Gente do passado

Retrato da aristocracia russa nos tempos soviéticos. Uma tribo perdida, que julgávamos ter sido extinta em 1917.

É com espanto que lemos, nas páginas de “Os Anjos de Apolo – Uma História do Ballet”, de Jennifer Homans (já agora, a mulher e viúva do historiador Tony Judt), que em finais da década de 80 do século XVIII o conde Nikolai P. Sheremetev, um dos homens mais ricos da Rússia, era proprietário de um milhão de servos. Repetimos: um milhão de servos. É muita gente.

Não tanta assim, mas apesar de tudo numerosa, era a “gente do passado”. Nas vésperas da Grande Guerra, perfaziam 1% da população russa, ou seja, 1,9 milhões de pessoas; na capital imperial, constituíam 7% dos residentes, um número significativo. Oitocentas e trinta famílias com títulos de príncipes, condes e barões, das quais 40 famílias ostentavam o título mais elevado, o de príncipe, descendendo da família real da Rússia de Kiev, o clã de Ruriz, segundo reza a história – e a lenda.

Há um livro de Douglas Smith com aquele título, “Gente do Passado – Os Últimos Dias da Aristocracia Russa”, editado entre nós em 2013 pela Temas e Debates – Círculo de Leitores. Como o subtítulo indica, trata-se de uma obra que trata da nobreza russa nos tempos finais dos czares, ou seja, que não aborda em profundidade o período da Revolução e, menos ainda, a era de Estaline. É esse o tema deste livro de Sofia Tchouikina, antiga aluna da Universidade Europeia de Sampetersburgo e actualmente professora em Paris VIII Vincennes-Saint Denis e investigadora do Institut des Sciences sociales du Politique.

Traduzido do russo para o francês, com prefácio de Nicolas Werh, “Les gens d’autrefois – La noblesse russe dans la société soviétique” (Éditions Belin, 2017) é uma obra fascinante. Desde logo, a começar pelo tema ou, se quisermos, pelas perplexidades que suscita: como viveria a antiga aristocracia numa sociedade que se proclamava igualitária e rejeitava ferozmente os privilégios de sangue? Mais ainda, ficou alguém da velha nobreza na União Soviética de Estaline? Não fugiram todos, como John, o chauffeur russo celebrizado num esquecido romance de Max du Veuzit?
Não, nem todos fugiram para Paris. Muitos ficaram no Leste, sendo conhecidos justamente como “gente do passado”, “byvchie” na terminologia oficial soviética.

O seu declínio, é certo, vinha de trás, sendo muito anterior à Revolução de Outubro e à instauração do socialismo bolchevique. Começara com a acção modernizadora de Pedro, o Grande – que, entre o mais, obrigou os nobres a darem uma educação ocidental aos filhos –, sendo prosseguido por Catarina II e seus sucessores. Ainda assim, em 1917 a nobreza detinha a esmagadora maioria dos grandes cargos do Estado, representando 90% dos altos funcionários e dos ministros e 97% dos governadores provinciais.

Outra estatística curiosa demonstra que, nas vésperas da Revolução, a nobreza russa, ao contrário do que se poderia pensar, vivia em estreita ligação ao Estado ou à terra: 60% dos aristocratas eram funcionários públicos ou proprietários e apenas 40% exerciam profissões liberais. Talvez essa ligação ao Estado explique, ao menos em parte, o que sucedeu depois na sociedade soviética e, em boa medida, o que ainda hoje acontece na Rússia de Vladimir Putin.

O livro de Sofia Tchouikina abre com uma pequena, mas ilustrativa história. Leninegrado, anos 1930. Uma mulher entra num eléctrico. Empurrada por outra passageira, exclama: “És alguma duquesa, ou quê?”. Resposta rápida: “de facto, não sou duquesa. Sou princesa”, confissão que suscita uma gargalhada geral entre os passageiros do eléctrico. Uma princesa a andar em transportes públicos em Leninegrado, misturada com a plebe, é talvez a melhor forma de mostrar até que ponto a aristocracia teve de se adaptar ao tempo novo. Muitos “russos brancos” foram dizimados na guerra civil, e mais tarde relativamente bem tratados por alturas da Nova Política Económica, quando foi necessário recorrer a pessoas qualificadas para apoiar a reorientação estratégica promovida por Lenine em 1921-1922.

Chamavam-lhes “especialistas burgueses” (os “spetzy”), mesmo que de burgueses pouco ou nada tivessem, mas enfim… Muitos aristocratas conseguiram conservar algumas propriedades, mostrando o livro de Tchouikina uma surpreendente fotografia da elegante Nina Kreisler no seu sumptuoso apartamento em Leninegrado, deitada languidamente sobre a pele de um urso negro, uma imagem que julgávamos ser impensável na Rússia dos bolcheviques.

