a moção de censura. A 21 de fevereiro, chegados a esse debate (o tal citado esta semana por Rui Tavares), André Ventura denuncia “um caso de incompatibilidade patrimonial flagrantemente evidente” e dá manchetes aos jornais ao acusar o Governo de “parecer uma agência da Remax”.
Declarei tudo o que tinha a declarar, esclareci tudo o que tinha a esclarecer. (…) A partir de hoje só respondo a quem for tão transparente como eu. Ou seja, que seja capaz de fazer tudo aquilo que eu fiz.
Nas explicações que deu nessa tarde no Parlamento, que o comentário político do dia descreveu como um “striptease” do património, Montenegro alegou que os imóveis que detém nas freguesias de Barrô (Resende) e de Rabal (Bragança) “não têm qualquer hipótese de enquadramento nas alterações da lei dos solos” – e ainda disse que “não [vende] aqueles terrenos por nada”. E sobre a distribuição dos lucros, respondeu estarem “totalmente destinados ao investimento”, apontando até os “dois objetivos em carteira: a eventual construção de uma adega e de uma unidade de turismo no Douro, e um investimento numa eventual participação numa startup tecnológica”.
Apesar de ser casado em comunhão de adquiridos, defendeu que a divisão de património que fez com a mulher e os filhos “é perfeitamente legal” e deixou a seguinte garantia: “declarei tudo o que tinha a declarar, esclareci tudo o que tinha a esclarecer”. Já no final do debate, disse ter ido “além do que era exigível” e exposto a sua “vida profissional, pessoal e até familiar de uma maneira que nunca [viu] ninguém fazer”. E visando diretamente Ventura, referindo-se à informação prestada sobre os rendimentos, as propriedades e a sua origem, rematou com uma frase que deu outras manchetes: “A partir de hoje só respondo a quem for tão transparente como eu. Ou seja, que seja capaz de fazer tudo aquilo que eu fiz”.

Em tom ríspido, Luís Montenegro leu no Parlamento a longa lista do objetivo social da Spinumviva, com atividades que vão da consultadoria de gestão à exploração agrícola e vitivinícola, passando pela reorganização de empresas, gestão de recursos humanos, organização de eventos, política de marketing, gestão e comércio de bens imóveis e exploração turística e empresarial.
Na área da consultoria, à exceção da Medialivre (antiga Cofina, dona do Correio da Manhã, CMTV, Record, Sábado ou Jornal de Negócios), alegando “sigilo” para não revelar os nomes dos clientes em causa – só mais tarde divulgados a conta-gotas a reboque de investigações jornalísticas e, já quase na campanha oficial e no último dia do prazo legal, na declaração de substituição entregue à EpT -, Luís Montenegro fez na altura uma descrição genérica de alguns deles.
- “Uma empresa familiar de comércio de combustíveis”: a Joaquim Barros Rodrigues & Filhos, que ficou conhecida como a ‘gasolineira de Braga’, cuja família foi uma das maiores financiadoras do PSD desde 2018. Detida pelo pai do candidato do PSD à Câmara de Braga (João Rodrigues), que foi um dos sócios fundadores do escritório de advocacia de Hugo Soares, braço-direito de Montenegro e líder parlamentar e secretário-geral do PSD.
- “Uma empresa que gere unidades hoteleiras e um negócio físico e online, com cerca de 500 mil clientes registados e 1.200 funcionários”: trata-se do Grupo Solverde, que o Expresso viria a noticiar que desde julho de 2021 pagava uma avença de 4.500 euros a troco de serviços especializados de compliance e definição de procedimentos no domínio da proteção de dados pessoais. Montenegro tinha sido o representante do grupo nas negociações com o Estado para prolongar o contrato de concessão dos casinos de Espinho e do Algarve, que termina no final deste ano.
- “Uma empresa de retalho, com cerca de dois mil funcionários e lojas físicas e online (…) e um ficheiro com mais de 2,5 milhões de clientes e respetivos dados”: estava em causa a Rádio Popular, empresa de eletrodomésticos com sede na Maia, na qual Montenegro tinha exercido o cargo de presidente da assembleia-geral. É detida pelos irmãos Ilídio Silva e Edgar Silva, ambos de Espinho.
- “Um grupo industrial do ramo do aço, com centenas de funcionários, clientes e fornecedores”: estava a referir-se ao Grupo Ferpinta, sediado em Oliveira de Azeméis e fundado em 1962 pelo comendador Fernando Pinho Teixeira. Conhecido sobretudo pela metalomecânica (produção de tubos), integra ainda empresas de equipamentos agrícolas e turismo (hotel Vila Baleira, no Porto Santo).
- “Um estabelecimento de ensino privado, sem contratos com o Estado, com mais de 1.200 alunos e mais de 200 funcionários”: era o CLIP — Colégio Luso Internacional do Porto, uma escola privada do pré-escolar ao ensino secundário existente desde 1990 e que pertence igualmente ao grupo Violas, do qual faz parte a Solverde.
