“É preciso algum idealismo para que as coisas mudem. Não podemos é viver só no sonho”

Vítor Bento acredita que houve um excesso de voluntarismo nos temas da sustentabilidade, que o pêndulo foi agora para o extremo oposto mas vai chegar ao equilíbrio.

“Acho que se foi longe demais em termos de idealismo, em termos de voluntarismo, e neste momento, o pêndulo foi solto e vai bater no outro lado antes de voltar a caminhar para o centro”, defende Vítor Bento, acerca dos atuais desafios que se colocam hoje em dia às empresas e ao tema da sustentabilidade. Pede que se possa caminhar num equilíbrio entre pragmatismo e idealismo, e que ambos são úteis para o progresso.

Em entrevista ao ECO, o economista e gestor, que é também o Presidente do Júri dos IRGAwards, reflete sobre a instabilidade no comércio internacional, provocada sobretudo pelas políticas imprevisíveis de Donald Trump e desdramatiza: “já vivi períodos muito mais turbulentos do que o atual. Nós já nos esquecemos, mas a década de 70 foi muito mais turbulenta do que a atual”. O momento parece ser de algum recuo da conflitualidade, à medida que os agentes aprendem “códigos de leitura” daquilo que Trump vai dizendo. Para Portugal, Bento acredita que este eventual retrocesso da globalização não será tão agressivo como foi o movimento de abertura comercial nos anos 90, que penalizou muitas empresas nacionais, sobretudo de setores tradicionais.

Sobre o ritmo de adoção de Inteligência Artificial por parte das empresas portuguesas, o responsável lembra que “não estamos na vanguarda da criatividade”, mas “podemos tirar partido na aplicabilidade”. Mas admite que nem todos os que afirmam a utilização da IA o estejam necessariamente a fazer com sentido e impacto: “este tipo de tecnologias, como outras que já foram como estas, é um pouco como o sexo entre adolescentes. Todos dizem que fazem, ninguém sabe como é que se faz, acham que os outros fazem e portanto todos dizem que fazem”.

A edição deste ano dos IRGAwards tem como mote “Embracing evolution, inspiring change“, e é uma iniciativa da Deloitte, com o apoio do ECO.

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Com esta instabilidade, tanto nacional, neste caso política, mas sobretudo internacional, do comércio internacional, não há o risco das energias das empresas serem gastas em reagir àquilo que se está a passar no momento, neste contexto muito volátil, e se perca o foco na transformação de mais longo prazo?

Isso é verdade. Enfim, se bem, por outro lado, se quisermos ser pragmáticos, a regra da vida é a evolução, por um lado, e obviamente a evolução implica sempre mudança. As coisas podem acontecer a um ritmo mais acelerado, a um ritmo mais lento. Nós, neste momento, estamos num período, de facto, de um ritmo muito acelerado em tudo. Inclusive na incerteza, como disse. Embora esta incerteza não seja inédita. Eu já ando cá há muito tempo, já vivi períodos muito mais turbulentos do que o atual. Quer do ponto de vista estritamente económico, quer do ponto de vista político, quer do ponto de vista geopolítico. Nós já nos esquecemos, mas a década de 70 foi muito mais turbulenta do que a atual.

Isto é um clichê o que eu lhe vou dizer, mas todas as crises são oportunidades, e portanto isto gera oportunidades para algumas iniciativas e para alguém explorar novos caminhos. Mas uma parte das energias são dedicadas a adaptar-se ao curso dos acontecimentos e, sobretudo, sendo este curso muito volátil, a adaptação também exige uma flexibilidade muito grande para não se tomar um caminho errado que depois não se possa reverter.

Não é fácil, neste contexto, se pensarmos sobretudo nas medidas do Presidente Trump, perceber que o que é verdade hoje pode não ser amanhã, portanto se calhar decisões muito estruturais vai levar tempo até temos condições de as fazer, não é?

É, e sobretudo há uma coisa que eu acho que também se tem vindo a desenvolver, que é o código de leitura do que vai sendo dito. De início houve muita gente que levou o que era dito no seu sentido literal, e acho que hoje dá para perceber que não é o sentido literal que é para ser levado a sério, é tentar perceber o que é que está por detrás, de que trajetória transacional é que essa literalidade pretende fazer parte.

