Chega. Um café e um very-light

O PSD é o pivot na bifurcação da democracia portuguesa. Os partidos do arco da governação não quiseram tocar na vida dos portugueses nem com a ponta dos dedos.

Há uns anos em Portugal a música popular não existia. A música do povo e das feiras era um fenómeno menor de um país atrasado, pobre, sem educação. O folclore era fascista e fazia mal à vista. O fado era foleiro e marginal. A música popular era o ruído do carrossel e animava as corridas dos carrinhos de choque em circuito fechado. As elites burguesas, democráticas, progressistas, idolatravam a música de intervenção como banda sonora da resistência anti-fascista. A música de Abril era a música de um Portugal amordaçado que a democracia salvou e colocou na órbita da Europa e no registo da civilização. As elites democráticas regressadas do exílio ou dos empregos de privilégio colocavam o cancioneiro revolucionário ao nível do catecismo de Abril. A grande noite fascista era escura, obscurantista, reaccionária, filistina. Só os progressistas eram os intérpretes de Abril. Aprende a nadar companheiro que a liberdade está a passar por aqui. E aqui é o Portugal democrático.

Subitamente explode a música pimba na sua excelente vulgaridade, banalidade, humor de café, trejeitos eróticos. A cassete pirata torna-se a expressão genuína de um espírito português e de uma cultura popular que despreza a política e os políticos e que só pretende subir na vida porque um passado de necessidade e de pobreza não são compatíveis com uma democracia avançada no limiar do século XXI. Os políticos nas eleições transformaram as campanhas eleitorais em festivais pimba permanentes de norte a sul, mantendo sempre o povo à distância porque se a República é democrática, a democracia continua a apreciar a distância e o respeito. Nestes episódios o discurso do povo ecoava a melodia de sempre – pois que os políticos são todos iguais, pois que os políticos são todos corruptos, pois que o país não tem segurança, pois que os ciganos vivem dos subsídios, pois que os imigrantes são donos de Portugal e os portugueses são os esquecidos do Regime. O dinheiro não chega ao fim do mês e o fim do mês é cada vez mais curto.

Os grandes partidos do Regime entretidos com jogos políticos, ambições pessoais e animados pela superioridade moral de uma elite democrática nascida da legitimidade revolucionária de Abril ouviam sem ouvir a mensagem do povo. O povo que devora o Correio da Manhã na barbearia. O povo que gasta os olhos no écran da televisão do Correio da Manhã. O que faltava no futuro da política democrática nacional era precisamente um partido Correio da Manhã – popular, populista, a voz de um Portugal esquecido para além de todas as ideologias. Na correspondência com a sociologia da nação, o Chega explode no coração da democracia e a República fica perplexa no labirinto da crise criada pelo Regime.

A democracia portuguesa devolvida ao engano da normalidade discute alianças e coligações, arranjos e acordos, governos e oposições, linhas vermelhas e chuva de prata, para fazer uma pausa em desespero na revisão constitucional. Em completo negacionismo, continua a faltar a política, a coragem e a lucidez da política. A humilhação do PS é o símbolo de uma República derrotada. A ascensão do Chega é a consagração democrática de uma nova ideia de República renovada e reciclada para os tempos modernos em que a pós-verdade é toda a verdade que domina o espaço público. A devastação da esquerda é um sinal dos tempos que a esquerda não compreende nem tem os instrumentos políticos para compreender. A esquerda que se julgava hegemónica tornou-se preconceituosa, preguiçosa, adoptou uma ideia do mundo que não é um filme em movimento mas um retrato parado. Um retrato parado no Portugal esquecido e abandonado pelas promessas de Abril. Um retrato parado no subúrbio das grandes cidades – a selva urbana, o inferno habitado, as camas alugadas por turnos, a pobreza triste, os horizontes tapados por grafitis coloridos.

O Chega pretende a hegemonia à direita. O Chega não está interessado no bipartidarismo ou no tripartidarismo. O Chega quer ser maioritariamente o partido único. O Chega introduz na política nacional o ódio institucionalizado à esquerda, não há qualquer ideia de pluralismo ou de alternância. O Chega representa o regresso da matriz amigo-inimigo à política democrática que deixa assim de ser simplesmente democrática. A erradicação da esquerda é o seu propósito, a absorção de toda a direita o seu desígnio.

A própria estruturação da divisão política entre esquerda e direita é posta em causa. Ser de direita é ser do Chega, não existe alternativa. O Chega introduz na política portuguesa uma outra dicotomia política absolutamente decisiva – a divisão da política entre radicais e moderados. As duas dicotomias não coincidem, pois existe uma zona cinzenta de transgressão entre direita-esquerda e radicais-moderados. Para o Chega, o eixo liminar da política é a distinção entre moderados e radicais. Por esta razão, toda a direita moderada é um obstáculo e uma traição à salvação nacional. Mas o Chega reflecte ainda um outro eixo vertical ao espaço social da política – a distinção entre os de cima e os de baixo. Este eixo justifica a linguagem, as maneiras, a vulgaridade, a agressividade de uma discussão num qualquer café de Portugal.

O PSD é o pivot nesta bifurcação da democracia portuguesa. Os partidos do arco da governação não quiseram tocar na vida dos portugueses nem com a ponta dos dedos.

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