- “Um grupo de farmácias, com especial sensibilidade no tratamento de dados de saúde”: era a Lopes Barata, Consultadoria e Gestão, Lda., uma empresa de Vila Nova de Gaia liderada por Gustavo Barata, CEO e administrador do grupo Sofarma. Surgiu em 2016 como JCB – Produtos farmacêuticos e dedicada ao comércio de medicamentos por grosso e, três anos depois, mudou para a atual designação para refletir as novas atividades.
- “Uma empresa de transportes de mercadorias”: seria a Portugalenses Transportes, baseada em Vila Nova de Gaia, que conta com duas décadas de atividade na área da logística, fatura quase 26 milhões de euros por ano e emprega atualmente mais de 170 trabalhadores.
- “Uma fábrica de equipamento industriais”: dos clientes entretanto conhecidos, podia estar a referir-se à bracarense Beetsteel, que tem uma unidade industrial em Fafe e é especializada na construção e instalação de estruturas metálicas, atuando ainda na área da serralharia e no mobiliário urbano; ou à produtora de geradores Grupel, fundada em 1976 e liderada por Marco Santos, que fatura 35 milhões de euros (80% no estrangeiro, com presença em mais de 70 países).
Ao fim de várias horas de discussão parlamentar, a iniciativa do Chega só foi votada favoravelmente pelo partido proponente e pelo deputado não-inscrito Miguel Arruda, com o PCP a abster-se e as restantes bancadas a votarem contra. No entanto, mesmo recusando “dar para o peditório de iniciativas do partido de extrema-direita que têm como único objetivo desviar as atenções dos seus problemas internos”, Pedro Nuno Santos pediu a Montenegro, sem sucesso, para identificar explicitamente os “clientes mistério” e questionou-o sobre quais os serviços prestados em concreto a cada um deles, por quem e se o preço praticado foi “de mercado e não de favor”.
Avença da Solverde ‘vira o jogo’
Fechada a votação, o caso ficou em banho-maria durante precisamente uma semana. Na sexta-feira seguinte, a manchete do Expresso sobre a avença da Solverde ‘vira a mesa do jogo’. Em definitivo, o caso deixa de ser sobre os ativos imobiliários do primeiro-ministro e a lei dos solos e concentra-se nos clientes da empresa.
A Spinumviva liberta então uma primeira lista com alguns nomes. A ‘trama’ política adensa-se. No Porto, antes de um encontro oficial com o Presidente francês, Emmanuel Macron, Montenegro convoca um conselho de ministros extraordinário para o dia seguinte e promete “fazer uma avaliação pessoal, familiar e política”.
No sábado à noite, no final dessa reunião do Executivo, a 1 de março, o primeiro-ministro admite, pela primeira vez, avançar com uma moção de confiança, desafiando a oposição a esclarecer se “dispõe de condições para continuar a executar” o seu programa. “A crise política deve ser evitada. Mas também é preciso dizer que ela poderá vir a ser inevitável”, atira.
É imediato o anúncio de uma nova moção de censura por parte dos comunistas. O secretário-geral do PS lamenta que o PCP “morda o isco” – quatro dias depois, a iniciativa seria chumbada com a abstenção socialista –, mas Pedro Nuno avisa também que votará contra uma eventual moção de confiança.
Perante as dúvidas criadas nessa noite, o ministro de Estado e das Finanças, Joaquim Miranda Sarmento, vai à televisão dizer que a rejeição de duas moções de censura significaria que o “Parlamento entende que o Governo pode continuar a governar e, nesse sentido, não há uma justificação para uma moção de confiança”, explicitou em declarações à RTP3.
No entanto, a 5 de março, o debate da iniciativa do PCP estava ainda no início quando Montenegro anuncia que iria mesmo avançar com a moção de confiança. Antecipando o sentido de voto das várias bancadas, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, estendeu logo o tapete para eleições antecipadas. A 11 de março, apenas contra a vontade de PSD, CDS e Iniciativa Liberal, o Governo cai no Parlamento.
Spinumviva junta discoteca e pregão de Espinho. “Até ficou um nome bonito”
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No primeiro episódio da terceira temporada de Bom Partido, uma minissérie de sete conversas do humorista Guilherme Geirinhas com líderes políticos, Luís Montenegro explicou como escolheu o nome da empresa que todo o país ficou a conhecer. A primeira escolha era ‘É de Espinho Viva!”, o pregão usado pelas peixeiras da cidade. A segunda era Spinus, o nome de uma “discoteca da [sua] juventude”. Sem conseguir que fossem registados, diz que tentou “fazer uma expressão latina que resultasse”, juntando ambas as hipóteses. “E ficou Spinumviva. Acho que até ficou um nome bonito. Nunca pensei foi que o país todo fosse saber [dele], da maneira como sabe”, brincou o candidato da AD.
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Do ‘striptease’ nos solos aos clientes a conta-gotas. O filme de como a oposição foi “enganada” na Spinumviva
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