E isso implica também uma capacidade de interpretar, que eu julgo que é uma das coisas que se tem vindo a desenvolver. Julgo que hoje é claro que aquilo que parecia ser uma grande catástrofe, uma mudança radical, não irá ocorrer nesses termos. Fez parte de uma tática negocial e neste momento estamos nesse processo, estamos no processo da negociação onde também parece claro que o resultado final vai ficar aquém disso. Quão a meio caminho ou não isso é o que falta saber, se é mais próximo da literalidade, se é mais próximo do ponto de partida, mas já se percebeu que se está num processo transacional de negociação e que o resultado há de ficar aquém, em termos da parte negativa, daquilo que chegou a ser expectado.

Aquém da tal mudança terrivelmente estrutural que se chegou a pensar que seria. Aliás, como nós começámos por, inicialmente, não levar nada a sério do que ele dizia, no sentido em que até os próprios apoiantes diziam, ah, ele é assim. Então, primeiro não levámos nada a sério, depois passámos a levar terrivelmente a sério tudo o que ele disse e, se calhar, no meio termo é que estará a verdade…

É claro. Em primeiro lugar, acho que nós devemos sempre levar a sério aquilo que as outras pessoas dizem. Temos é que desenvolver, como disse há pouco, códigos de leitura. Nem toda a gente se exprime da mesma maneira, nem toda a gente se exprime com o mesmo grau de fidelidade às palavras. Há gente que utiliza as palavras como instrumento para produzir determinadas consequências, não necessariamente as literais, mas outras consequências. Toda a gente vai estar num processo de tentar decifrar o código de leitura daquilo que é o discurso do Presidente.

Vítor Bento, presidente da Associação Portuguesa de Bancos, em entrevista ao ECOHugo Amaral/ECO

Ainda ligado a este tema, como é que avalia a exposição da economia portuguesa a este movimento que se tem desenhado que há algum retrocesso no processo de globalização? O que é que isso significa para a economia portuguesa?

Por paradoxal que possa parecer, o que vou referir a seguir é um pouco do mundo das convicções que são formuladas, não é ciência certa, mas é a minha convicção, no fundo baseada numa experiência de muitos anos. Eu acho que Portugal sofreu mais com o grande choque da globalização, nomeadamente nos anos 90. Sofreu mais por várias razões, porque sofreu a concorrência de países distantes que estavam num nível de desenvolvimento mais atrasado e que, portanto, ofereciam condições de competitividade imediata mais vantajosas em termos salariais, em termos de outros custos adicionados, e nós estávamos numa escala tecnológica mais diretamente exposta a essas competências.

Hoje, apesar deste retrocesso da globalização, acho que nós, apesar de tudo, estamos melhor posicionados mesmo para este retrocesso. Por um lado, porque nós beneficiamos da nossa localização, que no passado foi uma desvantagem por sermos muito periféricos, mas hoje nós estamos perto dos centros que precisam de internalizar aquilo que externalizaram para demasiado longe. Os grandes centros, quer a Europa quer os Estados Unidos, estão numa tendência de internalizarem, ou pelo menos de aproximarem as cadeias de abastecimento, as cadeias de valor, para mais próximo da sua sede.

E aí Portugal tem uma centralidade. O facto de estar exatamente a meio caminho dos Estados Unidos e o centro da Europa posiciona-nos nesse ponto. Tem uma vocação atlântica natural e para esse efeito o Atlântico Norte ganha algum interesse. Mesmo nas relações com o Atlântico Sul, Portugal também está muito bem posicionado geograficamente, portanto eu diria que a nossa geografia no contexto atual nos favorece. Desse ponto de vista, eu acho que este choque é para nós menos ameaçador do que foi o choque da externalização de há 40 anos.

Aí também teve muito a ver, de facto, os choques que nós tivemos até foi em setores onde nós estávamos muito concentrados, não é?

