Gente de palmo e meio
Um livro que conta passo a passo, em pequenos passados, a saga da família Ovitz, os anões de Auschwitz.
Já uma revista portuguesa falou deles, mas a família Ovitz, por ser tão grande e tão pequena ao mesmo tempo, teve um destino tão extraordinário que merece ser recordado nesta rubrica «Biblioteca».
Para mais, sobre os Ovitz há um livro não menos extraordinário, que se destaca entre os milhares e milhares que existem sobre o Holocausto. Não é, obviamente, o livro mais informado, nem mais informativo, que podemos ler sobre a Solução Final. Mas é, seguramente, dos que, abordando um aspecto circunscrito e – literalmente – «menor», nos permite apreender de perto como era o dia-a-dia nos campos de extermínio, os anseios e as agruras permanentes, a presença constante da morte, do terrível fim nas câmaras de gás. “Giants – The Dwarfs of Auschwitz – The Extraordinary True Story of the Lilliput Troupe”, de Yehuda Koran e Eilat Negev, conta, passo a passo, em pequenos passos, a história dos irmãos Ovitz.
Os anões sempre suscitaram a curiosidade enternecida, por vezes mórbida, das gentes de toda a parte. Agora o mais politicamente correcto é chamar-lhes “pessoas pequenas” (small people), mas enfim… Enfim, todos nos recordamos das telas de Velásquez, dos bobos da corte e favoritos de reis e rainhas, animais amestrados para deleite de princesas.
Enquanto os gigantes sempre foram vistos como seres geralmente pouco inteligentes, feitos apenas de músculos e força hercúlea, os anões eram encarados, sobretudo pela tradição judaica, talvez inspirada na história de David e Golias, como pessoas astutas e de arguto engenho. Por vezes, é certo, seres pérfidos e cruéis, como a personagem doutro extraordinário livro, “O Anão”, de Pär Lagerkvist, diário de um monstro intriguista e vil numa sumptuosa corte italiana da Renascença.
A edição portuguesa mais recente desse livro de Lagerkvist (que, para quem não saiba, foi galardoado com o Nobel em 1951) foi feita pela Antígona em 2013 – e encontra-se disponível e à venda, senhores potenciais leitores.
O fascínio pelos anões perdura nos nossos dias. Ainda há pouco foi notícia que o empresário chinês Chen Mingjing inaugurou o Reino das Pessoas Pequenas, um parque temático dedicado aos anões ou, melhor dizendo, onde só trabalham anões, os bobos da corte contemporâneos.
O projecto causou controvérsia e mereceu violenta crítica de várias organizações de defesa dos direitos humanos, com os mesmos argumentos que, há alguns anos, levaram o nosso Provedor de Justiça a increpar a prática de lançamento de anões, na altura muito em voga por terras minhotas.
A ideia de Mingjing, todavia, não é nova ou sequer original. Entre 1904 e 1911, existiu em Coney Island, Brooklyn, NYC, um fantástico parque de diversões, «Dreamland», que entre canais venezianos com gôndolas e outras palermices, exibia a “Lilliputian Village”, onde deambulavam mais de 300 anões. Ao contrário dos «monstros» ou seres bizarros que povoaram o imaginário popular de muitos séculos, com destaque para os finais de Oitocentos e princípios de Novecentos, e que eram considerados “mirabilia monstrorum”, os anões, assevera o livro sobre a família Ovitz, eram vistos como “mirabilia hominum”, ou seja, “maravilhas humanas”. Caricaturados e alvo de troça, é certo, mas encarados, não como monstros horríveis, mas como homens e mulheres em miniatura. Para quem duvide, veja-se a fantástica colecção de fotografias de Claude Ribouillault, que está patente em Arles, França, até 24 de Setembro.
Talvez seja isso que explique o tremendo sucesso que os Ovitz tiveram no teatro de vaudeville e o êxito da sua “Lilliput Troupe”. O livro de Koran e Negev é fascinante pois descreve a genealogia dos Ovitz, os antecedentes genéticos do seu nanismo, a sucessão de nascimentos de anões nos confins da Transilvânia, até formarem uma família algo estranha mas feliz e, sobretudo, unida como uma rocha. O pai, Shimson, era um rabi itinerante e também um comediante, sendo essa, porventura, a razão pela qual os filhos seguiram carreira no piccolo mondo do espectáculo de variedades.
Shimson era anão, facto que não o impediu de casar duas vezes com mulheres de estatura mediana. Dos dois casamentos nasceram dez filhos, dos quais sete eram anões. Rozika, Franzika, Avram, Freida, Micki, Elizabeth e Piroska, também conhecida por «Pearl». Anões e não-anões viviam juntos, tranquila e pacatamente numa vilória da Roménia profunda. A casa, naturalmente, foi adaptada para os mais pequenos, com bancos e utensílios de cozinha em tamanho-júnior, retretes que impediam os anões de terem um trágico e nauseabundo desfecho.
Os Ovitz eram judeus – e isso quase os conduziu a um trágico e nauseabundo desfecho. Mas, antes de falarmos de tragédias, uma informação para o Guinness: com sete irmãos de reduzida estatura, os Ovitz são a mais numerosa família de anões conhecida na História da Humanidade. Não admira, pois, que, seguindo as pisadas do pai, tenham decidido criar um grupo teatral e musical, que percorreu o centro da Europa, com enorme sucesso, na década de 1920. A Lilliput Troupe.
Em todas as ocasiões da vida – e o livro de Koren e Negev não se cansa de salientar esse facto –, os Ovitz permaneceram fiéis ao ensinamento materno: “nas horas difíceis, nunca se separem. Mantenham-se unidos, olhem uns pelos outros, e vivam uns para os outros”. Assim foi, durante décadas, quer sob as luzes dos palcos dos teatros, quer nas trevas fundas de Auschwitz-Birkenau.
Os Ovitz mantiveram-se unidos, anões e não-anões, até chegarem à sinistra rampa onde Josef Mengele procedia à selecção dos eleitos para as suas horríveis experiências. Mengele cedo se afeiçoou àquela colecção única de anões, a quem foram concedidos privilégios com que os outros presos de Auschwitz jamais poderiam sonhar. Mas, em contrapartida, os Ovitz foram alvo de humilhações grotescas e, pior ainda, de experiências pseudocientíficas inimagináveis, que o livro descreve ao mais ínfimo pormenor.
“Giants” não é, contudo, uma obra macabra nem cede ao voyeurismo do horror. Pelo contrário, o que dela emana é uma mensagem profunda e comovente de humanidade e esperança. De todas as famílias que atravessaram os portões de Auschwitz-Birkenau, os Ovitz foram a mais numerosa a conseguir sobreviver. O que, para uma família de gente pequena, não é um pequeno feito.
Depois da guerra, os dramas prosseguiram; a descrição dos dias e semanas subsequentes à libertação é particularmente dura, pois muitos continuaram a morrer, de fome e de frio, de cansaço e doença. Os Ovitz sobreviveram; reencontraram os irmãos ou cunhados perdidos, refizeram o seu grupo teatral, acabaram em Israel, com algum sucesso – mas a tristeza eterna de quem passou dias mergulhado no coração das trevas. Um livro para pensar.
Nota: Por decisão pessoal, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico
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