Com o mundo nos punhos
Entre os grandes mistérios nacionais, da Estrada de Sintra aos fenómenos do Entroncamento, a ausência de uma tradução portuguesa deste livro.
Aretha, Aretha Franklin. A música dela era a talvez a única coisa que os unia, em tudo o resto diferentes, preparando-se para combaterem um com o outro tendo a morte no olhar – e como desfecho possível dessa luta de titãs. De acordo com as suas memórias (“Sou o Maior”, uma inenarrável edição e tradução da Portugália), Muhammad Ali tinha espiões para observarem o treino de George Foreman (e vice-versa), feito ao som de “Precious Lord”, cantado na voz de Aretha Franklin. “Aretha Franklin talvez seja a única coisa que George e eu tenhamos em comum”, disse Muhammad, nosso profeta, nascido em 1942 e falecido nos 2016.
Preparava-se um dos mais lendários combates de boxe de todos os tempos. Ficou conhecido para a História Universal como “The Rumble in the Jungle” (qualquer coisa como “Pancada na Selva”, ou mesmo “Porrada na Selva”), sendo travado sob um calor intenso, sufocante, em Kinshasa, no Zaire, actual República Democrática (ahahahah) do Congo. Como muito do que acontece no mundo do boxe (e no desporto de alta tracção em geral), a razão para a escolha de África como ringue de combate foi uma, só uma: dinheiro. O presidente Mobutu ofereceu milhões para ser o anfitrião desta luta épica, antecedida de uma orgia musical que durou quatro dias.
O excêntrico e pérfido Don King, na altura a dar os primeiros passos na sua aparatosa carreira de empresário de boxe, aceitou avidamente a generosa oferenda presidencial. Com cada pugilista a reclamar para si 5 milhões de dólares, os valores envolvidos, como é óbvio, estavam a quilómetros de distância dos que marcaram, há poucas semanas, o KO técnico de Floyd Mayweather a Conor McGregor, sendo discutível se aquilo que se passou em Las Vegas, no passado Agosto, foi um verdadeiro combate de boxe. Gostando-se ou não da modalidade, o pugilismo é uma arte inconfundível, a ponto de Joyce Carol Oates ter escrito, num ensaio clássico sobre o tema, muito ao gosto de intelectuais de bancada, que “a vida é semelhante ao boxe em muitos aspectos. Mas o boxe só se parece com o boxe” (“On Boxing”, 1987, trad. portuguesa: “O Boxe”, Edições 70, 1990). E foi boxe, puríssimo, o que aconteceu em Kinshasa, disso ninguém duvida.
Norman Kingsley Mailer esteve lá, no coração das trevas. Polímato, multifacetado, Mailer foi jornalista, romancista, actor, cineasta, dramaturgo, ensaísta, argumentista, biógrafo de Marylin e de Lee Oswald, activista político. Ganhou o Pulitzer em 1979 e morreu em 2007, aos 84 anos. Como refere a Wikipedia – e bem –, Norman foi, juntamente com monstros sagrados como Truman Capote, Joan Didion, Hunter S. Thompson e Tom Wolfe, um dos responsáveis pelo “New Journalism” ou, se quisermos, por uma revolução no campo da “não-ficção criativa”, oxímoro delicioso. Talvez “The Fight”, de 1975, seja o exemplo mais conseguido desta escola de escrita, revelando-se a maestria de Mailer em cada parágrafo, em cada frase seca e curta, incisiva como um murro no estômago.
Além do narrador-sedutor, emerge nas entrelinhas o jornalista de mão cheia e punho cerrado, atento aos pormenores, com pés assentes na terra que escalda e mói, que só deixa a poesia pairar na atmosfera etérea quando tal é imprescindível para manter o ritmo da prosa enleante, que nos agarra e encosta às cordas.
Muhammad Ali utilizou a mesma técnica suicidária para receber os golpes letais de Foreman, usando as cordas em sua mais do que legítima defesa. Mailer, que aparece no livro com o seu primeiro nome, “Norman”, recorrendo ao estratagema clássico do ileísmo (sim, vão à Wikipedia ver o que é), acompanhou Muhammad desde os seus treinos espartanos em Deer Lake, na Pensilvânia.