Exatamente, é isso mesmo. E nós também evoluímos tecnologicamente. Enfim, nós não estamos na ponta de nenhuma tecnologia, mas já dominamos razoavelmente várias tecnologias e de tal forma que Portugal hoje é utilizado como plataforma, não de criação tecnológica propriamente dita, mas pelo menos de execução tecnológica.

E esta normalização que temos visto nos últimos dias, pelo menos uma suspensão das novas tarifas Estados Unidos-China. Este processo dá alguma acalmia neste sentido? Traz alguma confiança acrescida? Ou ainda é cedo para a gente perceber onde é que isto vai parar?

É cedo para perceber o resultado final, mas já dá para perceber que não havia a intenção, ou se havia, terá sido mal calculada, de fechar de facto o comércio internacional.

Basicamente, aquilo que hoje parece estar em cima da mesa é tentar redefinir os termos e as condições desse comércio em condições que a atual administração dos Estados Unidos considera menos desfavorável para os Estados Unidos. Não vou entrar, digamos, na discussão técnica se são ou não são, mas nestas coisas, nas decisões políticas, as perceções são importantes e, portanto, há a perceção da administração americana de que as condições do comércio internacional lhe são desfavoráveis.

Eu não penso dessa maneira, mas o que eu penso é irrelevante, o que é relevante é para quem toma decisões. Mas julgo também, enfim, que já é percebido neste momento que tentar virar o tabuleiro totalmente ao contrário será muito mais desfavorável do que de outra forma, até porque se os Estados Unidos quiserem resolver o seu défice externo têm que passar por um processo de austeridade de certa forma violento. E isso politicamente é pouco interessante. E sobretudo para quem tem eleições de dois em dois anos.

E para quem foi eleito com determinado programa e determinada promessa de abundância económica e de crescimento. Ter que dizer que durante dois, três, quatro anos vamos ter que passar por esse processo difícil é muito complicado.

Claro, e sobretudo, aquilo que foi a base eleitoral do atual presidente, as massas populares, digamos, mais desfavorecidas, são aquelas que, enquanto consumidores, são os mais diretamente afetados se houver uma escassez de produtos, por um lado, e uma subida considerável do preço desses produtos. Que no fundo foi uma das coisas que ajudou a compensar a estagnação dos salários, foi o ter tido acesso a produtos muito baratos que eram produzidos no Oriente, exatamente, resultando dessa tal globalização. Através da importação de produtos mais baratos foi possível manter um nível de vida, um nível de consumo real mais sustentável dessas camadas da população. Se agora, de repente, isso falta… os primeiros a sofrer mais diretamente é essa base eleitoral e, portanto, isso acabará por ter alguma reconsideração no desenho político.

Como, aliás, em qualquer crise, os mais desfavorecidos são sempre os primeiros naturalmente e os mais afetados. Esta conversa não é sobre a economia americana, embora possa parecer…

A economia americana neste momento, aliás, como sempre, acaba por ter efeito nas nossas economias. Até porque isto contém um contexto muito abrangente. Há de haver os efeitos diretos e depois há de haver os efeitos indiretos. E nós, provavelmente, poderemos sofrer mais pelos efeitos indiretos. Por exemplo, se a Alemanha sofrer muito diretamente, nós, como somos um exportador para a Alemanha, vamos sofrer.

Uma das mudanças recentes tem sido, também impulsionada muito pelo que se passa nos Estados Unidos, alguma reação adversa aos temas da sustentabilidade, nomeadamente na área da inclusão e da diversidade, mas não só, também na questão das energias verdes. Que efeito é que acha que esta tendência pode ter entre as grandes empresas portuguesas?

A política move-se muitas vezes por movimentos pendulares, em que o pêndulo vai para um lado e depois de repente exagera-se e depois vai para o outro lado antes de restabelecer o equilíbrio. Se tiver um pêndulo, se tiver o pêndulo muito inclinado para um lado e se o soltar, ele não vai para o meio, ele vai primeiro para o outro lado antes de depois ir à procura do equilíbrio. E isto é muito o que se passa no mundo político e na vida das sociedades. Por outro lado, também a política, as sociedades, a própria cultura evolui muito numa dicotomia. Eu tendo a olhar muito para a vida, para os grandes desafios, como uma tensão entre dois polos, eu sou muito dialético, há dois polos e, portanto, esses dois polos exercem forças.

