O país das eternas “folgas” orçamentais

A ideia de que podemos e até devemos continuar a fazer dívida é o contrário do que deve ser transmitido a uma sociedade com elevados défices de literacia económica e financeira.

A subida do rating português pela Standard & Poor’s tem o simbolismo do fim de um ciclo que dura há sete anos. Foi em 2010 que as notas da qualidade de crédito atribuídas ao país começaram a vir por aí abaixo, até acabarem como sabemos. Esta é a primeira subida do rating português desde então e tem a importância acrescida de retirar a dívida portuguesa da categoria de “especulativa” – que conhecemos na gíria como “lixo” -, elevando-a à primeira divisão, a do “investimento”.

Se queremos atribuir louros políticos por isto, basta olhar para a trajetória do défice e das taxas de juro dos últimos anos. O governo de Passos Coelho fez a maior e mais difícil parte do caminho e António Costa está a continuá-lo, tendo a inteligência pragmática de manter como prioridade a redução do desequilíbrio das contas públicas.

Mas se queremos mesmo ir à procura dos verdadeiros heróis, eles são o Zé e a Maria – que por vezes são muito citados em congressos partidários.

Foram eles que ou perderam o emprego ou viram o seu salário e pensão cortados e que, em qualquer dos casos, pagaram muito mais impostos para recuperar a credibilidade do país que os dirigentes políticos não souberem defender. (Sobre este tema revejo-me, no essencial, nos textos que Pedro Sousa Carvalho aqui escreveu e que Luís Aguiar-Conraria escreveu no Observador.

Sendo muito importante e muito positivo – basta ver a evolução das taxas de juro cobradas ao país nos últimos dias para se perceber isso – é bom que se tenha a noção que isto não representa a chegada a um período de facilidades económicas, financeiras ou orçamentais. É que já se ouve por aí falar de “folgas orçamentais”, no negócio orçamental só se discute a distribuição de mais dinheiro e, simbolicamente, um candidato autárquico a Coimbra até encontrou como bandeira eleitoral a promessa de um aeroporto internacional no município. Isto não vos faz lembrar nada?

Não devia ser permitido utilizar o termo “folga” orçamental num país que mantém um défice que ronda os 2% do PIB e que o tem reduzido em grande parte, ano após ano, com o recurso a medidas de caráter extraordinário. Ainda somos “lixo” para duas das três principais agências de rating, saímos apenas há meses do procedimento dos défices excessivos, temos um volume de dívida que até há pouco muitos consideravam impagável e o que é que muitos conseguem ver nisto? Uma fantástica “folga“ orçamental, pois claro.

Não só não há “folgas”, como a mensagem que se passa à sociedade é totalmente errada.

A ideia de que não só podemos, como até devemos continuar a fazer dívida, em vez de a reduzirmos substancialmente, é o contrário do que devia ser transmitido a uma sociedade com elevados défices de literacia económica e financeira num país onde muitas narrativas políticas nos desresponsabilizam colectivamente de tudo e mais alguma coisa.

As coisas correm mal, há desequilíbrios fortes e o país entre em crise orçamental? A culpa é dos mercados, dos especuladores, das agências de rating, da política europeia, da senhora Merkel, dos países do Norte da Europa, do presidente do Eurogrupo ou de quem mais esteja à mão e que diga uma coisa simples como esta: têm que ter contas equilibradas.

São necessárias medidas para corrigir os desequilíbrios? É preciso mudar a política Europeia, os tratados não servem, demita-se o presidente do Eurogrupo, temos que reduzir o poder das agências de rating, temos que falar com os credores para reestruturarmos a dívida – a propósito, o que têm a dizer hoje alguns dos signatários do famoso “Manifesto dos 74”, que em Março de 2014 dizia que sem negociarmos com os credores a economia não iria recuperar? Alguns estão agora no Governo. Mantêm a mesma opinião? E não o querem dizer agora no novo em voz alta?

Tantos nos problemas como nas soluções, o país e os seus decisores estão quase sempre ausentes do essencial de causas e consequências. A menos que estas sejam boas, claro, e aí tudo se deve ao efeito das políticas domésticas.

Esta retórica facilitista e auto-desresponsabilizadora é contraproducente num país que mantém 130% de dívida pública que vai custar muito a pagar e que, enquanto se mantiver a níveis elevados, representa sempre um potencial de risco de pressão financeira.

Ao contrário do que defendem as soluções mágicas das reestruturações, se tudo correr bem esta dívida será paga por todos nós, mais filhos, enteados e netos, ao longo das próximas décadas com os impostos que todos pagarão. Sim, o “correr bem” é isto: o país, com os seus recursos e as suas capacidades, honra os seus compromissos para garantir credibilidade internacional. Essa credibilidade é tão mais necessária quanto maior for a dívida. Pode parecer um paradoxo, mas é mesmo assim. Quem vive com uma dívida elevada que continua a aumentar e que precisa constantemente de ser renovada – cada amortização que temos que fazer no prazo acordado é feita com o recurso a novos empréstimos, e assim sucessivamente – não pode dar-se ao luxo de ignorar os credores ou de conduzir ou ameaçar conduzir políticas que sejam vistas como irresponsáveis para o pagamento dessa dívida.

Não por acaso, a generalidade das análises que vão sendo feitas à evolução da economia portuguesa realçam os aspectos positivos – alguns mesmo surpreendentes, como é o défice de 2% alcançado por um governo com o suporte ideológico deste – mas carregam também muito na necessidade de ser baixar o nível de dívida pública muito rapidamente.

Ignorar isto, abrandar os esforços para continuar a baixar o défice – que é sempre coberto com a emissão de nova dívida – e começar já a distribuir aquilo que ainda não temos nos levará longe. Até porque já fizemos isso no passado e não nos demos bem.

Nota: Por opção do autor, este artigo é escrito segundo o antigo acordo ortográfico.

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