Com a ascensão ao poder de Estaline e o Grande Terror, as coisas endureceram – para todos, não especialmente para os velhos aristocratas. Estes tiveram, como é óbvio, de abandonar a ostentação dos títulos nobiliárquicos e de antigos privilégios, mergulhando numa prudente semiclandestinidade. Empregaram-se como tradutores ou intérpretes graças aos seus conhecimentos de línguas estrangeiras.

Alguns fizeram carreira no teatro e na dança, na jardinagem, nas belas-artes. No fundo, agarram-se ao melhor que tinham, a educação recebida no tempo dos czares, em colégios reservados aos meninos de sangue azul. Outros, sobretudo mulheres, foram trabalhar em museus e galerias de arte, uma vez mais devido à educação e ao bom gosto que haviam herdado. De uma forma discretíssima, mantiveram hábitos endogâmicos, reunindo-se nas casas uns dos outros. Alguns deles, não muitos, aderiram ao novo regime, por crença ideológica ou simples oportunismo. E quando o sinistro Lavrenti Béria necessitou de técnicos e de pessoal qualificado para os seus programas desenvolvimentistas, de novo regressou à ribalta a “gente do passado”.

Como assinala Nicolas Werth no prefácio a este livro, em detrimento das “grandes narrativas”, Sofia Tchouikina optou pela história social, baseando-se não apenas num gigantesco trabalho de arquivo, mas também em entrevistas a alguns descendentes dos velhos aristocratas nascidos antes de 1918 (essas entrevistas, convém referi-lo, foram realizadas nos anos 1990, não actualmente).

A parte final deste livro contém dezenas de histórias de vida interessantíssimas, muitas delas trágicas, à boa maneira russa, outras horríveis, ao cruel jeito do estalinismo. É fascinante ver a tentativa feita para, no seio de uma sociedade opressora e fechada, transmitir aos filhos a educação recebida do passado, procurando conservar-se o culto das “boas maneiras”, as tradições pré-revolucionárias (como, por exemplo, os “espectáculos familiares”), o contacto com os pares de brasão e sangue azul.

O livro, infelizmente, dá pouco ou nenhum relevo aos emigrados russos. No entanto, esta lacuna explica-se com facilidade: Sofia Tchouikina preocupou-se acima de tudo com os que ficaram na União Soviética, atravessando exílios interiores e ameaças constantes. Para alguns aristocratas, diz Tchouikina, a adesão à nova ordem bolchevique tinha uma razão de ser: Lenine e Trotsky traziam a “ordem” após anos de guerra, de revolução, de guerras civis e de caos. A estes, chama a autora os que “ficaram por lealdade”. Outros permaneceram “por apatia”; no fundo, por serem incapazes de romper com o passado, com as suas raízes, os sítios onde nasceram e cresceram, a língua e a cultura em que foram educados.

Nesse mundo perdido, a Rússia dos czares, os nobres eram isentos do imposto de capitação, da prestação de trabalhos públicos de interesse geral, do serviço militar e da punição com castigos corporais. Tinham o direito de entrar na função pública com precedência sobre os demais candidatos e, uma vez lá, a sua carreira progredia mais rapidamente do que a do comum dos mortais. Tinham o direito de viajar e residir no estrangeiro e o direito de serem julgados em foro privado, pelos seus pares. Muito mais importante do que o direito de usar brasão ou apelidos sonantes era o direito exclusivo, apenas partilhado com a família imperial e com o Estado, de ser dono de propriedades com servos, implacavelmente agarrados à terra, como se de árvores se tratassem.

Os servos não eram remunerados e efectuavam os trabalhos agrícolas, além de tarefas domésticas, sendo criados das grandes casas dos aristocratas (a dada altura, um toque de sofisticação era ter uma casa com mezanino). Podiam ser trocados ou vendidos, como se fossem escravos. Tudo isso acabou ainda nos tempos dos czares. Melhor dizendo, acabou o comércio dos servos, que deu mote ao extraordinário “Almas Mortas”, de Nicolai Gogol.

Em finais do século XIX, o seu domínio do aparelho de Estado era flagrante: ocupavam 71,6% dos lugares de topo na administração pública. E, quanto às estruturas de governo, chamavam a si 98% dos lugares no Conselho de Estado, 100% do Conselho de Ministros, 88% do Senado, 84% dos secretários de Estado, 100% dos governadores e 94% dos vice-governadores provinciais.

No estertor do regime czarista, a situação começara a mudar. A Grande Guerra acelerou a derrocada, a Revolução de 1917 deu o golpe final na “gente do passado”. Ou talvez não, como o demonstra Sofia Tchouikina neste admirável livro.

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