Um dos campos onde há muita essa tensão da ação política e mesmo da ação social em geral é entre o idealismo e o pragmatismo. E, portanto, por vezes encosta-se demasiado ao idealismo, esquecendo as condições práticas com que as ideias podem ser postas em prática. Por vezes, algumas ideias, embora tendo o ideal certo, são contraproducentes na forma de execução; por outro lado, há uma visão mais pragmática que tem em conta aquilo que é possível fazer e como é possível fazer.

Obviamente, se nos fixarmos apenas nisso, nós nunca mudamos, ficamos presos ao status quo. É preciso algum idealismo para que as coisas mudem. No fundo, é preciso algum sonho. É preciso um sonho, no fundo, para nos conduzir, mas também não podemos pensar e viver só no sonho.

E, portanto, eu acho que nós estamos um pouco nesse processo, acho que se foi longe demais em termos de idealismo, em termos de voluntarismo, e neste momento, o pêndulo foi solto e vai bater no outro lado antes de voltar a caminhar para o centro, mas o caminho há de ser o caminho certo, a velocidade é que tem que ser ajustada.

Daquilo que me é dado de ver, eu acho que nós não estamos na vanguarda do desenvolvimento e da parte criativa [da IA], mas podemos apanhar o comboio de uma forma muito eficaz.

Vítor Bento

Presidente do Júri dos IRGAwards

Na tecnologia, agora a grande buzzword é a Inteligência Artificial. Do seu conhecimento, como é que avalia a nossa capacidade de adaptação e tirar partido desta grande vaga de expansão tecnológica? Há quem diga que esta é uma das vagas em que nós podemos apanhar, ao contrário de outras, como a Revolução Industrial, em que não tínhamos as condições certas para o fazer, que esta nós podemos estar mais bem preparados para tirar partido. Parece-lhe que é assim?

Vamos ver. Em primeiro lugar, nós, tanto quanto eu sei, nós em Portugal, não estamos na vanguarda da criatividade. Nós podemos tirar partido na aplicabilidade. E isso aí, a partir do momento em que estas tecnologias, no fundo, se expandem muito depressa e são facilmente transmissíveis, são expansíveis, e o mundo digital é um mundo que se permite expandir muito rapidamente, no fundo, o espaço deixa de ser um elemento diferenciador.

Nós podemos fazer o catching up rapidamente, até porque não implica destruir nada de substancial pelo caminho, nós podemos fazer isso. Agora, daquilo que me é dado de ver, eu acho que nós não estamos na vanguarda do desenvolvimento e da parte criativa, mas podemos apanhar o comboio de uma forma muito eficaz.

Vê as empresas despertas para este tema e para os benefícios que este tipo de tecnologia pode trazer no seu dia-a-dia? Ou ainda estamos numa fase em que fica bem dizer que se tem Inteligência Artificial?

Quando há estas grandes transformações, sobretudo estas no mundo digital, eu recordo-me sempre, e já repeti isto em outras ocasiões, não me lembro bem da história, repito sempre uma história que ouvi a alguém, que este tipo de tecnologias, como outras que já foram como estas, é um pouco como o sexo entre adolescentes. Todos dizem que fazem, ninguém sabe como é que se faz, acham que os outros fazem e portanto todos dizem que fazem. Basicamente acho que estamos um pouco numa situação parecida como essa, fica mal alguém dizer que não está a utilizar. Há de haver umas empresas que estão mais avançadas do que outras, mas a própria concorrência vai ser um elemento, vai ser um dos aguilhões que as vai obrigar a ajustar-se num determinado setor nacional ou da concorrência internacional.

Se houver alguém que tira uma vantagem muito significativa dessas novas tecnologias, os outros ou acompanham ou ficam pelo caminho.

E, hoje em dia, este resultado é muito rápido. No passado, você podia manter duas tecnologias de idades diferentes, mas a conviver durante muito tempo, hoje já não pode.

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