O livro tem 239 páginas e até ao fim mantém-se o suspense sobre quem foi o vencedor da contenda (se não sabem, não vão à Wikipedia ver quem foi antes de lerem “The Fight”). Foreman, campeão antecipado, levava muitos pontos de avanço, sendo mais alto e mais novo e mais forte do que um Muhammad Ali recém-regressado aos ringues após três anos de paragem forçada por se ter recusado a cumprir serviço militar no Vietname.
Esse gesto de rebeldia foi, decerto, um dos motivos do fascínio do autor de “Os Nus e os Mortos” pela figura do pugilista-que-outrora-se-chamava-Cassius-Marcellus-Clay-Jr. No entanto, e aqui se revela o seu engenho e perícia de mão, Mailer não menosprezava Foreman, longe disso. Pelo contrário, enaltece a sua raça para além do que é natural e até sobrenatural, apresentando a luta africana como uma disputa de David e Golias.
Quase parecia uma refrega Super-Homem versus Muhammad Ali, como aquele que deu azo a uma banda desenhada de Superman, a qual termina com os dois super-heróis super-reconciliados, masturbando-se reciprocamente com Ali a dizer para o colega cósmico: “Super-Homem… NÓS somos os Maiores!”
De caminho, rumo à vitória, o boxe visto dos balneários, com Mailer integrado de pleno, mas de olhos bem abertos, na equipa de Ali, capitaneada pelo mítico Drew Bundini Brown. Tudo entra na narrativa, desde os detalhes mais ínfimos até às questões mais relevantes e decisivas, como a do eterno debate teológico sobre as vantagens e malefícios (corporais e espirituais) da frenética actividade sexual dos atletas nas semanas ou dias anteriores à da entrada em campo.
O que será, porventura, o maior feito de Norman Mailer foi ter conseguido aliar um relato preciso dos factos, rigoroso ao milésimo de segundo, com passagens grandiloquentes e quase místicas, que doutro modo pareceriam um arrazoado de filosofia barata, como aquela em que Muhammad Ali era fértil nas suas declarações à imprensa, a que acresciam as gabarolices típicas de quem quer irritar a fera adversária, perturbando-lhe a paz de espírito: “Para este combate tentei algumas coisas novas. Lutei com um jacaré. Andei à porrada com uma baleia. Algemei um relâmpago e mandei o trovão para a prisão. É mau! Na semana passada assassinei uma rocha, feri uma pedra e mandei um tijolo para o hospital. Sou tão mau que faço os medicamentos ficarem doentes”, disse Ali aos jornalistas pouco antes de entrar em combate, sob fogo real.
É de frases como aquelas que se construiu a lenda de Muhammad Ali, tornando-o indubitavelmente “O Maior”, mesmo quando era derrotado em sangue (e não, não vou acrescentar o previsível churchilliano “suor e lágrimas”). Comparado a ele, Mike Tyson, mesmo mordendo orelhas adversárias, não passa de um menino arruaceiro, de calção e bibe.
Ao fim de dez assaltos, o combate terminou sob uma tremenda tempestade. Muhammad Ali bem dissera que tinha algemado um raio e mandado um trovão para a prisão. Soltou-nos naquela noite de antologia, 30 de Outubro de 1974, perante 80 mil pessoas no Estádio 20 de Maio e milhões de telespectadores em todo o mundo. A luta está no YouTube, para quem a quiser ver; mas, antes disso, leia “The Fight”, de uma ponta à outra. E, após a leitura, sendo então um cidadão mais informado e esclarecido, reclame, exija, grite a todos os ventos. Manifeste-se onde e como quiser, até ao murro, mas junte-se à legião dos que há muito lamentam que este livro de Norman Mailer não esteja traduzido em Portugal – e, como tal, não seja incluído no Plano Nacional de Leitura, para ensino e cultivo das crianças da nossa terra, tão branda e tão hipócrita em seus lusitanos costumes.
Post-scriptum. O título desta crónica, “Com o Mundo nos Punhos”, foi tomado de empréstimo da excelente biografia do pugilista português José Santa Camarão, da autoria de Luís Filipe Maçarico (ed-. Câmara Municipal de Lisboa, 2003). Como refere Marco Vaza num artigo da revista “Pública”, de 26 de Fevereiro de 2010 (“Santa ‘Camarão’. O homem-montanha em Portugal”), Santa Camarão, um fragateiro de Ovar que chegou a lutar no cinema e no Madison Square Garden, continua a ser um dos mais altos pesos-pesados do boxe mundial, um pugilista como Portugal nunca mais teve. Beatriz Costa achava-o “homem a mais”.
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