
A oportunidade para expurgar o socialismo da Constituição
A Constituição não deve ser um altar ideológico, mas uma base sólida e neutra sobre a qual se constrói o futuro. O Estado não deve continuar a privilegiar visões políticas herdadas do século passado.
Depois de quase uma década a dominar o poder político em Portugal, o Partido Socialista sofreu, nas legislativas de 2025, aquilo que só se pode descrever como uma humilhação eleitoral. Pedro Nuno Santos — o orgulhoso criador da “geringonça” — símbolo de uma governação marcada pela arrogância e pela certeza de que o PS era dono do país, caiu com estrondo. Fernando Medina, Mariana Vieira da Silva, Ana Catarina Mendes, entre outros, talvez por lucidez ou puro instinto de sobrevivência, preferiram manter-se longe da luta pela liderança. O PS está de rastos — e a democracia portuguesa só tem a ganhar com isso. Ao contrário das habituais lamúrias sobre a “necessidade de uma oposição forte e responsável”, a verdade é que, depois de anos(!) de domínio absoluto — em que o PS legislava à vontade, distribuía cargos como quem premeia lealdades e abafava qualquer tentativa de alternativa política — um PS fraco sabe bem, mesmo bem! Um partido sem ideias novas, sem figuras com peso nacional e sem capacidade de renovar o seu discurso político não é, neste momento, essencial ao funcionamento da democracia. Pelo contrário: a sua ausência cria finalmente espaço para respirar, debater, reformar.
Neste contexto de ruínas internas, o nome que cedo emergiu para suceder a Pedro Nuno Santos é o de José Luís Carneiro. Para quem está fora da bolha política, o nome pouco diz. E mesmo dentro do PS, são poucos os que o vêem como alguém capaz de reerguer o partido com força e visão. Carneiro é o epítome do “pãozinho sem sal” da política portuguesa: presença discreta, discurso monótono, imagem pálida. Soma-se a isso um forte sotaque do Norte — que, embora absolutamente legítimo, contribui para o seu distanciamento da bolha mediática lisboeta e, por isso, quer queiramos assumir ou não, dificulta a sua projeção nacional. Não aquece nem arrefece. Mas talvez seja justamente por isso que pode vir a ser útil… para manter o PS irrelevante; pelo menos durante uns dois anos. Para o governo da Aliança Democrática, liderado por Luís Montenegro, este é o melhor cenário possível. Uma oposição sem energia, sem narrativa alternativa e com liderança pouco mobilizadora permite uma governação mais tranquila, mais focada e menos condicionada pela tensão permanente a que o PS habituou o país. É uma oportunidade rara de estabilidade e de reconstrução nacional — não apenas no plano económico, mas também no institucional.
E aqui entra a questão central: a revisão da Constituição da República Portuguesa. Pela primeira vez em cinco décadas, a esquerda não tem os votos suficientes para bloquear alterações estruturais necessárias. O momento político é, portanto, propício a uma reforma profunda — e há um elemento que salta imediatamente à vista: a presença da palavra “socialismo” no preâmbulo e noutros trechos do texto constitucional. Essa referência ideológica, herdada diretamente do PREC e do contexto revolucionário de 1975, está hoje completamente desfasada da realidade portuguesa. O país mudou — é democrático, plural, integrado na União Europeia, com uma economia aberta e uma sociedade civil robusta. Manter a Constituição amarrada a um projeto político específico, como o “socialismo”, é uma distorção democrática e um anacronismo jurídico.
Importa sublinhar: rever este ponto da Constituição não é apagar a História. O papel do 25 de Abril de 1974 está garantido na memória coletiva dos mais antigos e, claro está, nos livros de História. O que se pretende é separar o plano da memória do plano jurídico. A Constituição deve ser de todos, representar todos e permitir todas as alternativas dentro dos marcos democráticos. Não deve ser um manifesto político congelado no tempo. A permanência do “socialismo” na Constituição portuguesa é hoje uma exceção entre os regimes democráticos da Europa. Nenhum outro país da União Europeia ancora a sua Lei Fundamental a uma ideologia específica. Nem mesmo a Constituição espanhola, redigida numa transição pós-Franco igualmente sensível, cometeu esse erro. Portugal deve, finalmente, deixar de ser o parente ideológico excêntrico da democracia europeia. Mais do que simbólico, este detalhe tem efeitos reais: influencia interpretações constitucionais, condiciona políticas públicas, determina um elevado grau de intervenção do estado na economia e acaba por funcionar como filtro ideológico silencioso sobre decisões do Estado. Não é neutro, nem inocente. É uma marca que já não corresponde ao país que somos — e muito menos ao país que queremos construir. A revisão constitucional deve, por isso, libertar a Lei Fundamental das heranças ideológicas do passado. Deve centrar-se em valores permanentes e consensuais: a democracia representativa, o Estado de Direito, os direitos e liberdades fundamentais, a justiça social, a separação de poderes. Tudo o resto — incluindo projetos económicos ou sociais específicos — deve ser deixado ao debate democrático e às escolhas eleitorais. Uma Constituição não é um programa de governo. É a moldura dentro da qual todos os programas devem caber.
Este é o momento ideal. Com um PS em estado de paralisia estratégica, potencialmente entregue a um líder sem força transformadora, e com uma maioria política de direita capaz de agir, Luís Montenegro tem a oportunidade histórica de liderar esta reforma. Rever a Constituição é um passo de coragem política. Remover a palavra “socialismo” é um passo de sanidade democrática. E fazê-lo agora — com legitimidade, tempo e estabilidade — é simplesmente lógico. A democracia portuguesa não precisa de ser protegida contra reformas; precisa, isso sim, de ser libertada de textos em grande medida ultrapassados.
A Constituição não deve ser um altar ideológico, mas uma base sólida e neutra sobre a qual se constrói o futuro. O Estado não deve continuar a privilegiar visões políticas herdadas do século passado. Mas afinal, quando é que “morre” o 25 de Abril? Já tem 51 anos — teremos de esperar que atinja a esperança média de vida à nascença em Portugal aos 81 anos para que tudo deixe, finalmente, de girar à sua volta? A Constituição deve garantir espaço para todos — e assumir uma posição de equidistância ideológica que respeite verdadeiramente o pluralismo democrático. Se for José Luís Carneiro a conduzir o PS nesta travessia no deserto, tanto melhor para o país. Um figurante onde antes havia figurões. Um interlúdio sereno onde antes havia ruído e bloqueio. E enquanto o PS se reorganiza — ou se reinventa —, Portugal pode avançar. Com reformas. Com clareza. Com uma Constituição finalmente à altura do tempo que vivemos.
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